As delícias do Rio, por um ex-terrorista alemão

Claudio Cordovil
Textos selecionados
7 min readFeb 20, 2015

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Para o bem ou para o mal, Lutz Taufer, um simpático e bem-humorado alemão, de 55 anos, e de passagem pelo Rio, ajudou a escrever uma das mais importantes páginas do pós-guerra alemão com sua participação no grupo terrorista popularmente conhecido como Baader-Meinhof. Seu nome oficial era Fração do Exército Vermelho (RAF).

Cartaz de “Procurados”, na maior caçada humana já realizada na Alemanha depois do Holocausto.

E por isso já pagou um alto preço: 20 anos de detenção, dois anos na solitária, 15 anos em vários graus de isolamento, em uma prisão de segurança máxima em Celle, cidade próxima a Hanover. Doze greves de fome, sendo uma delas quase fatal, após nove semanas de privação de alimentos. Uma tentativa de suicídio.

A torre da prisão de Celle

Inimigo do Estado, sobre ele poderia se afirmar que já expiou todos os seus
pecados, diferentemente de qualquer contribuinte consciencioso, pagador de seus impostos, com sua infinita lista de pecadilhos cotidianos, vaidades
consumistas e dívidas morais intangíveis. Com limões, Taufer fez limonadas.

Hoje, doutor em sobrevivência, após ter cumprido sua pena de abril de 1975 a abril de 1995, sabe como ninguém que o humor preserva a vida. Por conta disso, cunhou uma edificante definição da amizade carioca:

No Rio, amigo é alguém que você conheceu há 10 minutos.

De fato, seqüelas desta dívida já reparada não são detectadas quando seus numerosos amigos cariocas conversam com ele nas areias do Posto 9, em Ipanema, ou constatam sua animação em desfiles de blocos de rua ou escolas de samba no Carnaval, em outras passagens pelo Rio. Taufer agora conhece o valor da liberdade.

O ex-terrorista, que adotou o boêmio bairro de Santa Teresa, a Montmartre carioca, como refúgio provisório, a convite de uma ONG, para uma série de palestras, tem um passado ambíguo, com uma nódoa que, em alguns momentos, obscurece sua alma e que, com discretos gestos épicos diários busca heroicamente remover.

Emblema da Rote Armee Fraktion (Fração do Exército Vermelho)

Fez parte do que se convencionou chamar a segunda geração do Baader-Meinhof ou Fração do Exército Vermelho (RAF) (em inglês), o mais famoso grupo terrorista europeu dos anos 70, que encerrou oficialmente suas atividades em abril do ano passado, por meio de um longo comunicado oficial, com uma contabilidade de 30 assassinatos, após 30 anos de atividades sangrentas.

Malabarismos

Taufer participou da ocupação da embaixada alemã em Estocolmo em 1975, (em alemão, imagens impressionantes) primeira operação de uma nova fase do movimento, que, por meio da violência, exigia a libertação dos companheiros presos e que terminou tragicamente com a execução de dois diplomatas e a morte acidental de dois terroristas. Única ação armada da qual afirma ter participado, esta lhe custou os 20 melhores anos de sua vida, com malabarismos mentais para suportar as aviltantes condições do isolamento total.

Penso que o problema fundamental com o tipo de punição que sofri é que tive de usar 90% de minha energia para não enlouquecer.

Acho que teria sido melhor se a tivesse empregado para refletir sobre minhas experiências e sobre as conseqüências de meus atos.

Quando se está sempre temeroso em perder-se a si mesmo, não se pode fazer reflexões políticas.

Co-responsável pelas mortes, Taufer hoje reconhece:

Não se pode construir um mundo melhor à custa da morte dos semelhantes.

Taufer, como muitos de seus contemporâneos, é produto da primeira geração do pós-guerra alemão, criado em um país que não soube lidar com seu passado, numa espécie de esquizofrenia coletiva, deflagrada pelos recalques de Auschwitz e pelos traumas da 2.ª Guerra Mundial. Foi também forjado com a têmpera dos movimentos estudantis e dos turbulentos acontecimentos de 1968 em toda a Europa.

Quando éramos estudantes, sentíamos que não se podia viver em um país como a Alemanha, porque a geração de nossos pais tinha organizado o holocausto e foi responsável pela destruição de nosso país, e de outros países ao redor do mundo, com a 2.ª Guerra.

Eles retornaram da guerra como se nada tivesse acontecido. Não queriam falar sobre isso conosco. Nossa geração não pôde retirar uma identificação com o passado da geração de seus pais e cresceu com a idéia de que a política era algo ruim, que trazia desgraças. Quando um estudante francês de 15 anos falava em sala de aula, dizia que a França tinha legado ao mundo os direitos humanos.

Houve uma série de crimes colonialistas, é bem verdade, mas este era um item que fazia com que um jovem pudesse se identificar com seu país. Nas carteiras da escola, nós, alemães, tínhamos fotos de montes de cadáveres de Auschwitz em nossos livros escolares’’

Privados do passado como padrão para o presente, os jovens da Alemanha do pós-guerra não poderiam e nem deveriam, nas circunstâncias específicas alemãs, copiar a geração anterior, na medida do possível.

