Conto Comigo
Textos.Hibridos
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3 min readSep 23, 2020

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Imagem: Pixabay

Ainda tenho lembranças de quando era mais novo.

A Rute e o Arnaldo falavam pra todo mundo o quanto me queriam morando com eles. Compraram uma cama super confortável pra mim, roupas especiais para várias ocasiões, até um smoking eles me deram. Eu ficava tão elegante com aquela gravatinha borboleta, adorava me olhar no reflexo da janela.

Nunca esqueciam de comprar meus biscoitos favoritos e a Rute deixava água fresca do meu lado todo dia antes de dormir, pra que eu não precisasse levantar durante a noite.

Eu fui muito amado e sempre retribuí todo esse amor. As vezes que eles saíam eu aguardava ansiosamente pela volta, ouvia o barulho do carro estacionando e corria pra porta para recebê-los com toda a minha alegria.

Quando a Rute engravidou das gêmeas, eu adorava sentir as meninas chutarem e depois que nasceram eu passava horas vendo-as dormir.

Nos divertíamos no quintal, muita correria, bola pra cá, pra lá e banho de mangueira em dias quentes.

Conforme as gêmeas cresciam, elas passavam mais tempo fora. Eu, que já tinha me acostumado com as gargalhadas e as brincadeiras, sentia muito a falta delas.

Hoje em dia, já não sei se a casa que está quieta ou eu que estou com a audição prejudicada, assim como minha visão, já não consigo me ver tão nitidamente no reflexo da janela onde eu costumava me admirar.

A idade chega pra todos, já não corro igual antes, minhas pernas se cansam com facilidade, minhas costas doem, agora mais do que nunca preciso da água do lado da cama, mas a Rute não parece se importar.

Já faz tempo que não tem biscoitinho, das roupas legais só ficaram os casaquinhos de lã, bem surrados, assim como eu devo estar.

Ouvi a Rute falar para a vizinha que vão me levar para um abrigo, parece que estou dando muito trabalho pra família e eles são muito ocupados pra se preocuparem com um velho como eu.

Eu sabia que esse dia chegaria quando comecei a bater a cabeça nas paredes por não enxergar direito e em seguida, não atendia quando me chamavam, porque também já não ouço bem.

O mesmo aconteceu com seu Antenor, pai do Arnaldo. Ele estava bem velhinho quando o levaram embora, a decisão foi tomada depois que ele fez cocô na cama por dois dias seguidos, estava tão fraquinho que não conseguiu chegar a tempo no banheiro. Comigo não foi diferente, mas nesse caso foi no tapete da sala, a Rute ficou super nervosa e começou a gritar, naquele momento eu soube que minha estadia de 12 anos tinha acabado, e que meu fim não seria com as pessoas que eu amava.

Sempre ouvi dizer que o cachorro é o melhor amigo do homem, mas onde está o homem quando nós precisamos que ele seja nosso melhor amigo?

A próxima vez que eu vir as meninas vai ser lá do céu dos cachorrinhos ¨Serei o cãojo da guarda de vocês¨ digo isso antes de me levarem, com um latido baixo que mais parece um sussuro.

Como eu gostaria que elas me entendessem.

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Uma mente inquieta que usa a escrita como forma de limpar o HD.