O enterro de Lilo

Barbra Tenório
Textos.Hibridos
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3 min readSep 17, 2020
Barbra Tenório

Passaram-se quatorze anos desde a entrada de Lilo para a família Moraes. Seu Moraes já estava aposentado e tinha Lilo como verdadeiro filho. Os últimos cinco anos foram de imenso cuidado e amor. Cirurgias, remédios, um problema aqui e outro ali pelo qual todo cachorro passa na velhice. Mas sortudos são aqueles que têm como tutor alguém como Seu Moraes. Ele sempre esteve disposto a dar todo carinho e qualidade de vida para o membro de quatro patas da família. Era cabra bom seu Morais. Não podia deixar de tomar para si a responsabilidade de dar uma chance para aquele cãozinho de olhos pidões trazido pra casa por sua filha mais velha.

— Calma pai… Lilo foi muito feliz com a gente. Não havia mesmo mais o que fazer! Tentamos de tudo. Chegou a hora dele!

Era de dar dó a maneira como Seu Moraes, aquele homem forte e severo de antes, se debruçava soluçando sobre o corpinho cadavérico do cão. Dava pra sentir sua dor dentro de cada peito que se encontrava naquela sala de tão extrapolada que tava do seu próprio peito. Eram umas cinco pessoas para acudir aquele homem que foi domesticado ao longo dos anos pelo animal que tinha adotado filho. Talvez tenha sido essa a missão de Lilo. Domesticar o homem.

— Quantos anos mesmo tinha Lilo?

— Uns quatorze eu acho? Eu era bem pequena quando achei aquele corpinho ‘maguelinho’ na rua vagando sem destino. Quase ia ser atropelado. Quando vi a cena corri, gritei e peguei o bichinho nos braços e vim correndo pra casa pedir pra painho que adotássemos ele.

— Lilo foi um cão de muita sorte mesmo. Teve uma vida linda com vocês. Não é todo mundo que está disposto a dar tanto amor e se doar tanto para cuidar de um pet né?

— Hum… Nós tivemos uma vida linda com Lilo! Ele nos ensinou o significado de se doar.

Naquela madrugada Lilo tinha dado seu último suspiro. Estavam todos em casa. Haviam arrumado um lugar confortável pra ele ao pé da cama de Seu Moraes e Dona Rute. Todos estavam de vigília. Todos na expectativa de precisar levar Lilo mais uma vez ao hospital veterinário. Tinha sido assim a semana toda. Mas aquele seria o último dia desse plantão. Lilo não aguentou. Era demais para ele. Precisava mesmo ir para o céu dos cachorros. Sua vida aqui não fazia mais sentido. Seu destino havia se completado.

— Não sei se aguento essa perda! Ele é meu companheiro fiel. Era quem me recebia no portão todo dia quando eu chegava do trabalho. É quem tem compartilhado comigo os dias solitários de um velho aposentado. Rute ainda trabalhando meio expediente, as meninas foram embora ganhar o mundo. Lilo, você não pode me deixar assim! Não é justo!

Ninguém conseguia reagir a tamanho desconsolo. Nunca imaginaram um Seu Moraes tão sensível e tão devastado. Aquele homem havia mesmo amansado. Tinha sido homem bravo. Ninguém via ali aquele homem impaciente, insensível, intolerante e austero de anos atrás. Era mesmo um coração de pedra. Nem as filhas tiveram sucesso em abrir um espaço de ternura no coração do pai. Dona Rute acredita que os netos quando vierem terão essa missão. Abrandar o coração de seu marido. Lilo já cuidou disso. O netos não precisarão carregar o peso dessa responsabilidade.

— Painho, vamos levar Lilo lá pra praia. Temos aquele quintal grande lá que ele corria inteiro quando íamos de férias.

Seu Moraes apenas consentiu com a cabeça. Pegou o cobertor preferido de Lilo e o cobriu com carinho, colocou junto a bolinha companheira. Deu um cheiro na cabecinha adormecida e deixou que o levassem. Não tinha forças para seguir o cortejo. Talvez ano que vem levasse flores, mas ainda era cedo para despedidas, não conseguia, não estava preparado. Era fraco demais.

Anos de uma adoção mútua. A acolhida do cão transformou Seu Moraes. Lilo era a epifania da vida sem sentido de um homem. Que agora se torna órfão.

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Barbra Tenório
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tentando organizar liricamente ou livremente as palavras que escapam do meu pensar.