Tobias

Fabricio Altran
Textos.Hibridos
Published in
2 min readSep 24, 2020
Photo by Victor Grabarczyk on Unsplash

A lembrança mais antiga de Tobias é das nuvens azul e rosa passeando na mão das crianças pela rua.

Na verdade, antes mesmo das cores, lembrava-se do cheiro doce daquela maravilha, e da decepção quando tudo que tinha ao alcance era a grade para lamber.

Quando puxava a memória, sentia o gosto do aço enferrujado na língua e a vontade enorme de dar uma mordiscada naquelas maravilhas coloridas tão distantes. Os irmãos pareciam ignorar e se amontoavam em brincadeiras entrei si, ignorando os humanos.

Mas não ele. Tobias era sério, determinado. Tinha a convicção de que naquele dia encontraria o seu dono. Uma criança com bastante energia, e bem safadinha, para lhe passar petiscos gostosos por baixo da mesa.

Mas a esperança não chega só. Vem logo acompanhada do soco no estômago. Não tardou para que dois dos seus irmãos fossem adotados e deixassem para trás Tobias e mais um filhote da ninhada, menor e raquítico. O que havia de errado consigo? Entendia o irmão ter sobrado, mas ele? Estava saudável, era sério como todo adulto gosta e não fazia ruído. Os barulhentos haviam ido e ele sobrou.

Para sua decepção, dias depois, já no pet shop, o irmão magrelo também foi adotado. Mas não desistiu. Passou a observar o comportamento das outras gaiolas, estudou quem tinha a maior taxa de adoção por rabo abanado e, ao detectar pais em potencial, simulava a alegria abanando o traseiro. Sem sorte.

Tobias então começou a puxar na memória as feiras seguintes. Não se lembrou exatamente quando as cores das nuvens, outrora radiantes, se tornaram pálidas. Foi incapaz de dizer quando desistira de abanar o rabo para as pessoas que passavam em frente a loja. Acostumou-se a ser o mais velho da loja.

Ainda perdido em pensamentos, uma fala do humano que o alimentava chamou a atenção. “Ele já é mais velho, mas é muito comportado”. O rabo abanou novamente com vida própria. Sabia que falavam dele! Aquele humano estava fazendo de tudo para lhe dar um novo lar.

“Ai, não. Ele é preto.”

“Mas moça, ele é de raça pura.”

“Não quero, não gosto de preto.”

Foi ali que entendeu. Era diferente. Não sentia a diferença enquanto convivia com os seus, mesmo sendo o único que puxara ao pai. Não se sentia diferente no amor que tinha para dar aos humanos, pelo contrário, estava cheio dele. Mas foi só ali, depois de adulto, que entendeu que os humanos não estão preparados para apreciar quem lhes quer bem. Foi nesse instante que percebeu estar condenado à solidão, apenas pelo que os olhos vêem.

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