Fascismo e Pós-fascismo, uma entrevista com Enzo Traverso

Ricardo Moura
Textura
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6 min readFeb 12, 2019

Enzo Traverso é um historiador italiano que tem se dedicado a compreender as questões relacionadas ao totalitarismo. Em seu novo livro, “As novas faces do fascismo”, o autor foca sua atenção em um fenômeno denominado de “pós-fascismo”. Na entrevista que segue, concedida à revista Jacobin, o autor analisa a atual conjuntura a partir do avanço da extrema-direita na Europa e nas Américas. Confira alguns trechos:

Os debates contemporâneos sobre o fascismo e o populismo muitas vezes se atolam na semântica. Em “The New Faces of Fascism”, você adota uma abordagem diferente. Você está mais preocupado em como essas palavras são usadas no discurso público e o que elas podem revelar sobre os “usos públicos da história”. Você pode dizer algumas palavras sobre a inspiração geral para o livro?

Interpretações do passado não podem ser dissociadas de seu uso público no presente. Estou interessado em conceituar o fascismo, mas esse esforço não é apenas historiográfico e não é politicamente “neutro”. Por exemplo, eu faço distinção entre fascismo e populismo: o primeiro é um meio de destruir a democracia, enquanto o segundo é um estilo político que pode tomar direções diferentes, às vezes opostas, mas geralmente está dentro de uma estrutura democrática. Não sei como analisar a noção de fascismo hoje. Há frequentemente um abuso. Normalmente, a ameaça do retorno do fascismo tem sido uma preocupação da esquerda. Hoje, tornou-se um refrão das elites que estão sob ameaça do populismo de direita e do pós-fascismo (pense em Madeleine Albright e Robert Kagan nos EUA, ou Matteo Renzi na Itália). O tipo de frente única “antifascista” que as elites tradicionais propõem, no entanto, esconde sua própria responsabilidade de criar as condições que permitiram que a nova direita radical emergisse e se espalhasse, do Leste para a Europa Ocidental, dos EUA para o Brasil. A inspiração geral para o meu livro está em uma pergunta: o que significa fascismo no século XXI? Devemos considerar o surgimento da nova direita em escala global como um retorno ao fascismo clássico dos anos 1930, ou melhor, como um fenômeno completamente novo? Como definir e contrastar?

Com base no título, pode-se pensar que o livro é sobre “neofascismo”. Em vez disso, você afirma que a tendência à direita na política européia é um fenômeno “pós-fascista”, ligado ao fascismo clássico, mas também distante dele. Você pode explicar brevemente por que a diferença é importante?

O neofascismo, os movimentos que se dizem afiliados ao fascismo clássico, é um fenômeno marginal. Uma das chaves para o sucesso da nova direita radical é a representação de si mesmos como algo novo. Ou não têm origens fascistas (Trump ou Salvini), ou romperam significativamente com seu próprio passado (Marine Le Pen, que baniu seu pai da Frente Nacional).
A nova direita é nacionalista, racista e xenófoba. Na maioria dos países da Europa Ocidental, pelo menos aqueles em que a direita radical está no poder ou se tornou significativamente mais forte, adota uma retórica democrática e republicana. Mudou sua linguagem, sua ideologia e seu estilo.
Em outras palavras, abandonou seus velhos hábitos fascistas, mas ainda não se tornou uma coisa completamente diferente. Ainda não é um componente normal de nossos sistemas políticos.
Por um lado, a nova extrema direita não é mais fascista; por outro, não podemos defini-la sem compará-la ao fascismo. A nova direita é uma coisa híbrida que pode retornar ao fascismo, ou pode se transformar em uma nova forma de democracia populista conservadora, autoritária. O conceito de pós-fascismo tenta capturar isso.
É impossível hoje prever sua evolução futura. Neste ponto, a comparação com o período entre guerras do século XX é importante: em ambos os casos, há uma falta de ordem internacional. O caos após a Grande Guerra foi o resultado de um colapso do chamado “Concerto da Europa” — o liberalismo clássico do século XIX — e hoje é uma consequência do fim da Guerra Fria. O fascismo e o pós-fascismo nasceram dessa situação caótica e flutuante.

Você dá algum crédito a termos como “micro-fascismo” ou outros conceitos que vêem o fascismo como uma dinâmica trans-histórica dentro do capitalismo?

