Expulsos: os humanos na crise do aprofundamento do capitalismo
Saskia Sassen tem se dedicado a compreender as dinâmicas do capitalismo em uma sociedade global. Em seus trabalhos mais recentes, a socióloga holandesa debruça-se sobre uma profunda transformação pela qual o Capital vem passando na duas últimas décadas. Cada vez mais predador, o modo de produção capitalista no século XXI assume-se como uma forma extrativista em que as pessoas não são mais vistas como “consumidoras ou trabalhadoras”, mas como corpos laborais que podem ser descartados tão logo cumpram suas funções. Em texto publicado na revista Journal of World-Systems Research, Sassen aborda o endividamento dos país do Sul e a crise das hipotecas subprime norte-americanas como duas faces de uma mesma moeda, em um processo histórico que se assemelha à acumulação primitiva de terras e bens descritas por Karl Marx, em “O Capital”.
Quando a Guerra Fria estava diminuindo, uma nova luta começou. Após um período de diversas versões keynesianas de redistribuição relativa nas economias de mercado desenvolvidas, os Estados Unidos se tornaram o ator de referência para uma radical reformulação do capitalismo. A chave para essa reformulação foi a expulsão — de pessoas, lugares e economias tradicionais (ver Sassen 2014). Embora esta seja uma condição socioeconômica, é um elemento crítico, mas invisível, da atual crise política. Medir o crescimento econômico para entender se as políticas do governo estão funcionando ou medir a participação política em termos de votação exclui parcelas crescentes de nossa economia política — pessoas, tipos específicos de empresas e circuitos econômicos, bem como espaços. O período keynesiano foi de produção massiva e construção em massa do espaço suburbano: isso trouxe consigo uma lógica econômica que as pessoas foram valorizadas como trabalhadores e consumidores, embora não necessariamente como seres humanos.
A lógica que orienta a atual fase do capitalismo avançado não valoriza as pessoas como trabalhadores ou como (massa) consumidores. Assim, nas duas últimas décadas houve um forte crescimento no número de pessoas que foram “expulsas” da economia em grande parte do mundo. A expansão ativa de um classe média em um período anterior foi substituída pelo empobrecimento e encolhimento do classe média. Isso se manteve de forma extrema em alguns países, especialmente os Estados Unidos e diversos países africanos que já tiveram fortes economias industriais, mas agora se tornaram principalmente economias extrativistas. São as economias impulsionadas pela manufatura e pela construção como a China, e em menor escala a Índia, que hoje estão gerando ativamente classes médias em expansão. Uma questão é se essas novas lógicas de expulsão que examinarei neste ensaio afetarão tais países, não por meio de algum processo de evolução que repita a trajetória do Ocidente, mas por causa de uma lógica econômica global maior que surgiu na década de 1980 e pode envolver países como China e Índia também. Uma maneira de colocar isso é que esses dois países não irão simplesmente replicar as trajetórias econômicas fortes de Japão, Coréia do Sul e Taiwan, com ampla distribuição de benefícios econômicos e sociais. As lógicas de expulsão que marcam o atual período pós-1980 irão contrariar esses potenciais distributivos.
Eu uso o termo “expulso” para descrever uma diversidade de condições. Elas incluem o crescente número de abjetamente pobres, desalojados de países pobres que estão abrigados em campos formais informais de refugiados, das populações minoritárias e perseguidas nos países ricos que são estocadas em prisões, de trabalhadores cujos corpos são destruídos no trabalho e inutilizados em idade demasiada jovem, de “populações excedentes” fisicamente saudáveis, armazenadas em guetos e favelas. Meu argumento é que essa expulsão maciça, na verdade, sinaliza uma transformação sistêmica mais profunda, que é documentada em partes e pedaços em múltiplos estudos especializados, mas não é narrada como uma dinâmica abrangente que nos leva a uma nova fase do capitalismo global. Ela também gerou um tipo emergente de política, marcado pelo uso da rua (Sassen 2011).
Hoje, depois de vinte anos de um tipo particular de capitalismo avançado, confrontamos a paisagem humana e econômica marcada por dinâmicas dualizantes. De um lado: o familiar recondicionamento do terreno no sentido do crescimento da complexidade organizacional e tecnológica, sintetizada pelo estado da arte do espaço das cidades globais do Norte e do Sul. De outro: um conjunto de condições muitas vezes codificadas com o termo aparentemente neutro de “uma crescente população excedente. Uma condição fundamental subjacente a este “excedente” é a crescente expansão do território que é devastado — pela pobreza e doença, por vários tipos de conflito, e por governos tornados disfuncionais pela corrupção aguda e o incapacitante regime de dívida internacional, o que leva a uma extrema incapacidade das pessoas para satisfazer as suas necessidades básicas. Devemos adicionar ainda o acentuado aumento na aquisição de terras, seja por empresas internacionais ou por agências governamentais estrangeiras, que está criando deslocamentos populacionais em massa de aldeias inteiras e de pequenos agricultores.
