Café da manhã.

Antônio Carlos Neto
Textos.Hibridos
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3 min readOct 25, 2020

Acordamos naquele domingo solar, caixas e mais entulhos espalhados pelo corredor estreito que dava acesso da sala para a cozinha. Liz gostava de sentar logo que levantava rumo à grande tela do lado do cômodo destinado ao aparelho de TV, mas nesse caso a janela tomava conta da cena, suas bolotas escuras fitavam o céu e como num degradê o azul se fundia com as suas íris. As pernas cruzadas por cima do sofá, aquelas coisas de mudança, nunca imaginei que uma moldura quadrada fizesse tanta diferente na vida dela, assim que chegamos na casa nova pude sentir que aquele lugar era o certo.

- Você ainda insiste meu bem? -Perguntei depois de comtemplar a fumaça que subia pelo coador de pano, as linhas esbranquiçadas dançavam e o cheirinho exalava a casa inteira.

- Na! -A expressão correu solta por suas cordas vocais, geralmente ela pronunciava quando gostaria de dizer não.

Com meus pés descalços senti o frio do piso depois de me agachar procurando uma caneca na confusão de quadrados amarelados ao meu redor. -Sou uma ilha. -O pensamento me veio sem muito controle. Enfiei a mão direita no desconhecido, passando meus dedos nas colheres, jornais amassados e enfim a asa da caneca.

- Vem. -Eu levantei e devagar enchi metade dela com a bebida quente. -Não vai querer beber ele frio, vai?

- Quente!-Liz respondeu, sorri depois de olhar o cabelo cacheado por cima feito um leãozinho moreno, as frutinhas no tecido e os pés também em contato com o chão gelado.

O café desceu esquentando o meu esôfago, imaginei um cano entupido depois de ser lavado com soda cáustica, queimando tudo de ruim e limpando a sujeira. O gosto amargo ficou em minha língua, eu não gostava dele com leite, preferia puro e deixando o musculo da minha boca meio dormente, Liz sorria e amava ver a mistura do branco com o preto, cheirando e soprando a vapor antes de beber.

A luz da enorme janela passava pelo corredor e refletia na cozinha, eu tive muito contato com essa parte da casa, criada no interior aí já sabe. Fogão a lenha, caminho de roça e o orvalho de manhãzinha cedo em cima das folhas, vovô costumava colher o milho, ralar e eu ficava no pé do fogo, suando e com os braços cansados de tanto mexer a borbulhante massa amarela no tacho, uma pequena feiticeira pingando.

- Devia se abanar um pouco. -Ela falava exibindo os poucos dentes e limpando o rosto enrugado. -Ela nunca gostou de cozinha, queria morar na cidade.

Lembrar da minha mãe me trazia tristeza, mas o amor de minha vó supria todo esse vazio, toda essa falta que sentíamos dela…

- Má?-Liz perguntou me fazendo sair do transe daquelas lembranças. Peguei os pães e enfiei o dedo em um puxando o miolo branco, não pensei e joguei a bolinha pra dentro mastigando e mastigando, minha filha sorria fazendo o mesmo.

Os cheiros inundavam o lugar, manteiga, o queimado do pão na sanduicheira, mais dois goles de café em meio as caixas e a luz através da janela. A manhã nunca fora tão especial. Lambi os lábios amargos e gordurosos, prendi o cabelo de Liz e depois de carinhos e beijos fomos para a sala observando a imensidão azul nos sentindo duas ilhas no mar de caixas que iriamos arrumar, mas estávamos em casa, escrevendo a página daquele livro mais uma vez.

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