Um filme eterno: Hiroshima, mon amour

Um salmo sobre as dores do lembrar e do esquecer

Claudio Cordovil
Textos selecionados
4 min readFeb 6, 2021

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(Publicado no Jornal do Brasil, em 18 de agosto de 1999)

Há exatos 40 anos, jovens cineastas franceses reuniam-se à convite da revista Cahiers de Cinema para discutir um filme intrigante, Prêmio da Crítica em Cannes, em maio do mesmo ano. Hoje, às 19h, 150 espectadores irão revê-lo em sessão seguida de debates com a cineasta Vera Figueiredo e com o crítico José Carlos Monteiro, no Iate Clube do Rio de Janeiro, promovida pelo Consulado da França.

A cada década, Hiroshima Mon Amour, de Alain Resnais, ganha novas leituras. A renovação agora vem por conta da ênfase dos estudos culturais sobre temas como a memória, a visão e o lugar. Parábola de morte e transfiguração, sofrimento e ressurreição, tolerância e intolerância, Hiroshima, mon amour, filme fundador da Nouvelle Vague francesa, é um salmo sobre as dores do lembrar e do esquecer.

Foi o uso político da memória para mobilizar passados míticos e justificar a limpeza étnica em Kosovo que despertou Vera Figueiredo sobre a urgência de se discutir a alteridade, em convite de Laila Carvalho Motta, responsável pela Cinemateca da Embaixada da França no Brasil.

O título do filme para ilustrar as discussões veio logo depois.

“Em 'Hiroshima', o amor excede limites e ultrapassa fronteiras, trazendo renovação e a cura das feridas de um passado fragmentado. Se, na alteridade, encontramos o entendimento entre indivíduos, podemos utilizá-la também para superar as dificuldades entre povos, etnias e nações, com a expansão do amor pessoal em consciência abrangente'', afirma Vera.

O filme se passa no verão de 1957, em Hiroshima. Uma mulher francesa (Emanuelle Riva), natural de Nevers, lá está para atuar como atriz de um filme sobre a paz. Encontra um arquiteto japonês (Eiji Okada) com quem vive um intenso romance fugaz.

Nas primeiras cenas, o assombro da montagem inovadora: o casal de amantes com os corpos nus, "amputados" pelo enquadramento da câmera, replica as imagens documentais, ou reconstituídas, do flagelo nuclear em Hiroshima, em 1945.

O enquadramento e o holocausto nuclear

Hiroshima, como Auschwitz, é um não-lugar, que entrou para o vocabulário ocidental pela sinistra porta da imolação profana em escala industrial. Lugar improvável para uma história de amor, mesmo que banal. O único ponto do globo onde se pode falar inocentemente do holocausto nuclear em meio a suspiros de amor despudorado. Eros e Tanatos em chave psicanalítica.

“Nada é dado em Hiroshima. Um halo particular reveste cada gesto, cada palavra, de um sentido suplementar ao seu sentido literal. E esta é uma das principais intenções do filme, acabar com a descrição do horror pelo horror, pois isso já foi feito pelos japoneses, mas fazer este horror renascer das cinzas ao inscrevê-lo em um amor que será forçosamente original e arrebatador", escreveu Duras, em sua sinopse para o filme.

Entoado como um mantra profano da verdade e da representação, da visão e da memória, um diálogo martelado à exaustão. "Você não viu nada em Hiroshima’’, diz o amante japonês. "Eu vi tudo’’, diz a francesa. Pois o martírio de Hiroshima só entra para a história como alegoria, em uma cantilena que faz pensar, na falta de coisa pior. Impossível falar de Hiroshima com a marca da experiência. Lá não estivemos. Por isso é que se trata sacrilegamente do assunto, na cama, sublinhando o verdadeiro Sacrilégio, a profanação de nossos estereótipos de seres dotados de razão.

É neste encontro episódico, acidental, aparentemente fortuito, com feições de affair amoroso, em uma terra calcinada pela maldade atávica, que dois seres renascerão. Ela, de um amor abortado há 14 anos que a paralisou; ele, poupado da tragédia que dizima sua família por um sinistro golpe de sorte: a convocação para a guerra.

É em Hiroshima que ela fala, pela primeira vez, da morte de seu primeiro amor: um jovem soldado alemão, inimigo da pátria francesa, que traz desonra para sua família, marcada em seu corpo pela tosa de seus cabelos e pelo seu confinamento enlouquecedor em um porão, como signo da vergonha familiar.

O relato

Cura pela palavra, virtude terapêutica da psicanálise da descoberta do inconsciente. Como em análise, ela se lembra da dor, mas só para esquecê-la melhor. Sem a psicanálise _ ou, em menor escala, sem a escuta tolerante do amante devotado _ esquece-se mal. Recalca-se, assenta-se a memória em camadas de sedimentos que temperam os gestos do presente com o caldo muitas vezes ácido do passado.

Qualidade de vida ao alcance da palavra.

"O relato que ela faz desta chance perdida [de morrer de amor em Nevers] a transporta literalmente para fora de si e a traz a este novo homem. Ela dá a este japonês _ em Hiroshima _ o que ela tem de mais precioso no mundo, sua expressão atual, sua sobrevivência à morte de seu amor, em Nevers" escreve Duras.

Expressar-se é renascer. Mas o que não se pode falar, deve-se calar. Daí a economia verbal de Duras. Contraste agudo com a visão barroca de ferros retorcidos e corpos deformados pelo calor ardente da bomba nuclear. Diante do indizível, o que o silêncio é para a música: delineador de intensidades.

Ao final do debate no Cahiers de Cinema, em 1959, Eric Rohmer, oportunamente lembrado por Monteiro, pontificou. "Estamos diante do primeiro filme do cinema moderno". Os cariocas têm uma nova chance de conferir sua eternidade.

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Claudio Cordovil
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🦉Pesquisador em Saúde Pública (Fiocruz), foco em doenças raras🎤 Jornalista investigativo, 🥇Prêmio José Reis de Jornalismo Científico (CNPq)