With the Beatles

Ricardo Moura
Textura
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35 min readMar 1, 2020

Conto mais recente do escritor japonês Haruki Murakami aborda relação com os Beatles, o fenômeno do envelhecimento e pessoas que se foram jovens demais

Capa do LP “With the Beatles”, de 1963

O que acho estranho em envelhecer não é que fiquei mais velho. Nem que o meu eu jovem do passado tenha envelhecido sem eu perceber. O que me pega de surpresa é, antes de tudo, como pessoas da mesma geração que eu envelhecemos, como todas as garotas bonitas e animadas que eu conhecia agora têm idade suficiente para ter um par de netos. É um pouco desconcertante — triste, até. Embora nunca me sinta triste pelo fato de ter envelhecido da mesma forma.

Acho que o que me deixa triste acerca das garotas que conheci envelhecendo é que isso me obriga a admitir, mais uma vez, que meus sonhos juvenis se foram para sempre. A morte de um sonho pode ser, de certa forma, mais triste do que a de um ser vivo.

Há uma garota, uma mulher que costumava ser uma garota, de quem me lembro bem. Eu não sei o nome dela, no entanto. E, naturalmente, não sei onde ela está agora ou o que está fazendo. O que eu sei sobre ela é que ela estudou na mesma escola de ensino médio que eu, e foi no mesmo ano (já que o distintivo em sua camiseta era da mesma cor que o meu), e que ela realmente gostava dos Beatles.

Isso foi em 1964, no auge da beatlemania. Era início do outono. O novo semestre da escola havia começado e as coisas estavam começando a se tornar uma rotina novamente. Ela estava correndo pelo corredor longo e escuro do prédio da velha escola, com a saia esvoaçante. Eu era a única outra pessoa lá. Ela estava segurando um LP no peito como se fosse algo precioso. O LP With the Beatles. Aquele com a impressionante fotografia em preto e branco dos quatro Beatles à meia sombra. Por alguma razão, não sei qual, tenho uma lembrança clara de que era a versão original britânica do álbum, não a americana ou a japonesa.

Ela era uma garota bonita. Pelo menos para mim, ela parecia linda. Ela não era alta, mas tinha longos cabelos pretos, pernas finas e uma fragrância adorável. (Isso pode ser uma lembrança falsa, eu não sei. Talvez ela não tenha emitido nenhum perfume. Mas é disso que eu lembro, como se, quando ela passasse, uma fragrância encantadora e sedutora flutuasse em minha direção). Ela me enfeitiçou — aquela garota linda e sem nome segurando With the Beatles no peito.

Meu coração começou a bater forte, ofeguei, e era como se todo o som tivesse cessado, como se eu tivesse afundado até o chão de uma piscina. Tudo o que eu podia ouvir era um sino tocando levemente, no mais profundo dos meus ouvidos. Como se alguém estivesse tentando desesperadamente me enviar uma mensagem vital. Tudo isso levou apenas dez ou quinze segundos e acabou antes que eu percebesse, e a mensagem crítica contida ali, como o núcleo de todos os sonhos, desapareceu.

Um corredor mal iluminado em uma escola, uma garota bonita, a barra da saia girando: With the Beatles.

Essa foi a única vez que vi aquela garota.

Nos dois anos desde então até a minha formatura, nunca mais nos cruzamos. O que é bem estranho se você pensar sobre isso. A escola pública de ensino médio que frequentei era bastante grande e ficava no topo de uma colina em Kobe, com cerca de 650 alunos em cada série. (Nós éramos a chamada geração baby boomer, então havia muitos de nós.) Nem todo mundo se conhecia. Na verdade, eu não sabia os nomes e nem reconhecia a grande maioria das crianças na escola. Mas, ainda assim, desde que eu frequentava a escola quase todos os dias, e costumava usar aquele corredor, me pareceu quase ultrajante o fato de nunca mais ter visto aquela garota bonita novamente. Eu a procurei toda vez que usei aquele corredor.

