Entre esnórqueis e anzóis

Barbra Tenório
Textos.Hibridos
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4 min readAug 20, 2020
Barbra Tenório

Desassossego…. Na minha terra falamos de alvoroço. Acho até melhor escrever sobre esse segundo porque na minha cabeça desassossego tem um ar mais íntimo, mais existencial, algo doído….algo lá dentro que te deixa irrequieto… Alvoroço não, alvoroço é mais leve. Diria que é um desassossego mais adolescente, sem a responsabilidade e o peso da vida adulta, sabe? Cheio de festa, bagunceiro. É tumultuado também, mas de uma maneira menos agressiva, menos invasiva…. Me ponho a pensar no peso que cada palavra tem. Escrever sobre desassossego seria algo difícil para mim no momento. Não que eu seja a pessoa mais feliz do mundo e completamente sossegada, sem inquietações latentes, sem perturbações existenciais, nada disso…. Mas estou de férias, num paraíso dos mais lindos…. Sossego foi o que vim buscar… Veja que ironia!

De desassossego mesmo agora só enxergo o alvoroço dos peixes tentando fugir das investidas dos turistas mergulhadores, o frenesi dos barcos competindo pelo melhor lugar no atracadouro ou ainda, o movimento da gente estendendo suas cangas no mais adequado pedaço de praia sob o sol ou à sombra, a depender das intenções de cada uma… Não são afobações de fato existenciais essas! Opa… para os peixes?… Para estes sim, deve ser esse, um período de inquietude profunda…. Nessas águas calmas eles não têm paz.

Não gosto de pensar que há uma vida aflita e estressada fora daqui. A minha, talvez a de tanta gente. Cada um com suas perturbações, com seus desassossegos, como queiram chamar, com seus monstros. Eu vim buscar quietude, mansidão. Vim tentar desacelerar uma vida que anda em uma constante velocidade média, mas doída. Agoniada de incertezas, de recomeços, de arrependimentos, de sofrimentos. Quis deixar tudo isso pra trás e procurar um respiro numas águas claras e tranquilas aqui nessa ilha de praias mansas. Nem que seja por alguns dias.

Mas voltando aqui para o nosso assunto. É do alvoroço dos peixes que escrevo? Ou talvez da vida que me espera para longe dessa ilha? Ou das pessoas que tenho encontrado por aqui? De qual desassossego devo tratar? O meu está tão longe daqui!

Confesso que gosto da ideia e falar dos peixes. Acho mesmo que tais seres aquáticos não vivem assim sossegados em águas cristalinas e calmas. Talvez eu até possa mencionar algumas tantas experiências intranquilas que presenciei por aqui pela ilha, ou na minha vida mesmo, naquela, alvoroçada fora daqui.

É inquestionável que nós seres humanos importunamos essas alminhas coloridas que vivem em um mundo tão estranho, tão lindo e aparentemente tão cheio de vida. Nos juntamos a eles debaixo das águas brandas e abrimos nossos olhos curiosos para brechar uma vida que não é nossa. Ora, para que servem mesmo essas águas sem embaço, senão para curiarmos as vidinhas alheias que vivem ali imersas. Há um prazer de ver e poder sentir a beleza que eles vivenciam enquanto passeiam em família explorando aquele mundo subaquático bravio e cheio de armadilhas. E vez ou outra se deparam com uns olhos imbecis espreitando e tirando de ordem aquela família na sua missão diária que não sei qual é.

Não podemos nos esquecer de que depois desse infame distúrbio da tranquilidade alheia, ainda vamos extasiados à procura da loja de piscicultura mais próxima para levarmos para casa um pedaço desse mundo manso (como imaginamos ser o subaquático) pois, quem sabe olhar para aquilo todo dia nos traga o mínimo de paz para enfrentarmos o alvoroço diário que vivemos? Encontrar a própria mansidão, um estado de nirvana absoluto é para nós perturbar os ecossistemas alheios, a quietude do outro, dos outros seres.

Há muita ironia na nossa ignorância, eu diria. Quem já se viu, procurar quietude na inquietude do outro? — São apenas peixinhos! — alguém havia dito. Claro, e quem liga para a rotina de um cardume dançante entre corais? Aglomeramos mais e mais, ocupamos espaços entre as águas à espera de um show sossegante, tentamos tocá-los. E por que não?

Os peixes também têm sua luta diária e seus desassossegos. Pobre de nós de enxergá-los como criaturas tranquilas, num eterno estado de paz, que nos apresentam uma folia esplendorosa e colorida. A beleza de uma natureza nua. Assim os enxergamos! E com essa ideia vamos lá em busca de um aquário particular, porque nós sim ‘merecemos’ ter um pedaço de pura beleza e sinônimo de mansidão em nossos quartos, em nossas recepções, em nossas salas… Quem sabe consigamos fugir dos desassossegos inquietantes ao assistirmos aos passeios daquele peixe solitário no nosso tanque d’água privado? Ele também deve estar em quietude plena, remexendo de um lado para outro e sem entender o porquê um escafandro inerte e de escala engraçada é seu companheiro de vida.

O sossego que vim buscar nessas águas claras e cristalinas tem me perturbado bastante. Como encontrar uma quietude, um descanso dos pensamentos diários e das confusões da vida adulta, perturbando a vida alheia, dos seres subaquáticos que NÃO nos convidaram para seu mundo azul e já cheio de luta e sofrimento? Presenciei esses dias, numa praia linda, paradisíaca, apenas mais uma nessa ilha, um barco pesqueiro atracando para abastecer o restaurante local com os peixes de águas mais profundas que não tiveram a sorte que aqueles dali mesmo, a alguns palmos abaixo do barco, têm. De serem perturbados por turistas com seus óculos de mergulho, curiosos pelo colorido, pelos contrastes, pela dança pisciana que acontece a um esnórquel de distância do rosto mais entusiasmado. Os das águas mais profundas tiveram que lutar contra redes e anzóis para evitar um destino triste. Eita que vida desassossegada destes cardumes que estão na mira os pesqueiros. Neste caso é melhor mesmo ser peixe de aquário.

Volto a repetir, nessas águas calmas os peixes não têm sossego.

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Barbra Tenório
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tentando organizar liricamente ou livremente as palavras que escapam do meu pensar.