O ‘Big Bang’ de Stephen Hawking é mito científico

Mário Novello, cosmólogo, viu confirmadas suas refutações a este modelo de criação do Universo

Claudio Cordovil
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9 min readMar 16, 2018

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A Cosmologia como ciência é relativamente nova. Quase inexistente no início do século 20, surge como tal a partir da década de 1920. A acompanhá-la, desde então, um paradigma poderoso: o Big Bang. A genealogia deste paradigma pode ser rastreada inicialmente em uma idéia desenvolvida entre 1927 e 1933 pelo padre belga Georges-Henri Lemaître, sob o nome de “hipótese do átomo primordial”.

Tal hipótese teórica foi confirmada experimentalmente em dois importantes momentos do século 20. O primeiro deles em 1929, quando o astrônomo norte-americano Edwin Hubble realizou observações “que permitiram interpretar certas alterações no comportamento da luz proveniente de fontes de fora de nossa galáxia como a demonstração de que o Universo como um todo experimentava um processo de expansão” (Novello, 2006, p. 27).

O segundo ocorre em 1964, quando os astrofísicos Arno Penzias e Robert Wilson apresentaram provas observacionais definitivas de que o Universo estava mergulhado em um gás de fótons em equilíbrio térmico. Tal fato poderia ser interpretado como se estivesse associado a um corpo negro à temperatura de 2,7 graus Kelvin. A partir desta interpretação, o Universo efetivamente teria sido menor e mais quente no passado.

Estes dois achados observacionais foram cruciais para que se pudesse definir o estatuto científico da Cosmologia, tirando-a do lugar de certa metafísica. Afinal, foram estas duas revelações que, articuladas, elevaram o Universo à categoria de objeto formal de pesquisa e legítimo campo de estudos. .

Desde então, o Big Bang é a base do modelo-padrão da Cosmologia moderna. Até bem recentemente, a mídia o adotara como verdadeiro dogma, apesar dos constantes abalos que vinha sofrendo na cena científica, por força de novos achados observacionais que frequentemente o contradiziam.

Fato absolutamente normal. Não fosse assim, o Big Bang não se converteria em um paradigma da Cosmologia. Para entender o fenômeno acima descrito, convém resgatar a obra do historiador Thomas Kuhn e seu conceito de “paradigma”.

“[Paradigma] é um resultado científico fundamental que inclui ao mesmo tempo uma teoria e algumas aplicações típicas aos resultados das experiências e da observação. Mais importante ainda é um resultado cuja conclusão está em aberto e que põe de lado toda uma espécie de investigação ainda por fazer. E, por fim, é um resultado aceite no sentido de que é recebido por um grupo cujos membros deixam de tentar opor-lhe rival ou de criar-lhe alternativas” (KUHN,1979, p. 65).

Kuhn divide os cientistas entre os solucionadores de quebra-cabeças e os exploradores. Grande parte da atividade científica rotineira (que Kuhn denomina ciência normal) é desenvolvida pelos primeiros, sob a orientação de “paradigmas”, como aquele do Big Bang. A metáfora do quebra-cabeças fica mais interessante quando é associada à figura do cubo mágico. “Em vez de se assemelhar a uma exploração, a pesquisa normal apresenta-se antes como o esforço de montar um cubo mágico cujo aspecto final é conhecido desde o princípio [e que é dado pelo paradigma]”, afirma Kuhn (1979, p. 71).

Por conta disso, Kuhn vai mais além e aconselha a nos livrarmos de visões idealizadas acerca da ciência e dos cientistas. De fato, ela não é um empreendimento que busca a inovação a cada momento. Na verdade, para Kuhn, certo dogmatismo caracteriza as ciências maduras. Nela, os conhecimentos são transmitidos ao longo de um treinamento altamente estruturado que inculca um compromisso continuado com os modos vigentes de percepção, crenças, paradigmas e resoluções de problemas. “Preconceito e resistência parecem ser mais a regra que a exceção no desenvolvimento científico (KUHN, 1979, p. 55).

A Cosmologia nasce aqui no CBPF com uma postura bem diferente daquela midiática do big bang. Este foi um handicap adicional porque íamos contra a maré há 25 anos atrás. Diziam, no final dos anos 1980 e inicio dos 1990, que ainda estávamos na fase especulativa da Cosmologia porque não levávamos em conta que as observações tinham demonstrado o big bang. Ora, ninguém duvida que o universo foi mais condensado no passado. Isto é ponto pacífico! Seria uma ingenuidade pensar que alguma pessoa pudesse imaginar isso hoje em dia, O ponto concreto é que vendiam a imagem do big bang como o começo do mundo. Nós sempre fomos contra esta imagem por razões de ordem técnica, e não filosófica. E por causa disso tivemos que enfrentar problemas.

