A estética do ressentimento

Claudio Cordovil
Textos selecionados
15 min readMar 1, 2015

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O escritor Dino Buzzati em O deserto dos tártaros, um dos romances mais contundentes da modernidade, retrata o patético de uma fortificação com
uma atividade feérica, repleta de soldados, hierarquias e trocas de guarda em meio à vastidão do vazio de um deserto, onde absolutamente nada acontece. Giovanni Drogo, seu protagonista, fica à espera de uma batalha iminente que nunca vem, e vê sua vida ser consumida na rotina sufocante do dia-a-dia.

Pùblico faz filas enormes no CCBB para ver os impressionistas.

Lembra um pouco as querelas atuais sobre a arte contemporânea, que nada tem de novas, que causam uma marola sem-fim na mídia com sabor de novidade, em um simulacro de debate público, na falta de reflexões mais pontuais e conseqüentes. Enquanto isso, o público (bucha de canhão e figura alegórica pouco contrastada neste tipo de discussões), está onde sempre esteve: acorre em massa a exposições de Van Gogh e Manet, velhos de um século, só agora avalizando massivamente o Impressionismo. Além disso, a arte moderna nunca foi para o grande público. Dá vontade de perguntar: mas de que estes senhores estão falando? Por que esta algaravia? Qual é o problema? O que mudou? A quem interessa este delírio verbal irrefreável?

Pùblico faz filas enormes no CCBB para ver os impressionistas.

De fato, as afirmações estampadas nos jornais em nome “de um fosso entre o público e as obras apresentadas como artísticas” assumem tais contornos que seria lícito indagar: Quem busca mais sensação? Jornalistas e colunistas
que enumeram fatos curiosos ensejados pela nova produção artística? Ou artistas propriamente ditos com suas performances escandalosas? Estariam os repórteres e colunistas brigando por notoriedade com o chapéu alheio,
ao narrarem exaustivamente as esquisitices dos criadores?

Não deveriam ser mais originais, já que cobram originalidade dos artistas? Queiram me desculpar, mas o nome disso é apropriação indébita e busca de audiência a qualquer custo. Simplesmente porque este debate empobrecido,
também da parte dos detratores da arte contemporânea, é ideológico. Faz-se tabula rasa da História da Arte neste coliseu pós-moderno chamado mídia. É o que pretendemos esboçar com modéstia não-especialista neste artigo. Fato autorizado pelo estatuto leigo da maioria dos atores envolvidos na querela da vez. Pretende-se propor uma mudança de foco nas discussões, para que estes debates não continuem cevando filisteus.

Há imposturas e mediocridades no campo da arte, como sempre existiram. Muitas vezes, a percepção de incompetência de um artista é hipertrofiada por problemas com relação ao referente distinto acionado por especialistas
e não-especialistas no tema, para a compreensão da obra. Minha apreciação do futebol será potencializada se eu acompanhar as minúcias de meu time, os debates em curso, as futricas, a história dos clubes etc. Mas tais desvios de rota não me autorizam a pedir a eliminação pura e simples destes artistas dos quadros da arte.

Males da democracia. Na arena intelectual, juízos de valor não movem moinhos. Ao menos é o que se diz. Servem para alimentar impressões na mesa do bar, o que não deixa de ser interessante, lúdico, mas pouco sério.
Discussões sobre o valor da arte contemporânea acionam estratos de rejeições, mas não rejeições totais à arte contemporânea. Detratores e defensores da mesma encontram-se em situação de diferendo, e não de litígio, à medida que os registros de valores mobilizados pelos respectivos
atores sociais nas querelas são distintos, dependendo de que lado se esteja na discussão.

Isso faz com que os argumentos de um não sejam pertinentes aos julgamentos do outro. O diálogo se torna impossível. Algo diferente de um litígio, que tem perspectivas de resolução. As possibilidades de acordo e entendimento no diferendo envolvendo a arte contemporânea são nulas. É isso que leva um debate como esse a se estender por um ano na grande
imprensa, num verdadeiro diálogo de surdos.

Paradoxalmente, tais debates suscitam alguns discretos movimentos tectônicos sob a rígida superfície imutável da nossa realidade social e política, que jamais é problematizada com tal vigor pelos guardiões da fortaleza em meio ao nada. Os que condenam o mercado nas artes plásticas, mas não abrem mão de suas benesses (quem poderia?), se esquecem das afirmações do velho Marx sobre o primado da base material da existência.
“Uma crítica radical ao mercado pode bem cumprir a função de escudo retórico de uma postura elitista propensa a torcer o nariz a tudo o que lembre premência de ganhar a vida”, escreve José Carlos Durand em Arte,
privilégio e distinção
(Ed. Perspectiva).

