Contágio, por Giorgio Agamben

Ricardo Moura
Textura
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3 min readMar 12, 2020

“Olha o infestador! Pega! Pega! Pega o infestador!”
Alessandro Manzoni, Os noivos

Uma das consequências mais desumanas do pânico que se busca espalhar por todos os meios na Itália durante a chamada epidemia de coronavírus é a própria ideia de contágio, que está na base das medidas excepcionais de emergência adotadas pelo governo. A ideia, estranha à medicina hipocrática, teve seu primeiro precursor inconsciente durante as pragas que assolaram algumas cidades italianas entre 1500 e 1600. É a figura do untore, o infectador, imortalizada por Manzoni em seu romance e no ensaio sobre a “História da Coluna Infame”. Um “anúncio público [grida]” milanês sobre a praga de 1576 os descreve assim, convidando os cidadãos a denunciá-los:

Tendo chegado a notícia ao governador de que algumas pessoas com zelo fraco pela caridade estão a espalhar terror e espanto na cidade de Milão e em seus habitantes disseminando infestações que dizem serem pestíferas e contagiosas às portas e fechaduras das casas e dos cantões dos distritos daquela cidade e de outras partes do Estado para excitá-los a algum tumulto, com o pretexto de levar a praga ao privado e ao público, dos quais resultam muitos inconvenientes, causando não pouca alteração entre as pessoas, ainda mais para aqueles que são facilmente persuadidos a acreditar nessas coisas, fazendo com que cada pessoa seja levada a querer a qualidade, status, grau e condição desejadas. No prazo de quarenta dias, ficarão claros a pessoa ou pessoas que favoreceram, ajudaram ou souberam de tal insolência, se lhes tiverem dado quinhentos escudos

Dadas as diferenças, as disposições recentes (adotadas pelo governo com decretos que gostaríamos de esperar — mas é uma ilusão — não terem sido ratificadas pelo parlamento em leis nos termos previstos) transformam de fato cada indivíduo em um potencial infestador, da mesma maneira que aqueles que lidam com o terrorismo consideram de fato e de direito cada cidadão como um potencial terrorista. A analogia é tão clara que o interlocutor em potencial que não cumprir as prescrições é punido com prisão. Particularmente invisível é a figura do portador saudável ou precoce, que infecta uma multiplicidade de indivíduos sem ser capaz de se defender contra ela. Como alguém poderia se defender contra a infestação.
Ainda mais triste do que as limitações das liberdades implícitas nas disposições é, na minha opinião, a degeneração das relações entre os homens que elas podem produzir. O outro homem, quem quer que seja, mesmo um ente querido, não deve se aproximar ou tocar um ao outro e devemos colocar entre ele e ele uma distância que, segundo alguns, é de um metro, mas, de acordo com as sugestões mais recentes dos chamados especialistas, deve ser de 4,5 metros (esses cinquenta centímetros são interessantes!). Nosso próximo foi abolido. É possível, dada a inconsistência ética de nossos governantes, que essas disposições sejam ditadas pelo mesmo temor que pretendem provocar, mas é difícil não pensar que a situação criada é exatamente a que aqueles que nos governam tentaram realizar repetidamente: que universidades e escolas sejam fechadas de uma vez por todas e que as lições sejam dadas apenas de forma online, que paremos de nos encontrar e conversar por razões políticas ou culturais e apenas troquemos mensagens digitais. E que, tanto quanto for possível, as máquinas substituam todo contato — todo contágio — entre os seres humanos.

Texto publicado no blog de Giorgio Agamben no dia 11 de março de 2020. Link para o texto original https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-contagio

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Ricardo Moura
Textura

Jornalista e cientista social. Interessado nas interfaces desses 2 campos, com ênfase em segurança pública e comunicação para o desenvolvimento.