É essa segunda condição emergente que me preocupa aqui. Ela cai contra a familiar noção de que a nossa modernidade é marcada por um crescimento irresistível na complexidade organizacional e tecnológica. Em vastas extensões do nosso mundo muito moderno, vemos mudanças do complexo para o elementar: do envoltório complexo da terra que é a doutrina da “soberania nacional sobre o território” desembocar em estados-nações enfraquecidos que se tornam uma commodity a ser vendida no mercado. E da complexidade das pessoas como cidadãos, que se tornam pessoas em excesso — armazenadas, deslocadas, traficadas — reduzidas a meros corpos e órgãos laborais.
Expandindo o espaço operacional do capitalismo avançado
A expansão geográfica e o aprofundamento sistêmico das relações capitalistas de produção nos últimos 20 anos levaram a uma seleção brutal de vencedores e perdedores. O desenvolvimento do capitalismo tem sido, desde as suas origens, marcado pela violência, destruição e apropriação, mas também pela construção de um estado regulador, uma vitória para as classes trabalhadoras em dificuldades, e pela expansão de grandes classes médias. Muita atenção foi dedicada à destruição das economias pré-capitalistas através de sua incorporação nas relações capitalistas de produção. O período pós-1980 torna visível outra variante desta apropriação via incorporação — a apropriação de capitalismos tradicionais para promover o aprofundamento do capitalismo avançado. Eu uso esse termo para capturar uma fase dominada por uma lógica financeira. Embutido nesta proposição está o fato de diversas fases de desenvolvimento capitalista e, portanto, a possibilidade de que na fase global de hoje a extensão da relações capitalistas tem seus próprios mecanismos distintos e que eles precisam ser distinguidos de fases nacionais e imperiais mais antigas. Em outro lugar (Sassen 2008a: cap. 1, 8, 9) desenvolvo uma teoria da mudança que tem como núcleo dinâmico o fato de que a condição x ou capacidade y pode deslocar as lógicas organizadoras e, portanto, na verdade a valência mude mesmo que pareça a mesma coisa. Assim, por exemplo, a expulsão maciça de pessoas aludido brevemente acima não é necessariamente mais do mesmo — mais pobres, mais deslocados, mais mobilidade descendente. Pode ser parte de uma nova lógica organizacional que altera a valência e caráter sistêmico da pobreza e mobilidade descendente. Acho que a lógica organizadora deste período pós-keynesiano está agora a tornar legível a sua forma. Um componente extremo dessa lógica diverge drasticamente da “valorização” sistêmica anterior de pessoas como trabalhadores e consumidores. Colocando dramaticamente, é a expulsão de pessoas e a destruição dos capitalismos tradicionais para alimentar as necessidades das altas finanças e da produção capitalista global. Por exemplo, o que é facilmente visto como lógicas tradicionais ou familiares de extração de recursos para atender às necessidades domésticas são, na verdade, novas maneiras de preparar o terreno para o aprofundamento sistêmico do capitalismo avançado.
Um desses casos é o projeto de ajuste estrutural implementado pelas instâncias regulatórias globais, notadamente o FMI, o Banco Mundial e a Organização Mundial do Comércio (OMC), a partir dos anos 1980 e atingindo seu ápice na década de 1990. Meu argumento aqui é que, além da extração muito notória de bilhões de dólares dos países do Sul global na forma dos encargos da dívida, ocorreu um condicionamento sistêmico, com o endividamento servindo como o instrumento para esta disciplina. A segunda é a crise das hipotecas subprime que começou no início dos anos 2000 e explodiu em 2007: 13 milhões de execuções hipotecárias e 9 milhões de famílias despejadas. A maior parte da atenção se foi, e com razão, para as perdas maciças dos indivíduos e famílias com a venda dessas hipotecas, perdas que continuaram até 2014. Nesse caso, meu argumento é, novamente, que além das lógicas de extração sob a forma de pagamentos de hipoteca e taxas de agentes hipotecários, aqui também podemos detectar uma dinâmica emergente fundamental: o uso de um contrato em um ativo material (a hipoteca) como um ingrediente para se fazer um instrumento de investimento complexo para altas finanças.
