Memórias egoístas: o 11 de setembro, um ano depois, na mídia

Claudio Cordovil
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9 min readSep 10, 2021

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Foto de Aidan Bartos on Unsplash

Cláudio Cordovil

Os usos da memória e a relação conflitiva que esta mantém com a história talvez nunca tenham ficado tão evidentes para um telespectador nos últimos tempos como diante das transmissões televisivas a respeito dos atentados de 11 de setembro em Nova Iorque, um ano depois.

Se, no calor da hora dos acontecimentos, alguns raros programas televisivos se preocuparam em explorar as razões históricas para o acontecimento bárbaro, um ano depois, o que se viu foi uma ‘kitschficação’ do 11 de setembro, a demonização dos membros da Al Qaeda e a regressão do pensamento crítico.

Tais usos ideológicos da lembrança apontam para a pertinência de algumas análises desenvolvidas no evento Caminhos do Pensamento:Horizontes da Memória. Entre as convidadas, Susan Sontag, uma das personalidades que mais se insurgiram contra a incapacidade de os americanos responderem à questão histórica crucial deste episódio: “Por que os Estados Unidos foram atacados?”

Nossas conclusões, produto de breve análise das transmissões televisivas do canal por assinatura People & Arts, no dia 11 de setembro de 2002, nos permitem vislumbrar a ênfase atual em uma “cultura da memória” já apontada por alguns autores para a refundação de comunidades imaginadas, após anos de solapamento sistemático dos valores da socialidade por conta de agressivas políticas neoliberais.

De fato, a recomposição da noção de Estado-Nação americano foi propiciada pelos usos ideológicos da tragédia e a coesão daquela sociedade neste momento de crise só foi mantida às custas de uma memória consensual coletiva (exomemória).

José Vidal-Beneyto (2002) , em sua palestra no evento supracitado, destacou enfaticamente o caráter da memória coletiva como invenção, como construção, distante das noções de senso comum que dariam conta de sua suposta condição de produto social espontâneo. Como Alain Clémence já observara, “antes que sejam organizados pelo aparato cognitivo, os dados são organizados em virtude do contexto intelectual do qual emergem (…), o que faz com que aqueles a que mais diretamente acede a memória sejam os que correspondem ao pensamento dominante”.

Citando Jorge Luiz Borges, Larreta (2002) lembrou que “viver é uma educação do esquecimento” e observou que, já em 1862, Ernest Renan afirmara que memórias do passado estão associadas com a vontade coletiva de viver juntos. “Esquecimento e erro histórico são fatores essenciais na formação da Nação”. De fato, as transmissões alusivas aos atentados um ano depois de ocorridos omitem deliberadamente vários aspectos dos fatos em questão, remetendo os telespectadores a uma recepção compungida dos mesmos, indutora de leniências críticas, do comprometimento da capacidade de julgar e analisar.

Entre os historiadores mais citados no evento da Biblioteca Nacional encontra-se Maurice Halbwachs que, em sua obra seminal intitulada Memória coletiva, destaca não só o caráter seletivo de toda memória, mas também o fato de ela ser objeto de um processo de “negociação” para que sejam conciliadas memória coletiva e memórias individuais:

“Para que nossa memória se beneficie da dos outros, não basta que eles nos tragam seus testemunhos: é preciso também que ela não tenha deixado de concordar com suas memórias e que haja suficientes pontos de contato entre ela e as outras, para que a lembrança que os outros nos trazem possa ser reconstruída sobre uma base comum”.

Daí a importância estratégica dos media, que atuaram como instrumentos pedagógicos para a liturgia da lembrança pós-11 de setembro.

Tal vertente halbwachsiana de análise da memória ganha proeminência nos dias de hoje ao coincidir com certa inclinação construtivista nas teorias a respeito do fato social. Atualmente é de interesse teórico nas ciências humanas compreender como os fatos se tornam coisas e como são dotados de estabilidade. “Aplicada à memória coletiva, essa abordagem irá se interessar, portanto, pelos processos e atores que intervêm no trabalho de constituição e de formalização das memórias” (POLLACK, 1989).

Em outra vertente profícua de análise, Andréas Huyssen (2000) irá mostrar que já vivíamos antes dos atentados em um estado de obsessão pela memória, e não de seu refluxo, como gostaria de crer o senso comum.

No entanto, em uma crítica direta a Halbwachs, irá duvidar da possibilidade de uma memória consensual coletiva. Isto antes de 11 de setembro.

Esta avidez pela memória poderia ser constatada, segundo ele, “nas restaurações historicizantes dos centros urbanos, na onda da nova arquitetura de museus, na difusão de práticas memorialísticas nas artes visuais, no aumento do número de documentários na televisão, dentre outras práticas culturais”.

As razões para tal cultura da memória poderiam estar ligadas, segundo ele, “à crescente necessidade de uma ancoragem espacial e temporal em um mundo de fluxo crescente em redes cada vez mais densas de espaço e tempo comprimidos”.