Junte-se a isso os movimentos estudantis dos anos 60 com seu convite à imaginação no poder e se entende como se formaram estes jovens idealistas.

Hoje sabemos que o movimento de 1968 foi muito ingênuo, com suas análises sectárias, mas naquele momento queríamos romper com o passado e ter uma vida melhor. Como jovens, sentíamo-nos responsáveis após os alemães terem iniciado duas grandes guerras e especialmente quando os Estados Unidos começaram o genocídio no Vietnã

Foto que entrou para a história, com a menina chorando de dor pelas queimaduras do napalm no Vietnã.

Neuroses

A continuidade do nazismo por outros meios na Alemanha do pós-guerra, materializada pelo fato de importantes oficiais nazistas ocuparem cargos relevantes ou influentes da vida pública do país, acompanhou a juventude de Taufer e seus contemporâneos e catalizou grande parte das ações terroristas do Baader-Meinhof, como no caso do sequëstro e execução do presidente da Federação das Indústrias Alemãs, Hans Martin Schleyer, em 1977.

Muitos de meus professores da escola tinham participado da guerra e eram extremamente neuróticos e repulsivos em sala de aula. Além disso, o presidente da Autoridade Escolar, em Karlsruhe, minha cidade, foi chefe da unidade da SS encarregada de tratar oficiais com problemas psicológicos em suas atividades nos campos de concentração.

Criado em um lar poupado do fanatismo nazista, Taufer foi formado no clima da Guerra Fria e, logo, tornou-se anticomunista. Mas o assassinato do estudante pacifista Benno Ohnesorg por um policial, em sua primeira passeata, em protesto contra a visita do Xá Rehza Pahlevi a Berlim (dramatização abaixo), em 1967, foi o estopim do engajamento que acabou levando Taufer e muitos outros jovens à luta armada. Estudiosos afirmam que esse foi o segundo fato mais importante da história contemporânea alemã desde a construção do Muro de Berlim.

O tiro em Ohnesorg foi desferido contra os ideais da minha geração.

Taufer irá se filiar ao Coletivo dos Pacientes Socialistas (SPK) que, extinto em 1971, terá alguns de seus militantes engrossando as fileiras da RAF após a prisão de sua primeira geração, em 1972. Foi fundado por um grupo de estudantes e pelo doutor Wolfgang Huber, em 1969, em um conflito com a autoritária psiquiatria universitária pós-fascista em Heidelberg. O SPK organizava grupos que se ocupavam com a doença e como transformá-la.

As condições de vida no capitalismo produzem doenças, que nos obrigam a lutar com destino revolucionário.

Dos seis ativistas que invadiram a embaixada da Alemanha em Estocolmo, quatro, incluindo Lutz Taufer, eram integrantes do antigo SPK.

Um de nossos problemas na RAF é que depois da prisão da primeira geracão em 1972, não tivemos mais discussões sobre os rumos do movimento. Em 1977, a RAF estava totalmente isolada devido às repercussões negativas do seqüestro do Boeing 737 da Lufthansa pelos palestinos, que exigiam a libertação de Andreas Baader e outros integrantes da RAF. Apesar de estar feliz com este comunicado de 1998, que declara encerradas as atividades da RAF, acho que ele chega um tanto tardiamente.

A seguir: O Grupo Baader-Meinhof, no cinema (conterá spoilers)

Veja uma interessante resenha crítica sobre o filme.

Com produção e roteiro de Bernd Eichinger (o mesmo roteirista de A Queda: Os últimos dias de Hitler) e direção de Uli Edel, e com Moritz Bleibtreu (no papel de Andreas Baader), Martina Gedeck (Ulrick Meinhof) e Johanna Wokalek (Gudrun Ensslin) nos papéis principais, O Grupo Baader-Meinhof (Der Baader Meinhof Complex) estreou nos cinemas alemães em grande circuito em 25 de setembro de 2008. Recebeu indicações para o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e para o Globo de Ouro, na mesma categoria.

O filme retrata a atuação do grupo terrorista no período entre 1967 e 1977 e é inspirado em livro homônimo, publicado em 1985, de Stefan Aust, ex-editor do semanário Der Spiegel.

Os trabalhos de produção do filme iniciam-se em agosto de 2007, com locações incluindo Berlim, Munique, a prisão de Stammheim (Stuttgart), Roma e Marrocos. Orçado em 6,5 milhões de euros, o filme contou com recursos financeiros de várias entidades.

A repercussão

Em linhas gerais, o filme recebeu boa crítica, enfatizando sua qualidade como thriller político, embora algumas vozes dissonantes tenham afirmado que ele de algum modo glamurizava o terror, pela maneira como retratara os principais personagens deste marco da história contemporânea.

Seus realizadores argumentaram que certo nível de glamurização fazia parte do contexto cultural da época em que o movimento se inseria, no auge do feminismo e dos movimentos estudantis.

O sítio de críticas de cinema Rotten Tomatoes relatou que 87% das críticas ao filme nele publicadas foram positivas.

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Claudio Cordovil
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🦉Pesquisador em Saúde Pública (Fiocruz), foco em doenças raras🎤 Jornalista investigativo, 🥇Prêmio José Reis de Jornalismo Científico (CNPq)