Ursula K. Le Guin e a natureza transitória do poder do capitalismo

Ricardo Moura
Textura
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2 min readOct 5, 2023

Discurso de Aceite da Medalha da National Book Foundation pela Distinta Contribuição às Letras Americanas

Aos doadores desta bela recompensa, meus sinceros agradecimentos. Minha família, meus agentes, meus editores, sabem que minha presença aqui é obra deles tanto quanto minha, e que essa bela recompensa é deles tanto quanto minha. E eu me regozijo em aceitá-la para, e compartilhá-la com, todos os escritores que foram excluídos da literatura por tanto tempo — meus colegas autores de fantasia e ficção científica, escritores da imaginação, que por cinquenta anos viram as belas recompensas irem para os chamados realistas.

Tempos difíceis estão chegando, quando precisaremos das vozes de escritores que possam ver alternativas à forma como vivemos agora, que possam ver através da nossa sociedade amedrontada e das suas tecnologias obsessivas para outras formas de ser, e até mesmo imaginar razões reais para a esperança. Precisaremos de escritores que possam se lembrar da liberdade — poetas, visionários — realistas de uma realidade maior.

Agora mesmo, precisamos de escritores que conheçam a diferença entre a produção de uma mercadoria de mercado e a prática de uma arte. Desenvolver material escrito para atender às estratégias de vendas a fim de maximizar o lucro corporativo e a receita publicitária não é a mesma coisa que publicação de livros responsável ou autoria.

No entanto, vejo departamentos de vendas assumindo o controle do editorial. Vejo minhas próprias editoras, em um pânico bobo de ignorância e ganância, cobrando das bibliotecas públicas por um e-book 6 ou 7 vezes mais do que cobram dos clientes. Acabamos de ver um aproveitador tentar punir uma editora por desobediência e escritores ameaçados por fatwa corporativa. E eu vejo muitos de nós, os produtores, que escrevemos e fazemos os livros, aceitando isso — deixando que os aproveitadores das commodities nos vendam como desodorante e nos digam o que publicar, o que escrever.

Os livros não são apenas commodities; o motivo do lucro muitas vezes está em conflito com os objetivos da arte. Vivemos no capitalismo, seu poder parece inescapável — mas também [assim era] o direito divino dos reis. Qualquer poder humano pode ser resistido e mudado por seres humanos. A resistência e a mudança muitas vezes começam na arte. Muitas vezes na nossa arte, a arte das palavras.

Tive uma longa carreira como escritora, e uma boa, em boa companhia. Aqui, no final dela, não quero ver a literatura americana ser vendida rio abaixo. Nós que vivemos da escrita e da publicação queremos e devemos exigir nossa parte justa dos lucros; mas o nome da nossa bela recompensa não é lucro. Seu nome é liberdade.

Obrigada.

Ursula K. Le Guin 19 de novembro de 2014

Tradução: Ricardo Moura

Link do texto original: https://www.ursulakleguin.com/nbf-medal#:~:text=We%20live%20in%20capitalism%2C%20its,art%2C%20the%20art%20of%20words.

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Ricardo Moura
Textura

Jornalista e cientista social. Interessado nas interfaces desses 2 campos, com ênfase em segurança pública e comunicação para o desenvolvimento.