Corações de fita K7

Antônio Carlos Neto
Textos.Hibridos
Published in
2 min readOct 7, 2020

Quatro paredes erguidas, ele respirou fundo antes de deitar no colchão seco da cama de ferro, aquelas parecidas com de hospitais antigos. Seus olhos miravam o nada, o desfoque que fazemos quando não queremos fixar a vista em lugar nenhum, sabe? Como um boneco paralisado. Passou a mão sobre a barriga esfregando-a por cima da camiseta branca, o cheiro do quarto emanava o orégano da pizza na noite anterior, sugou forte passando a língua nos lábios roxos logo em seguida. Ele nunca gostava de pensar o quanto o cigarro acabava com seus pulmões aos poucos, mesmo ainda na casa dos vinte e não lembrava direito quando o vício começou. Numa festa? Aquela baladinha de sexta ou na companhia dos velhos e antigos amigos? Esses que nem sequer lhe dão um telefonema nas horas de aperto.

O ruído zumbia nos seus tímpanos, o grunge do Nirvana não parava desde que o sol havia nascido. Passou o restante da manhã e tarde entre a sala, a cozinha e o banheiro entre escritas, desenhos e pomodoros iludindo a procrastinação. Sempre procurava um tempinho e deitava, vislumbrando os pôsteres e colagens nas paredes, tragando aqui e ali, vendo os desenhos que a fumaça branca fazia no ar, o ambiente meio escuro, a luz do celular que refletia na sua cara, todo esse processo. Um alívio? Uma fuga? Ele com toda a certeza não sabia responder.

Esticou as pernas e apertou os dedos dos pés no colchão, jogou o corpo para frente e sentando levou a mão na testa respirando o mais profundo que podia. Feixes de laranja amarelado se apertavam na fresta que a abertura da janela de vidro de frente pra ele fazia, os pontinhos desfocados ao horizonte subindo e descendo feito vagalumes, na verdade os carros com seus robôs-humanos rumo às suas casas depois de mais um dia. Aquela quarta ele passara em casa, no seu casulo, sob os efeitos da nicotina, café e ondas sonoras entorpecentes.

Não ligou a TV, mas andou ao redor da poltrona de couro preta com o rasgo do lado mostrando aquele pedaço de espuma se deteriorando aos poucos, sentou observando o seu reflexo na tela desligada, preta, sua metade em outra dimensão talvez. Jogou o tronco pra frente franzindo o cenho, apertando bem as sobrancelhas, tudo distorcido, ele, a sala, a vida.

Tirou os fones, levantou e devagar foi indo em direção ao reflexo, sua mão tocou o vidro gelado, ele riu ali sozinho.

Os dedos digitavam agora, laptop nas coxas, mais um modelo, mais uns riscos e pinturas daqueles personagens do seu próximo trabalho. Revisões envoltas por visões, vultos no espaço oco que por hora palpitava e de vez em quando se sentia vivo, se sentia feliz. Seu peito ardia e a fita ia e voltada ali dentro, se apagando e rebobinando mais uma vez.

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