Teria desaparecido, como fumaça? Ou, naquela tarde do início do outono, eu não tinha visto uma pessoa real, mas algum tipo de visão? Talvez eu tivesse a idealizado em minha mente no instante em que passamos um pelo outro, a ponto de, mesmo que eu a visse novamente, não a reconhecesse? (Acho que a última possibilidade é a mais provável).

Mais tarde, conheci algumas mulheres e saí com elas. E toda vez que eu conhecia uma nova mulher, parecia que eu estava inconscientemente desejando reviver aquele momento deslumbrante que vivi em um corredor escuro da escola no outono de 1964. Aquela emoção silenciosa e insistente em meu coração, a sensação ofegante em meu peito, o sino tocando suavemente nos meus ouvidos.

Às vezes eu era capaz de recuperar esse sentimento, outras vezes não. Por vezes eu consegui agarrá-lo apenas para deixá-lo escorregar pelos meus dedos. De qualquer forma, as emoções que surgiram quando isso aconteceu serviram como um tipo de indicador com o qual eu costumava medir a intensidade do meu desejo.

Quando não conseguia sentir essa sensação no mundo real, deixava silenciosamente minha memória desses sentimentos despertarem dentro de mim. Dessa forma, a memória se tornou uma das minhas ferramentas emocionais mais valorizadas, até mesmo como um meio de sobrevivência. Como um gatinho quente, suavemente enrolado dentro de um bolso enorme, adormecido.

Para os Beatles.

Um ano antes de eu ver aquela garota foi quando os Beatles se tornaram muito populares. Em abril de 1964, eles conquistaram os cinco primeiros lugares nas paradas norte-americanas de singles. A música pop nunca tinha visto nada assim. Essas foram as cinco músicas de sucesso daquele período: (1) “Can’t Buy Me Love”; (2) “Twist and Shout”; (3) “She Loves You”; (4) “I Want to Hold Your Hand”; e (5) “Please please Me”. Só o single “Can’t Buy Me Love” tinha mais de dois milhões de encomendas prévias, tornando-se platina dupla antes mesmo que a gravação chegasse às lojas.

Os Beatles também eram, obviamente, muito populares no Japão. Ligue o rádio e é provável que você ouça uma de suas canções. Eu gostava das músicas e conhecia todos os hits. Peça-me para cantá-las que eu consigo. Em casa, quando estava estudando (ou fingindo estudar), na maioria das vezes eu deixava o rádio estrondando. Mas, verdade seja dita, nunca fui um fervoroso fã dos Beatles. Nunca procurei ativamente pelas músicas deles. Para mim, era uma escuta passiva, música pop saindo dos minúsculos alto-falantes do meu rádio transistor Panasonic, de um ouvido a outro, quase sem registro. Música de fundo para a minha adolescência. Papel de parede musical.

No ensino médio e na faculdade, eu não comprei um único disco dos Beatles. Eu gostava muito mais de jazz e de música clássica, e era isso que ouvia quando queria me concentrar na música. Economizei para comprar discos de jazz, pedi canções de Miles Davis e Thelonious Monk em bares e fui a concertos de música clássica.

Isso pode parecer estranho, mas foi só aos trinta e poucos anos que me sentei e ouvi With the Beatles do começo ao fim. Apesar do fato de que a imagem da garota carregando aquele LP no corredor de nossa escola nunca me deixou, por muito tempo eu não senti vontade de ouvi-lo. Eu não estava particularmente interessado em saber que tipo de música estava gravada nas ranhuras do disco de vinil que ela havia apertado com tanta força no peito.

