Pequeno manual de guerrilha em época de Guerras híbridas

Ricardo Moura
Textura
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4 min readOct 15, 2018

Estamos em meio a uma guerra híbrida. Para quem defende a democracia e os direitos humanos, chegamos bem tarde ao front digital. As mobilizações que ocorrem desde a semana passada teriam de ter começado há mais tempo, quando os focos de descontentamento e o rastilho deixado pelas fake news eram mais contornáveis. Mas o que temos para hoje é lutar do jeito que dá, conforme nossas capacidades. Os meios mobilizados pela direita protofascista foram testados e comprovados pela Rússia e durante a campanha à presidência de Trump.

A RAND Corporation, uma instituição “think tank” que desenvolve pesquisas e análises para o Departamento de Defesa dos Estados Unidos, vem monitorando a disseminação de táticas e movimentos de guerra híbrida entre adversários da Casa Branca. O conhecimento acumulado pelos pesquisadores da entidade pode nos ajudar a lidar com esse verdadeiro leviatã de mentiras e meias-verdades.

O texto que segue é uma síntese da seção final do artigo The Russian “Firehose of Falsehood” Propaganda Model: Why It Might Work and Options to Counter It, de Christopher Paul e Miriam Matthews. Trata-se de um esforço de sistematizar conhecimentos e práticas eficazes contra a “mangueira de incêndio da falsidade” para que possamos ir mais além que a mera constatação de que estamos bem encrencados.

Se sai melhor quem atira primeiro

O primeiro passo é reconhecer que este é um desafio não trivial. De fato, os próprios fatores que tornam efetiva a eficácia da falsidade também dificultam enfrentá-la. Os benefícios persuasivos que os propagandistas russos ganham ao apresentar a primeira versão dos eventos (que então devem ser desalojados por relatos verdadeiros em um esforço muito maior) poderiam ser suprimidos se os relatos verdadeiros fossem apresentados primeiro. Demora menos tempo para criar fatos do que para verificá-los.

Nós não estamos otimistas sobre a eficácia da tradicional contrapropaganda. Certamente, algum esforço deve ser feito no sentido de apontar falsidades e inconsistências, mas a mesma evidência psicológica que mostra como a falsidade e a inconsistência ganham tração também nos diz que as retratações e refutações são raramente eficazes. Especialmente depois que uma quantidade significativa de tempo passou, as pessoas terão dificuldade em lembrar quais informações recebidas é a desinformação e qual é a verdade. Simplificando, nossa primeira sugestão não espere contrapor a mangueira da falsidade com uma pistola de água de verdade.

Três fatores são apresentados para aumentar a (limitada) eficácia das retratações e refutações: (1) avisos no momento da exposição inicial a desinformação, (2) repetição da retratação ou refutação e (3) correções que fornecem uma história alternativa para ajudar a preencher a lacuna resultante na compreensão quando “fatos falsos” são removidos.

Avisar é talvez mais eficaz do que retratações ou refutação de propaganda que já foi recebida. A pesquisa sugere dois caminhos possíveis:

1) Os propagandistas ganham vantagem ao oferecer a primeira impressão, o que é difícil de superar. Se, no entanto, potenciais audiências já foram preparadas com informações corretas, a desinformação se encontra no mesmo papel de uma retratação ou refutação: desfavorecida em relação ao que já é conhecido.

2) Quando as pessoas resistem à persuasão ou à influência, esse ato reforça suas crenças preexistentes. Pode ser mais produtivo destacar as maneiras pelas quais os propagandistas tentar manipular o público, em vez de lutar contra manipulações específicas.

Nossa segunda sugestão é encontrar maneiras de ajudar a colocar capas de chuva naqueles a quem a mangueira da falsidade está sendo dirigida.

Foco nos efeitos, não na contrapropaganda

Outra possibilidade é se concentrar em combater os efeitos da propaganda russa, em vez da propaganda em si. Os propagandistas estão trabalhando para realizar alguma coisa. O objetivo pode ser uma mudança de atitude, de comportamentos ou ambos. Identifique os efeitos desejados e, em seguida, trabalhe para combater os efeitos que corram de forma contrária aos seus objetivos.

Em vez de apenas tentar contrariar a desinformação com outras informações, pode ser possível contrariar os efeitos desejados com outras capacidades — ou simplesmente aplicar informações para redirecionar comportamentos ou atitudes sem nunca se envolver diretamente com a propaganda.

Não direcione seu fluxo de informação diretamente de volta à mangueira de incêndio da falsidade. Em vez disso, aponte seu fluxo em qualquer que seja o objetivo da mangueira e tente empurrar essa audiência em direções mais produtivas.

Aumente o fluxo de informação persuasiva e comece a competir, buscando gerar efeitos que apoiem seus objetivos.

Restringir os meios técnicos da desinformação

Nossa quinta e última sugestão para enfrentar o desafio da propaganda russa é usar vários meios técnicos para transformar o (ou abaixar) o fluxo: engarrafando, corrompendo, degradando, destruindo, usurpando, ou de alguma outra forma interferindo com a capacidade dos propagandistas para transmitir e divulgar suas mensagens poderia diminuir o impacto dos seus esforços.

Glossário

Guerra híbrida. Estratégia militar que mescla táticas de guerra política, guerra convencional, guerra irregular, e ciberguerra com outro métodos de influência, tais como fake news, diplomacia, lawfare e intervenção eleitoral externa.

Mangueira de incêndio da falsidade. Fluxo de informações distorcidas e mentiras inspirado no modelo russo contemporâneo de propaganda, pois contém grande quantidade de canais para disseminar mensagens e não tem pudor nenhum em fazê-lo com informações distorcidas e mentiras descaradas. Ver: https://www.vice.com/pt_br/article/zm98ky/o-que-e-firehosing-e-como-o-cla-bolsonaro-se-aproveita-disso

Para saber mais:

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Ricardo Moura
Textura

Jornalista e cientista social. Interessado nas interfaces desses 2 campos, com ênfase em segurança pública e comunicação para o desenvolvimento.