Para Huyssen, os discursos de memória se acirraram na década de 1980 na Europa e nos Estados Unidos impulsionados pelos debates no rastro da série de tevê Holocausto.

Os atentados ao World Trade Center se apropriaram um pouco deste poder simbólico conferido ao Holocausto, metáfora para outras histórias e memórias, em alguns discursos veiculados na Internet, que pretendiam fundir as duas bárbaras experiências.

Esta comparação com o Holocausto nos discursos de memória traumática correntes, na visão de Huyssen, “pode servir como uma falsa memória ou simplesmente bloquear a percepção de histórias específicas” . Para o autor, a permanência simbólica de fatos como o Holocausto e o desaparecimento de ativistas políticos na Argentina deve-se à ausência de um espaço fúnebre para que a memória humana seja alimentada, aspecto coincidente com os atentados ao World Trade Center.

Seria interessante notar que se os atentados e o recrudescimento dos fundamentalismos poderiam ser lidos como reações à globalização, a “cultura da memória” pode ser entendida como uma tentativa de fundar uma ancoragem temporal numa era que, em nome desta mesma globalização, entronizou a noção de tempo real e diluiu as fronteiras entre presente, passado e futuro.

Os embates entre história e memória ficaram claros para o grande público americano com a carta enviada por Susan Sontag à revista New Yorker.

“O desencaixe entre a dose monstruosa de realidade de 11 de setembro e o besteirol autoconfiante e os engodos completos sendo contrabandeados por figuras públicas e comentaristas de tevê é chocante e deprimente. As vozes autorizadas a acompanhar o evento parecem ter se unido em uma campanha para infantilizar o público. Onde fica o reconhecimento de que este não foi um ataque covarde sobre a civilização, a liberdade ou humanidade mas um ataque à auto proclamada superpotência mundial, desferido como conseqüência de ações a alianças americanas específicas?”

Susan Sontag terá que esperar mais um pouco por esta resposta.

Após um ano da tragédia, o que se viu na tevê foi o aspecto kitsch da lembrança, a exposição obscena da dor dos parentes, o cultivo da memória egoísta, a falência do senso de Humanidade entre os enlutados, documentários sobre a bestialidade dos terroristas e sobre a quase-beatitude de todos os familiares, no relato tocante de seus parentes.

O canal People & Arts optou por reprisar , em setembro de 2002, um episódio do programa Panorama intitulado Rumo à hora zero (Towards the zero hour) (uma espécie de Globo Repórter sofisticado com cerca de 50 anos de existência) retratando a vida de Mohammed Atta, o líder dos militantes da Al-Qaeda naquela missão. Intitulado “Rumo à hora zero”, o programa originalmente foi ao ar em dezembro de 2001.

Abusando do sensacionalismo e da visão estereotipada dos muçulmanos, pintando-os como diabólicos, o programa, bem produzido, começa revelando a célula de Atta em Hamburgo. Menções freqüentes a “olhos frios”, ao fato de “não sorrir”, a ser “muito religioso” e a uma suposta obstinação no seguimento dos preceitos islâmicos em seu ambiente de trabalho, elevam Atta ao estatuto de mito.

Laços “genéticos” de sua ideologia anti-americana são buscados em seu pai, Mohammed El Amir. Personagem anistórico, excrescência demoníaca, progênie do mal. No site inglês do programa, inúmeros muçulmanos protestaram contra o caráter preconceituoso do “especial”.

Edward Said, assim se pronunciou sobre as repercussões do 11 de setembro na cultura de massa.

“O que é mais deprimente é quão pouco tempo é gasto tentando-se entender o papel da América no mundo, e seu envolvimento direto na complexa realidade além das duas costas que têm por tanto tempo mantido o resto do mundo extremamente distante e virtualmente fora da mente do americano médio” .

Vê-se que as memórias coletivas impostas e defendidas por um trabalho especializado de enquadramento, sem serem o único fator aglutinador, são certamente um ingrediente importante para a perenidade do tecido social e das estruturas institucionais de uma sociedade.

Assim, o denominador comum de todas essas memórias, mas também as tensões entre elas, intervêm na definição do consenso social e dos conflitos num determinado momento conjuntural (POLLACK, 1989)

O festival kitsch das lembranças do dia 11 de setembro um ano depois prosseguiria no People & Arts com um documentário produzido pelo New York Times intitulado “Retratos da dor” (Portraits of grief).

O documentário reúne alguns dos cerca de 2 mil sketches biográficos das vítimas compilados pelo projeto e veiculados regularmente no jornal. O desafio do projeto “era dar escala humana à enormidade de vidas perdidas”.

Ali todo o barroquismo da dor humana é embalado com cuidado estético. O resultado é emoção deslavada até para o mais reticente intelectual. Familiares dão depoimentos sobre seus entes queridos, na maior parte das vezes com um semblante sereno e até bem-humorado.

