TERRÁRIO DE AGONIAS

Rosane Muniz de Souza
Textos.Hibridos
Published in
3 min readAug 18, 2020

No escuro do quarto, eu vislumbrava o peito do Dudu — meu filho de 3 anos — subir e descer de um jeito calmo.

Constante.

Eu estava sentada em uma poltrona de canto, com uma taça de vinho.

Eram três da manhã.

Ninguém havia me dito que seria assim. Ninguém tinha me preparado.

Meus pais criaram três filhos. Me perguntei se um deles velou meu sono na madrugada.

Se fizeram, nunca deixaram transparecer.

Eu era uma mãe de 35 anos.

A minha já era uma aos 23.

Nunca vi aquela mulher com um fio de cabelo fora do prumo.

Como foi que ela conseguiu, Senhor?

A cada manhã que despertava, eu tinha mais certeza de que não conseguiria.

Cabia ao meu marido se levantar, tomar uma ducha, escolher sua melhor gravata e dizer “tenha um bom dia, querida”.

A mim, todo o resto.

Eu tinha uma carreira muito da comum. Por isso, fui incitada a aceitar a tarefa de ser mãe em tempo integral. Dei de ombros. “A maternidade é linda”, me diziam. Aos poucos, percebi que ele não ajudaria a levantar um único talher do chão, mesmo quando Eduardo os jogava ininterruptamente do cadeirão.

Ele somente me olhava, com os olhos brilhantes num neon de motel: MÃE 24 HORAS.

As visitas nos achavam o máximo. Nossos pais também. Meu filho era lindo e educado e meu marido, o responsável por prover aquela maravilhosa família. Eu era a mãe. Não fazia mais do que a minha obrigação.

Enquanto isso, a mãe definhava por dentro.

Dudu deu um pequeno ronco e se aprumou na cama com formato de carro de corrida.

Tomei mais um gole. A decisão estava tomada e não me doía.

Na parede em frente à cama, brilhava uma parca luz.

Um terrário.

Um imenso terrário de formigas.

Só mais um brinquedo caro do meu marido, tal como o filho que ele ajudou a gerar.

Me afeiçoei a elas. De afeição, passei ao reconhecimento.

Sentar no quarto enquanto Eduardo dormia passou a ser meu único momento de paz.

A casa em silêncio. Somente eu e as solenopsis. As chamadas formigas lava-pés.

Doídas. Pequenas e ferozes.

Um tanto quanto eu.

De tanto encará-las, meu desassossego lhes tomou a forma e comecei a senti-las nas veias, como se sangue fossem. Corriam em mim, fazendo com que meu corpo fervilhasse.

Eu não conseguia mais respirar. Sentia que elas me saiam pelo nariz, ouvidos. Pelos poros.

Achei que estava doente. E estava mesmo.

Cada vez mais inebriada, sentia calafrios enquanto elas caminhavam por dentro de mim, sem nunca parar, mantendo vivas umas às outras. Elas não podiam parar.

Eu, sim.

Ao sinal do relógio, virei o resto do vinho, abri o guarda roupa e retirei uma pequena mala.

Fui ao terrário e as afaguei pelo vidro.

Dei um beijo na testa do meu filho e desci as escadas em silêncio.

Nunca mais olhei para meu marido. Ele tinha algumas lições a aprender e eu as ensinaria.

O motorista me esperava em frente à casa, conforme combinamos.

O carro planava pelas ruas lisas. A sensação de paz me inundava.

A luz de um dos postes iluminou o pequeno lembrete em minhas mãos: um frasco.

Dentro, algumas poucas lava-pés.

Eu não deixaria que elas tomassem meu corpo nunca mais.

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