É através de paradigmas (como os do Big Bang) que a ciência avança na maior parte de seu tempo, segundo nos ensina Kuhn. Em certas circunstâncias é bom que seja assim, mas sobre isso aqui não iremos nos alongar2. O problema é que, por conta dos paradigmas, muitas vezes o cientista deixa de ser um explorador do desconhecido. “Em vez disso, ele luta por articular e concretizar o conhecido”.

Este definitivamente não é o caso de Novello e seu grupo de pesquisas que, desde 1979, na condição de exploradores, desafiam o paradigma do big bang em importantes revistas científicas internacionais, abrindo novos caminhos para a Cosmologia. É desta data artigo de sua autoria (em colaboração com José Salim) onde são propostos modelos alternativos ao Big Bang para a criação do Universo, como veremos mais adiante.

Dois aspectos relacionados ao paradigma do Big Bang incomodam particularmente Mario Novello. O primeiro deles teria a ver com o surgimento de um tipo de ciência pós-empírica (ou “irônica”), no afã de se preservar a todo custo este modelo teórico. O segundo seria o fato de este paradigma prever uma singularidade inscrita na história da origem do Universo, que tornaria este momento inicial inacessível à investigação humana.

Em linhas gerais, o paradigma clássico do Big Bang sustenta que o Universo, que teria cerca de 13,7 bilhões de anos, expandiu-se e resfriou-se a partir de uma fase inicial densa e quente, que mais tarde levaria à formação de galáxias e estrelas. Mas este modelo possui também uma característica que o torna objeto das maiores especulações filosóficas: o fato de o Universo ter tido um momento inicial absolutamente impermeável ao conhecimento científico, o que pressuporia a existência de um Deus Criador. A este momento zero os físicos dão o nome de “singularidade”.

Este modelo, capitaneado na mídia pelo físico Stephen Hawking, causou sensação nas páginas de inúmeras revistas e jornais em todo o mundo, em parte porque trazia embutida em sua proposição a justificativa para a existência de Deus.

Pecker (2005) constata que, em seus primórdios, no início do século 20, tal modelo era a única solução possível vis a vis as observações astronômicas existentes. À medida em que novas observações foram se sucedendo, afirma o astrofísico francês, novos parâmetros foram a ele agregados de modo a salvar seus princípios básicos, Em muitos aspectos, tais acréscimos ad hoc visando preservar o paradigma pertenciam a um domínio que não é experimentalmente testável ou solucionável e não poderia ser considerado ciência em seu sentido estrito, tal como definido por Galileu, o pai da Física experimental.

Seriam expressões de uma ciência pós-empírica ou, nas palavras de Horgan, “ciência irônica”, cuja finalidade primária seria “nos manter deslumbrados diante do mistério do universo”, mas sobre a qual jamais chegaríamos a um acordo dada a ausência de possibilidade de confirmação empírica presente ou futura. A estas expressões, Novello dá o nome de “especulações selvagens”.

Por exemplo, a observação da radiação cósmica de fundo, e de suas flutuações, as medidas da abundância estelar e galática de elementos químicos leves (hidrogênio, deutério, hélio), o brilho de supernovas extragaláticas etc. Legitimaram a introdução sobre o quadro teórico do big bang de “inflação”, “grande unificação”, super-simetria”, “mátéria escura”, “energia obscura” etc. Fico perturbado por esta situação, que se assemelha após séculos à progressiva acumulação ptolomaica (e copernicana) de epiciclos sobre o sistema original de esferas homocêntricas dos cosmólogos aristotélicos, como bem observou Jayant Narlikar (PECKER, 2005, p. 187).

De acordo com o modelo-padrão da Cosmologia, o momento zero da criação seria caracterizado por uma densidade, curvatura e temperatura infinitas, ou seja, um momento onde as leis da física teriam sido quebradas, inviabilizando sua observação. Ora, desde sempre o infinito é o terror dos físicos e matemáticos. Diante do infinito, cessam os poderes humanos de resolução de problemas.

O infinito é exatamente o inacessível da Física. Não existe. Tudo o que a Física faz é se afastar do infinito como o diabo da cruz. A densidade da matéria, a energia e a temperatura sendo infinitas, serão quantidades que nunca poderão ser observadas enquanto tais. É realmente espantoso que os físicos tenham aceitado que o big bang fosse realmente o começo de tudo e ainda fizessem Física. Os precursores da idéia de big bang sabiam muito bem que essa era uma etapa do conhecimento que precisava ser superada.

Mas não foi isso o que aconteceu, ao menos em um primeiro momento. A idéia do big bang mais e mais se consolidava e era adotada por cosmólogos como dogma inquestionável. Há que se destacar que, já na década de 1960, este modelo teórico ganhara ainda maior sustentação formal entre os cosmólogos e o público em geral por conta dos “teoremas da singularidade” desenvolvidos por Roger Penrose, Stephen Hawking e George Ellis. Estes cientistas demonstraram que, sob certas condições gerais (em que, por exemplo, o universo sempre tivesse densidade e pressão positivas), toda solução para as equações de Einstein deveria resultar em uma singularidade _ um estado para o qual o universo teria se condensado em um ponto matemático. Mas seria esta uma descrição apta do que aconteceria realmente na Natureza?