Intelectuais e jornalistas não-integrados ao circuito da arte contemporânea
acorrem em massa para apoiar as palavras do ‘amigo’ que propõe uma “reflexão” sobre a mesma. Malgrado as credenciais respeitáveis dos interlocutores, em suas respectivas áreas de atividade, o debate assume tonalidades populistas e simplistas, aceno para a patuléia ávida por desqualificar o pensamento, nesta terra já calcinada por Bambam e Belo, que, queiramos ou não, já fazem parte da nossa árida paisagem. Além disso, o mercado é sempre evocado nestas discussões como um ser fantasmático, insidioso e solerte.

Houvesse alguém disposto a descrever sociologicamente as características específicas do circuito econômico da arte, constataríamos o arrefecimento desta postura antimercado. É claro que aqui não se está saudando o mercado, mas só apontando as maquinações que tornam este debate mais ideológico do que sensato.

Explorando o senso comum, com a nostalgia de uma utopia de universalização da razão e de uma comunidade estética jamais materializada na história da humanidade, os detratores da arte contemporânea ganham audiência de forma oportunista. Investem na ignorância epidêmica num ato de má-fé intelectual ou, na melhor das hipóteses, de desinformação. Os riscos de flertar com os filisteus da cultura são conhecidos. Na década de 20, argumentando que “mesmo um idiota dificilmente ousaria se orgulhar de uma coisa como esta”, Wilhelm Weyngandt, pioneiro das doutrinas de seleção e pureza racial do Partido Nacional Socialista, começava a delinear as bases intelectuais (?!?!?!) da exposição Entartete Kunst (Arte Degenerada).

Mais tarde, através de um mero recurso a uma retórica pictorial de justaposição, Paul Schultze Naumburg, em seu livro Kunst und Rasse (Arte e Raça), de 1935, colocava lado a lado fotos de dementes com reproduções de gravuras do expressionismo alemão. Pois bem, o nível dos atuais debates autoriza qualquer leitor a presumir que em breve veremos esta repugnante
montagem nas páginas dos diários.

Página do livro Kunst und Rasse.

“A confrontação, com poder de chocar até hoje, funciona tão bem porque imagem e realidade são tornadas indistinguíveis pela influência ‘niveladora’ da fotografia’’, afirma Betina Brand-Claussen, comentando o livro Arte e raça em artigo que faria tremer qualquer comunicador contemporâneo diante de sua responsabilidade social. Daí a complexidade e gravidade de tais discussões, que não são meramente estéticas e diletantes.

Curiosamente, diga-se de passagem, a arte contemporânea é um alvo móvel na perspectiva de quem busca interpelar seus detratores. Quando você põe o mais empedernido iluminista na parede, ele desconversa. Diz que não é contra toda a arte contemporânea, só contra alguns aspectos dela. Ora, então por que a veemência dos debates na grande imprensa? Aceno para as massas?

A arte contemporânea é um alvo móvel na voz de seus detratores.

O que de fato pretendem seus detratores? Isso nunca fica claro. Acaso buscam resgatar uma antiga estética? O trabalho seria hercúleo para fazer com que Mona Lisa voltasse, para além de um revival passageiro, patrocinado provavelmente por uma cadeia de televisão. Não bastaria trazer
Leonardo da Vinci de volta, mas reconstituir todas as mediações de seu tempo, incluídas aí as instâncias econômicas. Propor a volta do universal na arte? Além de esta vocação jamais ter se materializado, os atentados de 11 de
setembro seriam a prova dos nove para os mais renitentes com relação às dificuldades de se universalizar por decreto.

Piero Manzoni produziu 90 latinhas com seus dejetos e as vendeu de acordo com a cotação do dia do grama de ouro.

Essa discussão sobre a arte contemporânea , nas bases em que vem sendo travada, nada tem de novo. Ortega y Gasset, que não é assim um iconoclasta, mas que também não se escandalizou com a arte moderna, afirmou serenamente há cerca de 80 anos: “É toda arte moderna que é impopular, e não por acidente e por acaso, mas por essência e fatalidade”. Além disso, garantia que o público se divide “entre os que acreditam e os que não acreditam nela”. Na avaliação dos especialistas, esta clivagem não cessa de crescer, relegando o grande público não-iniciado às margens do jogo. Este é um problema que merece ser discutido, mas não com a verve populista sequiosa de audiência com que nos defrontamos hoje.