Quando eu tinha trinta e poucos anos, bem passado a infância e a adolescência, minha primeira impressão do álbum foi que não era tão bom ou, pelo menos, não era o tipo de música que tira seu fôlego. Das quatorze faixas do álbum, seis eram covers de obras de outros artistas: “Please Mr. Postman”, da Marvelettes, e “Roll Over Beethoven”, de Chuck Berry, foram bem-feitas e me impressionam mesmo quando as ouço agora, mas, mesmo assim, eram versões. E das oito músicas originais, à exceção de “All My Loving”, do Paul, nenhuma era incrível. Não houve singles de sucesso e, para meus ouvidos, o primeiro álbum dos Beatles, “Please Please Me”, gravado basicamente em uma tomada, era muito mais vibrante e atraente. Mesmo assim, provavelmente graças ao desejo inesgotável dos fãs dos Beatles por novas músicas, esse segundo álbum estreou no primeiro lugar no Reino Unido, posição que ocupou por vinte e uma semanas. (Nos EUA, o título do álbum foi alterado para “Meet the Beatles” e incluía algumas faixas diferentes, embora o design da capa permanecesse praticamente o mesmo).

O que me atraiu foi a visão daquela garota segurando o álbum como se fosse algo de valor inestimável. Remova a fotografia na capa do álbum e a cena talvez não tivesse me enfeitiçado como veio a ocorrer. Havia a música, com certeza. Mas havia algo mais, algo muito maior. E, em um instante, esse quadro estava gravado em meu coração — um tipo de paisagem espiritual que só podia ser encontrada lá, em uma idade definida, em um local definido e em um determinado momento.

Para mim, o principal evento do ano seguinte, 1965, não foi o presidente Johnson ordenando o bombardeio do Vietnã do Norte e a escalada da guerra, ou a descoberta de uma nova espécie de gato selvagem na ilha de Iriomote, mas o fato de que eu arrumei uma namorada.

Ela estava na mesma classe que eu no primeiro ano, mas foi somente no período seguinte que começamos a sair. A fim de evitar qualquer mal-entendido, gostaria de fazer uma introdução dizendo que não sou bonito e nunca fui um atleta de destaque, e que minhas notas na escola eram menos do que estelares. Meu canto também deixou algo a desejar, e eu não tinha jeito com as palavras. Quando eu estava na escola, e nos anos seguintes, nunca tive garotas se reunindo ao meu redor. Essa é uma das poucas coisas que posso dizer com certeza nesta vida incerta. Ainda assim, sempre parecia haver uma garota que, por qualquer motivo, era atraída por mim. Não tenho ideia do porquê, mas pude desfrutar de momentos agradáveis ​​e íntimos com essas garotas. Fui um bom amigo de algumas, e ocasionalmente levei isso para o próximo nível. A garota de quem estou falando aqui foi uma delas — a primeira garota com quem tive um relacionamento muito próximo.

Essa minha primeira namorada era pequena e charmosa. Naquele verão, eu saía com ela uma vez por semana. Uma tarde, beijei seus lábios pequenos e cheios e toquei seus seios através do sutiã. Ela estava usando um vestido branco sem mangas e seu cabelo tinha um perfume cítrico de xampu.

Ela quase não tinha interesse nos Beatles. Ela também não gostava de jazz. O que ela gostava de ouvir era música mais suave, o que você poderia chamar de música de classe média — Orquestra Mantovani, Percy Faith, Roger Williams, Andy Williams, Nat King Cole dentre outros. (Na época, “classe média” não era um termo depreciativo). Havia pilhas de gravações do gênero em sua casa — no que hoje em dia é classificado como easy listening.

Naquela tarde, ela colocou um vinil no aparelho toca disco de sua sala de estar — a família dela tinha um sistema estéreo imenso e impressionante — nos sentamos em um grande e confortável sofá e nos beijamos. A família dela tinha saído para algum lugar e éramos apenas nós dois ali. Na verdade, em uma situação como essa, eu realmente não me importo com o tipo de música que está tocando.

Do que me lembro do verão de 1965 era seu vestido branco, o perfume cítrico de seu xampu, a sensação formidável de seu sutiã de arame (um sutiã naquela época era mais uma fortaleza do que uma peça de roupa íntima) e a elegante performance do tema do filme Amores Clandestinos [no original em inglês, A Summer Place], de Max Steiner, pela Percy Faith Orchestra. Mesmo agora, sempre que ouço essa música, aquele sofá me vem à mente.