Para Mário Novello e seus colaboradores, não. Aceitar uma singularidade na origem do Universo representaria, a seu ver, a rendição do cientista aos enigmas da Natureza e sua aposentadoria compulsória pela total falta de sentido de seu papel social. O físico Heinz Pagels de certa forma endossa tal posição, ao afirmar que “com base na experiência passada, tais singularidades na descrição matemática das entidades físicas simplesmente expressariam uma compreensão incompleta da Física”. E prossegue:

O surgimento de singularidades matemáticas na descrição da Natureza deve representar um desafio aos físicos para que desenvolvam uma melhor descrição matemática baseadas em leis físicas mais aprofundadas que evitem a singularidade. A singularidade na origem do universo sugerida por alguns modelos deve nos convidar a um desafio e não ser vista como um véu de ignorância para além do qual não devemos olhar (PAGELS, 1992, p. 244).

Pois já em 1988, Novello se pronunciaria a este respeito, ao afirmar, em seu livro Cosmos e Contexto.

Mesmo reconhecendo a compatibilidade entre as poucas observações cósmicas disponíveis e o modelo-padrão, sua origem singular deveria ser entendida como uma falha do modelo que possivelmente estaria relacionada à sua extrema simplificação e que ao aumentarmos o número de graus de liberdade, reduzindo as imposições de simetria do modelo do Universo, provavelmente conseguiríamos encontrar o modo de continuar a descrição do mundo para além do ponto singular do modelo-padrão (NOVELLO, 1988, p. 48) .

Na verdade, Novello e seu grupo de pesquisa já haviam acatado o desafiador convite de Pagels quando publicaram, em 1979, na Physics Review, o primeiro artigo a apresentar soluções exatas para uma geometria ricochete (bounce), baseada em modelo de um universo não-singular. Já naquela época, para Novello e seus colaboradores, o universo era eterno e teria experimentado uma expansão após passar por uma fase colapsante.

O físico José Salim, um dos mais antigos participantes do Grupo de Cosmologia e Gravitação do CBPF revela um pouco do espírito explorador que seu líder incutia em seus colaboradores.

Já naqueles tempos Novello nos convidava a questionar a ortodoxia dominante neste campo, propondo que quebrássemos os postulados dos teoremas da singularidade. Isso era uma ousadia. Pois, hoje, os achados observacionais parecem apontar para a existêcia de energia escura no Universo, o que confirma que esta sua atitude era bastante acertada.

Mas, voltando a Kuhn, convém lembrar que a ciência normal nem sempre tem sucesso em sua empreitada orientada por pétreos paradigmas. De tempos em tempos, períodos de inovação radical acontecem e, desta forma, interrompem a caminhada da pesquisa normal, ensejando o que este historiador denomina “revolução científica”. “No curso de qualquer pequeno período de ciência normal, problemas, dificuldades e anomalias, que só surgiram por causa da tentativa de se encaixar a natureza no padrão definido pela ortodoxia vigente, se acumulam” (BARNES, 1982, p. 11).

É nestes momentos que ocorre uma revolução científica: Conceitos, teorias e procedimentos mudam, problemas se alteram, critérios de julgamento são mudados, incluindo o que conta como problema e como solução de um problema, a percepção em si é modificada, assim como a base da imaginação científica (id. Ibid.).

Os estudos sobre modelos cosmológicos sem singularidade conduzidos por Mario Novello lhe valeram o título de Doutor Honoris Causa, concedido pela Universidade de Lyon, em 2004. Mas, para o cientista, a confirmação de estar vivendo no limiar de uma “revolução científica” só aconteceu em março de 2008, quando uma das mais respeitadas revistas internacionais no campo da física, a Physics Reports, lhe convidou para escrever um alentado artigo de revisão (NOVELLO e BERGLIAFFA, 2008) sobre universos sem singularidade (modelo que se opõe ao proposto pelo paradigma do big bang).

A publicação recente em revistas de divulgação científica de artigos que sustentam a tese de um universo eterno, sem singularidade, só serviu para confirmar a sua suspeita de que o paradigma do big bang encontra-se com seus dias contados.

Extraído de Desafios da Física (1949–2009): Depoimentos, publicado por ocasião dos 60 anos do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF). Trecho de perfil biográfico de Mario Novello, intitulado “Pioneirismo e originalidade no estudo sistemático da Cosmologia”, de minha autoria.

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Claudio Cordovil
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🦉Pesquisador em Saúde Pública (Fiocruz), foco em doenças raras🎤 Jornalista investigativo, 🥇Prêmio José Reis de Jornalismo Científico (CNPq)