Uma passada breve pela História da Arte nos revela algumas características recorrentes. Ajudados por aqueles intelectuais que, tais como os dedicados
detratores, tentam entender a arte contemporânea, mas a partir de suas rejeições, vemos um museu de estranhas novidades nesta discussão paroquiana. Afinal, transgressão, reação e integração compõem o ciclo de vida da arte moderna e contemporânea. Transgressão pelos artistas, reação da parte do público e integração pelos museus têm definido os caminhos da arte há mais de um século, segundo estes autores. Por que o espanto atual com a arte contemporânea? Amnésia coletiva?

Fountain, de Marcel Duchamp

A lista é grande: “transgressão dos cânones acadêmicos da representação pelo impressionismo, dos códigos de figuração das cores pelo fauvismo, depois da figuração de volumes pelo cubismo, transgressão das normas de objetividade da figuração pelo expressionismo, transgressão dos valores humanistas pelo futurismo, dos critérios de seriedade pelo dadaísmo, do verossimilhante pelo surrealismo” e muito mais.

A arqueologia dos protestos já mapeados por Nathalie Heinich, socióloga da arte, que remontam a meados do século 19, torna esta discussão sobre a arte contemporânea , tal qual conduzida pelas mídias, algo meio sem propósito. Naturalmente, neste moto-perpétuo de transgressão, reação e integração poderíamos nos indagar sobre até quando a fórmula seria bem-sucedida.

Após esta sucessão de gestos sempre mais radicais, levando sempre mais adiante a desconstrução da noção de arte, o que ainda é possível inventar?, indaga Heinich.

Vê-se que esta sim é uma pergunta pertinente, embalada por um enfoque responsável.

Nathalie Heinich irá mostrar que a ruptura provocada pela arte moderna e que prossegue com a arte contemporânea é caracterizada pela quebra das convenções pictóricas correntes em uma contínua formalização dos desafios artísticos.

Cloud Gate, de Anixh Kappoor.

Além disso, observa o engajamento em movimentos coletivos que se estabelecem em rápida sucessão, acompanhados de manifestos. Tal aglutinação visava suprir a falta de estruturas coletivas institucionalizadas à época dos modernos. A organização corporativa dos ateliês já havia deixado de existir, a academia era representada por um instituto com reduzido número de vagas, não existiam sindicatos e nenhuma sociedade de artistas havia vingado. A última característica da ruptura moderna foi a da “normalização da singularidade”.

Com ela surge a necessidade de se multiplicar as correntes artísticas sempre em busca do novo singular, o que acarreta “um esgotamento acelerado dos gostos”. Ou seja: há pelo menos 150 anos este é o movimento da arte. Por que o espanto com a arte contemporânea?

Dito isto, podemos argumentar que contrariamente a uma “anomia estética” freqüentemente apontada pelos adversários da arte contemporânea na atualidade, o que se nota é uma institucionalização da anomia, desde os tempos da arte moderna. Já se vê que, contrariamente ao que pensam seus detratores hegemônicos na mídia brasileira, o problema da arte contemporânea nada tem a ver com suas práticas. Os artistas continuam a fazer o que sempre fizeram. Minas Gerais está onde sempre esteve, diriam os antigos.

Caminho mais produtivo para se delinear a crise, que de fato existe (não se trata aqui de negá-la), seria deslocar o foco dos debates, passando-o do campo dos artistas para o das instituições. Uma vertente mais promissora da discussão diz respeito ao fato de a arte contemporânea ter se transformado em uma arte oficial, um academicismo do século 21, sem qualquer poder de transgressão — desmazelo até para fins políticos — , normalizada e legitimada pelo circuito dos museus, na espiral transgressão-reação-integração.

Livro de carne, de Artur Barrio

O problema seria agravado por uma questão terminológica que determina a exclusividade de um certo gênero de oferta nestes espaços. Afinal, o que seria arte contemporânea? Designa uma categoria temporal ou estética? É arte de hoje ou um certo tipo de arte? A verdade é que, na classificação elaborada por Heinich a partir de seus estudos, o gênero “arte contemporânea” constitui apenas uma parte da produção artística atual. É mais apoiada pelas instituições públicas que pelo mercado privado de galerias e colecionadores, e se encontra no ápice da hierarquia em matéria de prestígio e preço.

Sem partilhar os ultrajes e rejeições radicais dos detratores da arte contemporânea, compreendo o sentimento de injustiça e abuso de poder que podem estar experimentando e sustento que se pode responder de outra forma ao debate do que desferindo xingamentos mútuos, afirmou Heinich, em entrevista.

