Gene Sharp, a mente por trás das resistências não-violentas do século XXI (parte 1)

Ricardo Moura
Textura
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4 min readDec 22, 2018
Gene Sharp

Morto em fevereiro deste ano, aos 90 anos, o professor de Ciências Políticas da Universidade de Massachussets, Gene Sharp, era relativamente desconhecido do grande público. Suas ideias, no entanto, vêm sacudindo o mundo ao inspirar “primaveras” em diversos pontos do globo. Os nomes das obras já sugerem o viés de seu pensamento: “Da ditadura à democracia”, “Políticas de ação não-violenta” e “198 métodos de ação não-violenta”.

O legado de Sharp, contudo, está sob disputa. Há quem diga que seus ensinamentos alinham-se à estratégia de dominação mundial dos EUA e houve quem o temesse por fazer circular informações estratégicas até então restritas aos altos círculos do poder. Independentemente do uso feito, suas ferramentas políticas são afiadas como o significado de seu nome em inglês. Conhecê-las é tarefa urgente, seja para aplicá-las contra regimes autoritários seja para compreender como agem as grandes potências no processo de desestabilização de regimes políticos adversários. O blog publica a seguir trechos de sua obra clássica “Da ditadura à democracia”, escrito em 1993:

A violência resolve?

“Quaisquer que sejam os méritos da opção violenta, no entanto, um ponto está claro. Ao colocar a confiança em meios violentos, escolhe-se o próprio tipo de luta com a qual os opressores quase sempre têm superioridade. Os ditadores estão equipados para aplicar a violência esmagadoramente. Por mais longa ou breve que seja a atuação violenta dos democratas, as duras realidades do poderio militar geralmente se tornam inescapáveis. Os ditadores quase sempre têm superioridade em equipamentos militares, munições, transporte e o tamanho das forças militares. Apesar da bravura, as forças democratas (quase sempre) não se equivalem a isso.
Quando a rebelião militar convencional é reconhecida como irrealista, alguns dissidentes favorecem a guerra de guerrilha. No entanto, a guerra de guerrilha raramente, ou nunca, beneficia a população oprimida ou introduz uma democracia. A guerra de guerrilha não é uma solução óbvia, particularmente dada a tendência muito forte em direção a imensas baixas entre um povo próprio. A técnica não é garantia contra falhas, apesar de apoiar a teoria e análises estratégicas, e às vezes contar com apoio internacional. Lutas de guerrilha geralmente duram muito tempo. Populações civis são frequentemente deslocadas pelo governo, com imenso sofrimento humano.

E um golpe de Estado?

Um golpe militar contra uma ditadura pode parecer relativamente uma das maneiras mais fáceis e rápidas de remover um regime particularmente repugnante. No entanto, existem problemas muito sérios com essa técnica. Mais importante ainda, deixa em vigor a existente má distribuição de poder entre a população e a elite que controla o governo e suas forças militares. A remoção de pessoas particulares dos cargos que governam mais provavelmente apenas permitirá que outro grupo tome seu lugar. Teoricamente, esse grupo pode ser mais suave em seu comportamento e ser aberto de forma limitada às reformas democráticas. No entanto, o oposto é o provável.
Depois de consolidar sua posição, o novo grupo pode acabar ser mais implacável e mais ambicioso que o antigo. Consequentemente, o novo grupo — no qual as esperanças podem ter sido colocadas — será capaz de fazer o que quiser, sem preocupação com a democracia ou direitos humanos. Essa não é uma resposta aceitável para o problema da ditadura.

Encarando a dura verdade

A conclusão é dura. Quando alguém quer derrubar uma ditadura de forma mais eficaz e com o menor custo, tem-se então quatro tarefas imediatas:
• É preciso fortalecer a própria população oprimida em sua determinação, autoconfiança e habilidades de resistência;
• É preciso fortalecer os grupos sociais e instituições independentes do povo oprimido;
• É preciso criar uma poderosa força de resistência interna; e
• É preciso desenvolver um sábio plano estratégico para a libertação e implementá-lo habilmente.

Praça Tahir, epicentro da primavera árabe

Fontes necessárias de poder político

O princípio é simples. Ditadores exigem a assistência do povo que eles governam, sem o qual eles não podem garantir e manter as fontes do poder político. Essas fontes de poder político incluem:
• Autoridade, a crença entre as pessoas de que o regime é legítimo e que têm o dever moral de obedecê-lo;
• Recursos humanos, o número e a importância das pessoas e grupos que estão obedecendo, cooperando ou fornecendo
assistência aos governantes;
• Competências e conhecimentos, necessários ao regime para realizar ações específicas e fornecidas pelas pessoas que colaboraram e grupos;
• Fatores intangíveis, fatores psicológicos e ideológicos que podem induzir as pessoas a obedecer e ajudar os governantes;
• Recursos materiais, o grau em que os dirigentes controlam ou tem acesso à propriedade, recursos naturais, recursos financeiros, o sistema econômico e os meios de comunicação e transporte; e
• Sanções, punições, ameaças ou aplicadas contra quem desobedece ou não coopera para garantir a submissão e cooperação necessárias para que o regime exista e execute suas políticas.

Todas essas fontes, no entanto, dependem da aceitação do regime, da submissão e obediência da população e da cooperação de inumeráveis ​​pessoas e das muitas instituições da sociedade. Esses não são garantidos.
A total cooperação, obediência e apoio aumentarão a disponibilidade das fontes de energia necessárias e, consequentemente, expandirão a capacidade de poder de qualquer governo.
Por outro lado, a retirada da cooperação popular e institucional a agressores e ditadores diminui e pode cessar a disponibilidade das fontes de poder das quais todos os governantes dependem.
Sem disponibilidade dessas fontes, o poder dos governantes enfraquece e finalmente dissolve-se.

Tradução: Ricardo Moura.

P.S. Para saber mais, um documentário foi feito sobre a obra de Gene Sharp com o sugestivo título “Como iniciar uma revolução?”.

https://www.youtube.com/watch?v=jpPz3liDGZk

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Ricardo Moura
Textura

Jornalista e cientista social. Interessado nas interfaces desses 2 campos, com ênfase em segurança pública e comunicação para o desenvolvimento.