Carta para Francisco, o meu futuro irmão

Gabriel Martins
Textos de gaveta
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3 min readJun 2, 2020

Belo Horizonte, 1º de junho de 2020

Querido Francisco,

Há alguns meses, acompanho de longe a sua chegada. A primeira notícia que tive sobre você já me parece tão distante. Em janeiro, seu pai veio conversar comigo. Na manhã daquele dia, minha rua ainda estava inundada de lama devido às chuvas que haviam arrasado Beagá na véspera. Sequer sabíamos se conseguiríamos nos encontrar, já que a previsão do tempo nos colocava em alerta para as chuvas de fim de tarde.

Já o coronavírus ainda não passava de um tema de noticiário, uma doença do outro lado do mundo que nunca chegaria aqui. Naquela época, uma quarentena no Brasil parecia algo impensável. Depois de mais de dois meses em isolamento social, essas memórias já parecem tão distantes. Talvez você já tenha ouvido histórias sobre tudo isso o que aconteceu antes do seu nascimento.

A viagem para te ver em agosto, que já era quase dada como certa, foi adiada indefinidamente. Todos os dias da semana parecem o mesmo. Mas uma das formas que tenho de sentir o tempo que passou são as notícias de você, semana a semana. O seu quarto sendo montado aos poucos, com fotos da família, papel de parede de animais e berço branco. As imagens de ultrassom. As fotos da barriga da sua mãe.

Outro dia, eu e seu pai estávamos conversando sobre o seu mapa astral. Fazendo previsões sobre como você seria, dependendo se o seu nascimento seria antes ou depois da virada de Câncer para Leão. Em um tempo de tanta incerteza, sinto que preciso me agarrar a essas pequenas bobagens.

Talvez você já tenha percebido que sou uma pessoa que tem essa mania de pensar muito sobre o futuro. Antes de todo esse contexto chegar a esse ponto caótico, me pegava pensando sobre como seria a nossa relação de vez em quando.

Às vezes, me perguntava se a gente não seria mais tio-sobrinho ou primo do que irmãos, pela nossa diferença de idade. Afinal, ela é maior do que a diferença que eu tenho com o seu pai, com os 42 anos recém-completados dele e os meus 24 que estão por vir.

Hoje sou mais velho do que tanto o meu pai quanto a minha mãe eram quando eu nasci. Quando era criança, não entendia direito por que todos meus colegas na época de escola tinham pais tão velhos. Alguns deles tinham uma idade próxima a dos meus avós, o que me deixava ainda mais encucado.

Por isso, com certeza você não vai passar. Talvez, como eu, você também cresça rodeado por pessoas mais velhas. Nunca tive primos que tivessem uma idade próxima da minha e você é o meu primeiro irmão. E, como sempre fui muito introvertido, eu nunca tive o costume de receber amigos em casa ou de brincar com as outras crianças da vizinhança. Porém, tenho certeza de que você nasce em um mundo muito diferente daquele em que passei minha infância.

Se até março eu conseguia voltar minha mente para essas coisas, hoje não posso dizer o mesmo. Enquanto explodem protestos contra o racismo e o fascismo ao redor do mundo, acho difícil pensar sobre essas coisas mais leves. O tempo todo surgem notícias absurdas e inacreditáveis. Mais do que nunca, o mundo parece difícil de compreender.

Estamos no olho do furacão de um momento histórico: tentando encontrar formas de lutar contra o autoritarismo e uma pandemia ao mesmo tempo. Brincamos nas redes sociais sobre como os historiadores vão conseguir escrever sobre esse turbilhão de acontecimentos de uma forma que faça sentido para crianças como você.

No meio disso tudo, a única coisa que sei que posso esperar é a sua chegada. Escrevo essa carta para você ter um pouco da minha memória, de como me sentia em meio a isso tudo. Mas escrevo para mim também, porque não quero me esquecer de nada do que digo aqui.

Com amor,

Gabriel

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Gabriel Martins
Textos de gaveta

jornalista. ocasionalmente, escrevo crônicas e textos sobre cultura pop.