Certa vez, o crítico de arte Frederico Moraes revelou que:

é preciso dizer que a arte brasileira é muito mais rica do que o que estes vanguardistas institucionalizados praticam.

E prosseguia:

Na cronologia das artes plásticas brasileiras, elaborada por mim, e que pega a História do Brasil desde a Missão Francesa, você pode ver a freqüência com que os mesmos nomes aparecem interligados. (…) Se você analisar, são sempre as mesmas pessoas (…) Esta ‘vanguarda’, que não importa como se denomine, porque o termo é meio desgastado, é um sistema como o acadêmico antigo, que tinha seus críticos, suas galerias, seus colecionadores, os museus, bienais, salões e prêmios de viagem. Se você fizer um levantamento dos últimos 20 a 30 anos foi isso que aconteceu, afirmou.

Para o crítico, “desta forma, a arte perde seu poder de transgressão” e deixa de surpreender.

Se é o Estado que está contratando, se os livros são publicados pelo Estado, se os prêmios do Salão são dados pelo Estado, isto é arte oficial, acredita ele.

Talvez o problema possa ser melhor analisado a partir da perspectiva da gestão dos poderes públicos. Mas a solução ainda assim não seria de todo simples. Hoje, os poderes públicos apóiam a arte que não tem “retorno de mercado”, no circuito privado de galerias e colecionadores.

Assim, a verdadeira questão se resumiria ao seguinte, na linha de discussão já elaborada por Heinich: deve o Estado optar pelo pluralismo ou pela compensação no que se refere à arte contemporânea?

Nós experimentamos hoje, nesse campo, os efeitos de uma política maciçamente compensatória, afirma a socióloga com base em pesquisas, e não em julgamentos ideológicos.

Oficialmente, segundo ela, o único critério de escolha é a qualidade das propostas apoiadas.

Para Heinich, o problema é que estes critérios jamais são explicitados publicamente e, quando algo é dito, é para defender a “liberdade” dos artistas. Isso realimenta o que ela chama de “paradoxo permissivo”.

As instituições encorajam transgressões a si mesmas sob o risco de envolver todo o sistema em uma disparada, onde se perdem os artistas e o público. ‘A arte nasce de impedimentos, vive de lutas e morre de liberdade’, explica, aludindo a André Gide.

Alguns intelectuais que tendem a se situar do lado da marginalidade e da oposição aos poderes constituídos não têm mais na arte contemporânea um cavalo de batalha conveniente a seu papel de agitadores. Contrariamente, é combatendo estas novas instituições artísticas que eles têm recuperado uma posição mais conforme à sua ética e a seus gostos estéticos, afirmou Heinich.

Pissing Christ, de Andres Serrano.

Mas decidir entre estratégias compensatórias — que sempre caracterizaram a política cultural neste campo — e enfoques pluralistas não é tarefa fácil. O pluralismo pode engendrar um “ecletismo excessivo”, uma dispersão, o que também é problemático na avaliação de Heinich.

Já as políticas compensatórias causariam efeitos sobejamente conhecidos: criação artificial de atividades não-conectadas a uma demanda, dissociação dos criadores de seus eventuais públicos, desequilíbrio do sistema tornando o Estado um concorrente desleal de outros atores, como galerias de arte, e promoção de um sentimento de injustiça.

E aqui valeria a pena citá-la em artigo publicado na revista Mediologie sobre os poderes públicos e a arte contemporânea.

O apoio à arte contemporânea poderia se justificar em uma lógica compensatória quando o gênero penava para cair nas graças do mercado, como ocorreu com o Impressionismo, há mais de um século. O problema hoje é que a situação se inverteu completamente: não estamos mais no tempo de Cézanne, e os inovadores não são mais os esquecidos!

De dominada, a arte contemporânea se tornou largamente dominante — ao menos na esfera de ação dos poderes públicos. Pois o senso de dominação tende a se inverter, quando se sai do círculo dos especialistas para se confrontar com o gosto dos simples admiradores, ou com a lógica cidadã dos profanos.

E, en passant, dados os limites deste artigo, mencionamos um outro gênero produtivo de problematização da arte contemporânea, proposto por Yves Michaud.

Para ele, talvez o que tenha mudado sejam as representações que fazemos da arte em nossa cultura. Segundo Michaud, um mito antigo cerca a visão da arte para os puristas. Tributária de Kant, esta idéia tem a ver com sua noção de “publicidade”. Através dela, uma utopia se define que consiste em “esperar da arte a possibilidade de uma comunicação ideal entre cidadãos iguais”, reunidos em uma “comunidade de gosto”.