Central para minha análise é que dentro do próprio capitalismo podemos caracterizar a relação de capitalismo avançado para o tradicional como aquele marcado pela dinâmica predatória e não meramente evolução, desenvolvimento ou progresso. Na sua forma mais extrema isso pode significar a miséria e a exclusão de um número crescente de pessoas que deixam de ser valorizadas como trabalhadores e consumidores. Mas isso também significa que as pequenas burguesias tradicionais e as burguesias nacionais tradicionais cessam de possuir valor. Vejo este último movimento como parte do atual aprofundamento sistêmico das relações capitalistas. Uma forma brutal de dizer isso é dizer que os recursos naturais de grande parte da África e de boas partes da América Latina contam mais do que as pessoas dessas terras contam como consumidores e como trabalhadores. Isso faz parte do aprofundamento sistêmico das relações capitalistas avançadas de produção. Deixamos para trás as variedades dos ciclos keynesianos que prosperaram na expansão acelerada do trabalho próspero e da classe média — embora não nas economias emergentes de hoje, especialmente na Ásia, a valorização da noção keynesiana de pessoas como trabalhadoras e consumidoras foi um elemento crítico para a aprofundamento do capitalismo.
A expulsão de pessoas e a incorporação de terreno
Apesar de suas enormes diferenças, eu diria que as expulsões descritas resumidamente aqui possuem equivalentes sistêmicos — e representam apenas alguns de uma ampla gama desses equivalentes. Além disso, há um considerável potencial de replicação global de alguns deles. Este é o caso para a inovação financeira que destruiu muitos milhões de domicílios nos Estados Unidos, com bairros inteiros devastados. Países como a Hungria, a Espanha e a Letônia experimentaram aumentos acentuados em execuções hipotecárias nos últimos anos. E é o caso da dívida e o regime de encargo da dívida imposto aos países do Sul e sua prioridade sobre todos os outros gastos estatais: o caso da Grécia e de vários outros países do Norte torna isso claro. Ambos as ocorrências podem ser vistas como parte de um processo muito maior de aprofundamento financeiro, a grande dinâmica atual que caracteriza as economias capitalistas avançadas.
Tal aprofundamento exige mecanismos específicos, que podem ser extremamente complexos, como no caso do tipo de hipoteca subprime aqui examinada, ou podem ser bastante elementares, como no regime de encargo da dívida que decolou nos anos 1990 no hemisfério sul e agora se espalhou para o norte global (veja, por exemplo, Panitch 2013). Uma maneira de pensar sobre esse aprofundamento sistêmico é como uma expansão do espaço para o capitalismo avançado: ele expulsa as pessoas tanto no Sul global e no Norte, enquanto incorpora seus espaços. As economias devastadas do Sul global, submetidas a uma década inteira ou duas de encargos de dívida, agora estão sendo incorporados nos circuitos do capitalismo avançado por meio da aquisição acelerada de milhões de hectares de terra por investidores estrangeiros — para produzir alimentos e extrair água e minerais, tudo destinado aos países que investem capital nessa atividade.
Isso também vale para um caso tão radicalmente diferente como a crise das hipotecas, uma dinâmica global majoritariamente do Norte. Vejo a hipoteca subprime como uma extensão do domínio pelo alto financiamento, mas de uma forma que desliga o circuito financeiro da entidade material real que é a casa e, portanto, do bairro e das pessoas que conseguiram a hipoteca. Todas essas materialidades são excluídas desse tipo de articulação de alta finança — o que significa que os bairros devastados também são expulsos do que são, estritamente falando, os tradicionais circuitos do capital. É semelhante a querer apenas os chifres do rinoceronte e jogar fora o resto do animal, desvalorizando-o, não importando suas múltiplas utilidades. Ou usar o corpo humano para coletar alguns órgãos e não ver valor em todos os demais, muito menos o ser humano completo — tudo pode ser descartado. Mas ao contrário dos realinhamentos claros que vemos em vastas extensões do mundo Sul, não está claro como esses espaços urbanos devastados no Norte global serão incorporados nos circuitos do capitalismo avançado.
Esta mudança sistêmica sinaliza que o aumento acentuado dos povos deslocados pela pobreza e pelas mortes por doenças curáveis fazem parte dessa nova fase. As principais características da acumulação primitiva estão operando para propiciar esses aumentos. Para ver esse papel da acumulação primitiva em nosso capitalismo avançado atual dominado por altas finanças, temos de ir além da lógica de extração. Precisamos reconhecer o fato da transformação sistêmica. Uma dessas mudanças sistêmicas de práticas e projetos é a expulsão de pessoas: números crescentes de trabalhadores e consumidores importam menos do que em grande parte do século 20, contribuindo para o padrão descrito por Robinson (2013) como a ascensão dos estados de controle social em todo o mundo.
Tradução: Ricardo Moura.