“Micro-fascismo” parece uma definição inadequada, uma vez que estamos diante de um fenômeno global. Como uma democracia autêntica requer igualdade social, podemos dizer que, especialmente na era neoliberal, o capitalismo consiste em “desfazer” a democracia, como Wendy Brown explicou tão bem. Essa é uma tendência geral do próprio capitalismo, não uma de suas patologias ou formas degeneradas. Desde a primeira metade do século XIX, um pensador liberal clássico como Tocqueville entendia que o desenvolvimento do capitalismo ameaçava o que ele considerava a “afinidade eletiva” entre a sociedade de mercado e a democracia. Essa visão de uma identidade entre capitalismo e democracia tornou-se um mito na segunda metade do século XX, na era do welfare state.

De fato, essa “humanização” do capitalismo foi uma consequência da Revolução de Outubro. Após o colapso do socialismo real e o fim da descolonização, o capitalismo redescobriu sua natureza “selvagem”. As desigualdades sociais explodiram em escala global e a democracia começou a esvaziar-se de seu conteúdo.

O fascismo certamente tem um caráter “trans-histórico” — pense nas ditaduras militares na América Latina nos anos 60 e 70 — e não pode ser desconectado do capitalismo, que era uma de suas premissas.

Encarar o fascismo como resultado da crise global do capitalismo não significa considerá-lo como um resultado inevitável. Nos Estados Unidos, o resultado da crise do capitalismo não foi o fascismo. Foi o New Deal. O fascismo pertence a um tempo histórico — o século XX — em que destruiu a democracia.

Hoje, o pós-fascismo perdeu a dimensão subversiva de seus ancestrais: não deseja suprimir o parlamentarismo ou os direitos individuais; em vez disso, tenta destruir a democracia por dentro.

O livro está preocupado principalmente com a Europa. Mesmo suas breves discussões sobre a política americana são principalmente para refutar a ideia de que Trump pode ser entendido através de uma ótica fascista. Você vê alguma aplicabilidade mais ampla para o “regime de historicidade” geral que você está descrevendo? A vitória de Bolsonaro no Brasil nos convida a considerar a escala global do fenômeno pós-fascista

Como muitos observadores apontaram, Trump exibe características tipicamente fascistas: liderança autoritária e carismática, ódio à democracia, desprezo pela lei, exibições de força, desprezo pelos direitos humanos, racismo aberto, misoginia, homofobia. Mas não há um movimento fascista atrás dele. Ele foi eleito candidato do Partido Republicano, que é um pilar do establishment político americano. Essa situação paradoxal não pode se tornar permanente sem colocar em questão a estrutura democrática dos Estados Unidos.
Um dilema semelhante, de forma ainda mais dramática e marcante, está em jogo no Brasil após a eleição de Bolsonaro. Ele é mais radical do que seus colegas americanos ou europeus: enquanto Marine Le Pen rompeu com o anti-semitismo de seu pai e adotou uma retórica democrática, Bolsonaro é um apologista da tortura e da ditadura militar. Enquanto Marine Le Pen e Salvini desejam restabelecer políticas protecionistas, Bolsonaro é um neoliberal fanático.
No entanto, a Petrobras, o pilar do capitalismo brasileiro, não está atrás dele. Como muitos analistas brasileiros apontaram, atrás de Bolsonaro existem três poderosas forças conservadoras: “balas, bois, e biblia” — o exército, os latifundiários e o fundamentalismo evangélico.

Em outras palavras, um verdadeiro movimento fascista clássico combinaria as duas coisas que faltam a Trump e Bolsonaro: a mobilização em massa e o apoio unificado das elites. Isso está correto?

Sim, acho que esta é uma grande diferença que os distingue do fascismo clássico, mesmo que as classes dominantes possam acomodar perfeitamente ambos, especialmente na ausência de qualquer alternativa efetiva. Nos países da UE, no entanto, esta opção não está na agenda deles. Os movimentos de massa militarizados do fascismo clássico foram uma conseqüência da brutalização da política produzida pela Grande Guerra. Hoje, isso ocorre no Iraque, na Líbia, na Síria e no Iêmen, mas não nos países da UE, nos Estados Unidos ou no Brasil. É por isso que o precursor de Trump e Bolsonaro não é nem Mussolini nem Hitler, mas Berlusconi. Mas uma nova crise global pode mudar o perfil da extrema direita em muitos países.

Tradução: Ricardo Moura.

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Ricardo Moura
Textura

Jornalista e cientista social. Interessado nas interfaces desses 2 campos, com ênfase em segurança pública e comunicação para o desenvolvimento.