É esta saudade do que ainda não vimos que define o que poderíamos denominar de “crise da arte contemporânea”, na visão deste intelectual. Foi a perda de uma de nossas ilusões mais tenazes, do poder comunicativo da arte, que deslanchou as manifestações que caracterizariam tal “crise”

Segundo Michaud,

É a democracia com seus princípios de liberdade e de comunicação, mas também com seus efeitos de demagogia e comércio, que coloca em xeque a utopia da comunicação e da civilização estéticas.

Para ele,

O espaço público crítico e esclarecido do século 18 não pode se proteger dos efeitos do desenvolvimento capitalista e democrático e se torna o espaço da opinião pública, ao mesmo tempo que da divisão de classes e grupos sociais.

Michaud acredita que aí resida o problema. Pois é a persistência destas mitologias kantianas e românticas, em sua visão, que serve de pano de fundo para a doutrina de um Estado Cultural que imagina ser capaz de prover consenso a partir de um “serviço público da criação”.

Vê-se assim que tocar verdadeiramente na essência da questão, para além das bravatas populistas e os acenos à patuléia, envolve discutir que tipo de sociedade queremos: uma sociedade liberal pluralista ou republicana compensadora?

Porque é isso que está em jogo, para Michaud. No limite, esta discussão é impraticável, a não ser que se esteja realmente disposto a colocar em questão as políticas do Cultural Welfare State. Malgrado o sucateamento generalizado do Estado-Providência, estas ainda persistem, aos trancos e barrancos, na gestão de museus e centros culturais. Quem se habilita?

Uns querem que a arte possa oferecer ainda uma base comum de crença e, decepcionados, vomitam a arte de seu tempo. Os outros se firmam sobre a convicção simulada de que a arte de seu tempo lhes dá esta base comum. Já os funcionários estatais evocam as Vanguardas, o Patrimônio, o Serviço Público e o Estado-Nação para subsidiar e apoiar certo gênero de arte, observa Michaud.

Instada a propor soluções para este dilema complexo que envolve a tal “crise”, Nathalie Heinich alinhava para nós uma proposta interessante, uma espécie de Edito de Nantes que pacificou católicos e protestantes há mais de
400 anos:

A arte contemporânea tal qual é definida hoje deveria ser considerada como um gênero entre vários das artes plásticas atuais. A colocação em evidência desta pluralidade de gêneros permitiria, então, legitimar, sistematizar e programar inteligentemente uma variedade de políticas de apoio à criação, que só se opera hoje de modo um pouco forçado, em uma hierarquização muito rígida entre redes legítimas (instituições estatais, galerias de vanguarda) e ilegítimas (instituições municipais e galerias orientadas para o mercado privado).

Outra proposta apontada por Heinich para a pacificação é que os artistas saiam dos museus e ganhem as ruas, abram seus ateliês, interpelem o público e com ele dialoguem sobre arte em settings mais convidativos para a troca de experiências.

A alegoria proposta por Dino Buzatti em O deserto dos tártaros é metáfora bem apropriada para entender o porquê de uma polêmica velha ressuscitar desfocada. Indagado por jornalistas sobre qual seria a origem de seu romance, ele afirmava que estava ligada à condição humana em geral e seu amesquinhamento cotidiano.

Provavelmente, se bem me recordo, à monótona rotina noturna da redação, que eu seguia naquela época. Com freqüência tinha a impressão de que aquele ramerrão iria continuar ao infinito e me consumir inutilmente a vida. (…) A transposição dessa idéia para um mundo militar fantástico foi para mim quase instintiva: me pareceu que nada melhor se poderia achar para exprimir o desgaste daquela expectativa do que uma fortaleza num confim extremo.

Talvez seja o aturdimento diante da nossa condição contemporânea, que confiscou todas as nossas certezas e esperanças, que faça algumas pessoas discutirem histericamente a arte.

Tiradas todas as nossas balizas e nosso senso de pertencimento a uma sociedade, questões de gosto ainda nos dão a ilusão confortável de que podemos pontificar e determinar o rumo dos acontecimentos. Talvez fosse mais produtivo adotar bandeiras mais radicais e canalizar a verve mal-humorada desferida contra os artistas para alvos mais socialmente consistentes.

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Claudio Cordovil
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🦉Pesquisador em Saúde Pública (Fiocruz), foco em doenças raras🎤 Jornalista investigativo, 🥇Prêmio José Reis de Jornalismo Científico (CNPq)