Trata-se de revelar o vigor de um povo que prossegue inabalável após o trauma. A fórmula inclui sonhos abortados, depoimentos de entes queridos, sonhos continuados por familiares, sinais premonitórios acerca da morte. Tudo com muita dignidade.

É fato que a História não pode prever o futuro, mas o passado por ela retratado deve ser algo que de alguma forma dê sentido ao presente. Com o confisco da palavra do expert da cena midiática contemporânea no que se refere aos atentados, que possibilidade existe para a formação de uma opinião, dentro do possível, livre de constrangimentos? Qual o espaço para uma atitude que não inclua o consentimento a todas as manobras imperialistas americanas, justamente aquelas que feriram de morte a democracia tão incensada?

Observa-se o acirramento das guerras históricas, sucedâneas das guerras culturais, nos domínios acadêmicos americanos pós-11 de setembro.

Mas tais diatribes não alcançam de forma disseminada a opinião pública americana. Lynne Chenney, esposa do vice-presidente Dick Chenney e ex-chairman do National Endowment for Humanities, chegou a afirmar que as conclamações a um estudo mais intensivo das culturas do resto do mundo levaram a uma responsabilização dos Estados Unidos pelos ataques, devido a “uma falha na compreensão do Islã”.

Em uma carta distribuída pelo American Council of Trustees and Alumni, já dirigido por ela no passado, Chenney criticou duramente os professores que falham em ensinar a “verdade” de que a civilização “é melhor exemplificada pelo Ocidente, notadamente pela América”. Dinesh D’Souza, pensador conservador, em contrapartida, sustenta que tolerância religiosa e liberdade são valores exclusivamente ocidentais.

Eric Foner (2002), professor da Columbia University, em artigo publicado no The Nation, aponta os três possíveis objetos de estudo para os historiadores que desejarem investigar 11 de setembro:

* a escalada do patriotismo,

  • infrações significativas das liberdades civis,
  • e uma súbita conscientização da desconfiança considerável, no exterior, das ações americanas.

Para Foner, se os historiadores que cresceram durante a guerra do Vietnã aprenderam a suspeitar do uso da bandeira no patrocínio de causas injustas, agora terão que dedicar atenção ao uso dos símbolos nacionais e sua importância para o povo americano.

Mas ele reconhece que a ênfase neste patriotismo pode degenerar em uma divisão da sociedade americana entre legalistas e traidores, legitimando decisões que cerceiam as liberdades civis.

(…)

A memória coletiva do 11 de setembro tem sido feita de muitos esquecimentos, um ano depois. Por conta de esta memória ser composta por quadros de referência, há quem proponha que se fale de “memória enquadrada”.

O trabalho de enquadramento da memória se alimenta do material fornecido pela História. Esse material pode, sem dúvida , ser interpretado e combinado a um sem-número de referências associadas. Guiado pela preocupação não apenas de manter as fronteiras sociais, mas também de modificá-las, esse trabalho reinterpreta incessantemente o passado em função dos combates do presente e do futuro. Mas, assim como a exigência de justificação discutida acima limita a falsificação pura e simples do passado na sua reconstrução política, o trabalho permanente de reinterpretação do passado é contido por uma exigência de credibilidade que depende da coerência dos discursos sucessivos (POLLACK, 1989)

É assim que o governo americano enfrenta dificuldades neste momento em ver aprovada sua intenção de invadir o Iraque. Se, para Bush, atacar o Iraque faz parte da guerra contra o terror, tal conclusão é difícil de ser sustentada. Não há provas de que aquele país tenha participado dos atentados ou mantenha relações com a Al-Qaeda. Ainda que políticas simbólicas estejam substituindo a realpolitik nestes tempos de usos da memória, percebe-se que ideologias calcadas na lembrança têm limites. E que o motor da História não se detém com a reedição recente das memórias egoístas.

Bibliografia

FONER, Eric. “Changing History”. In The Nation. 5.7.2002.

HUYSSEN, Andréas. Seduzidos pela memória. Rio de Janeiro. Editora Aeroplano, 2000.

LARRETA, Enrique Rodriguez. Do fim da história à emergência da memória. Caminhos do pensamento: horizontes da memória. Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, 2002 [transcrição]

POLLACK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. In Estudos Históricos, n. 3. Fundação Getúlio Vargas. Rio de Janeiro, 1989. Disponível em <https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2278>

VIDAL-BENEYTO, José. La construcción de la memória coletiva: um ejemplo concreto. In: Caminhos do pensamento: horizontes da memória. Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, 2002.

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Claudio Cordovil
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🦉Pesquisador em Saúde Pública (Fiocruz), foco em doenças raras🎤 Jornalista investigativo, 🥇Prêmio José Reis de Jornalismo Científico (CNPq)