Walter Benjamin, o contador de histórias

Ricardo Moura
Textura
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5 min readSep 25, 2018

O Walter Benjamin filósofo e crítico da cultura é uma figura amplamente conhecida para quem trafega nas áreas de comunicação, filosofia e arte. Há, no entanto, uma persona mais obscura que só recentemente veio à tona: Benjamin, o contista. Em 2016, foi publicado pela editora Verso Books o livro “Storyteller: Tales Out of Loneliness”, que reúne uma série de obras ficcionais benjaminianas. O blog Textura apresenta a traduções de dois desses contos.
Boa leitura!

Paul Klee — Die Fasady

Em uma cidade velha e grande (fragmento de novella)

Lá uma vez vivia um comerciante em uma grande, velha cidade. A casa dele ficava em um das partes mais velhas da cidade, num beco estreito e sujo. E nesse beco, onde todas as casas eram tão velhas que não poderiam mais ficar em pé sozinhas, mas tinham de se encostar uma contra a outra, a casa do comerciante era a mais velha. Mas era também a maior. Com sua poderosa porta, alta e arqueada, janelas curvadas pelos mosquiteiros semicerrados e o telhado íngreme em que estreitas claraboias pequenas foram assentadas, a casa do comerciante, a última casa em Mariengasse, parecia bastante estranha. Esta era uma cidade piedosa e muitas das casas tinham bonitas esculturas da Virgem Santa ou algum outro santo sobre suas portas ou debaixo de seus telhados. Em Mariengasse, cada casa também tinha seu santo — só a casa do comerciante permanecia nua e cinza sem qualquer adorno. Ninguém vivia na casa grande exceto o comerciante e uma pequena menina de oito anos de idade. A garota não era sua filha, mas vivia com ele. O comerciante a trouxera e a criança ajudava-o nos afazeres domésticos. Como ela foi parar na casa dele ninguém sabia realmente. O comerciante não era um merceeiro comum de quem as pessoas compravam roupas ou especiarias. Não! Nem ele convivia com os moradores pobres, comuns de sua rua. Dia sim, dia não, ele sentava em seu grande estúdio com armários altos e prateleiras compridas e fazia suas contas e cálculos, pois seu negócio estendia-se por mares até terras vastas e distantes. Nos intervalos — talvez uma ou duas vezes por ano — ele tinha de deixar sua casa por um período extenso, quando seus assuntos de negócios convocavam-no para bem longe. Nessas vezes, a garota ficava sozinha em casa e tomava conta dos afazeres. Um dia o senhor-comerciante ficou, mais uma vez, diante da garota para lhe dizer que estaria deixando o lar por algum tempo. “Não sei quando irei retornar”, disse. “Tome conta da casa como você já fez antes — mas”, interrompeu a si mesmo, “vejo que está com idade o suficiente. Durante a minha ausência você pode fazer o que desejar na casa. Tome aqui as chaves”. A garota, que até aquele momento tinha permanecido em silêncio na frente dele, mirando com os olhos arregalados as estranhas e coloridas flores bordadas nas roupas do senhor-comerciante, olhou para cima e pegou as chaves. De súbito, o senhor-comerciante olhou para ela decidido. Então, falou num tom de voz severo: “Você sabe muito bem que pode usar as chaves somente para os cômodos destinados às tarefas domésticas. Nunca se deixe cair na tentação de subir para o andar de cima. Entendeu?” Timidamente a garota assentiu. Então o comerciante se abaixou, beijou-a, olhou-a mais uma vez com um olhar penetrante, desceu as escadas e partiu. A porta de entrada bateu atrás dele com um estrondo. A garota ainda estava em pé nos degraus em transe, olhando para o grande molho de chaves antigas que segurava em sua mão.
Walter Benjamin, 1906–1912, texto não-publicado em vida. In: Gesammelte Schriften VII, 635–6.

Paul Klee — Die Hexe mit dem Kamm

A manhã da imperatriz

Pessoas saudáveis devem se voltar para os livros dos poetas a fim de sentir a vida em toda sua profundidade e indivisa soberania, que não pode ser compreendida intencionalmente, como sentia aquela indisposta Imperatriz do México no terceiro dia de primavera no ano 18--. Ela foi trazida a esse palácio há tanto tempo que ninguém poderia dizer o quanto. Quem mesmo imaginaria que ela estava doente? Nenhuma de suas damas ou servas — todos levavam vidas aborrecidas no interior desse palácio e só raramente tendiam ao excesso — acreditaria. Uma pessoa que chegava àquele belo e envelhecido corpo requeria todo o cuidado que os servos poderiam oferecer. Ela era amada por todos por seu esplendor. Os fazendeiros do entorno do Palácio Drux contavam histórias dessa Imperatriz que era estrangeira e que só deveria vir a morrer naquele imenso palácio que se erguia sobre as planícies da Holanda.
A Imperatriz não pensava na morte e nem sentia a agitação da vida ao seu redor, mas poderia ser chamada, adequadamente, de uma mente inquieta. Toda manhã quando o sol se punha, ela perseguia novamente uma questão que a assombrava como os largos caminhos que se transformam no crepúsculo. Essa questão era secreta e embora a Imperatriz tivesse divulgado-a às pessoas que interagiam com ela, as únicas respostas que recebia eram evasivas, desculpas incompreendidas, quase suficiente para enfurecê-la — Então a Imperatriz desceu mais e mais fileiras com a questão: da dama de companhia à camareira, da camareira ao estribeiro, do estribeiro ao cozinheiro e, finalmente, às crianças. E, de fato, as crianças pareciam compreender a questão dela, mas ela compreendia tão pouco a linguagem das crianças quanto a de um trovão, embora tenha sempre pedido isso a Deus enquanto se ajoelhava em um banquinho de oração na janela. Em uma cripta no porão do palácio, escura e repleta de garrafas de vinho — a Imperatriz lutava mais profundamente com a questão. Encurvada, sua figura alta sob o teto baixo, ela tinha formado um conjunto de balanças com fios e pequenas tigelas de lata. Ela considerava essas balanças precisas o bastante para examinar o peso do mundo. E essa era sua questão.
Walter Benjamin, 1906–1912, texto não-publicado em vida. In:
Gesammelte Schriften VII, 642–3.

Tradução Ricardo Moura.

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Ricardo Moura
Textura

Jornalista e cientista social. Interessado nas interfaces desses 2 campos, com ênfase em segurança pública e comunicação para o desenvolvimento.