De forma incidental, vários anos depois — 1968, pelo que me lembro, na mesma época em que Robert Kennedy foi assassinado — o homem que fora nosso professor de sala se enforcou em um das vigas da própria casa. Ele ensinava estudos sociais. Dizia-se que um impasse ideológico foi a causa de seu suicídio.

Um impasse ideológico?

Mas é verdade — no fim dos anos sessenta, as pessoas às vezes tiravam suas próprias vidas porque batiam em uma parede, ideologicamente. Embora não com tanta frequência.

Tenho uma sensação realmente estranha quando penso que naquela tarde, enquanto minha namorada e eu estávamos desajeitadamente nos beijando no sofá, com a bela música de Percy Faith em segundo plano, o professor de estudos sociais estava, passo a passo, caminhando em direção a um beco sem saída ideológico fatal, ou, em outras palavras, em direção àquele nó apertado e silencioso na corda. Eu até me sinto mal por isso às vezes. Entre todos os professores que eu conhecia, ele era um dos melhores. Se ele foi bem-sucedido ou não, é outra questão, mas ele sempre tentou tratar seus alunos de maneira justa. Eu nunca falei com ele fora da sala de aula, mas foi assim que me lembrei dele.

Como 1964, 1965 foi o ano dos Beatles.

Eles lançaram “Eight Days a Week” em fevereiro, “Ticket to Ride” em abril, “Help!” em julho e “Yesterday” em setembro — todos os quais lideraram as paradas dos EUA. Parecia que estávamos ouvindo a música deles quase todo o tempo. Estava por toda parte, ao nosso redor, como um papel meticulosamente aplicado a cada centímetro das paredes.

Quando a música dos Beatles não estava tocando, eram os Rolling Stones “(I Can’t Get No) Satisfaction”, ou “Mr. Tambourine Man”, dos Byrds, ou “My Girl”, dos Temptations, ou “You’ve Lost That Lovin’ Feelin”, dos Righteous Brothers, ou “Help Me, Rhonda”, dos Beach Boys. Diana Ross e as Supremes também lançaram um sucesso após o outro. Era uma trilha sonora constante desse tipo de música maravilhosa e alegre filtrada pelo meu pequeno rádio transistor Panasonic. Foi realmente um ano espantoso para a música pop.

Ouvi dizer que o momento mais feliz de nossas vidas é o período em que as músicas pop realmente significam algo para nós, quando realmente nos alcançam. Pode ser verdade. Talvez não. Afinal, as músicas pop podem não ser nada além de músicas pop. E talvez nossas vidas sejam meramente itens decorativos e descartáveis, uma explosão de cores fugazes e nada mais.

A casa da minha namorada ficava perto da estação de rádio Kobe na qual eu sempre sintonizava.

Acho que o pai dela importava ou talvez exportava equipamentos médicos. Não sei dos detalhes. De qualquer forma, ele era dono de sua própria empresa, que parecia estar indo bem. A casa deles ficava em um pinhal perto do mar. Ouvi dizer que costumava ser a vila de verão de algum empresário e que a família dela a havia comprado e remodelado. Os pinheiros farfalharam com a brisa do mar. Era o lugar perfeito para ouvir o tema de Amores Clandestinos.

Anos mais tarde, calhou de eu assistir a uma transmissão televisiva noturna do filme de 1959, Amores Clandestinos. Era um filme típico de Hollywood sobre amor jovem que, no entanto, envelheceu bem. No filme, há um bosque de pinheiros à beira-mar, que balança na brisa do verão sincronizado à seção de trompas da Orquestra Percy Faith. Aquela cena dos pinheiros balançando ao vento me pareceu uma metáfora do desejo sexual dos jovens. Mas isso pode ter sido apenas a minha opinião, minha própria visão tendenciosa.

No filme, Troy Donahue e Sandra Dee são varridos por esse tipo de vento sexual avassalador e, por causa disso, encontram todos os tipos de problemas do mundo real.

Os mal-entendidos são seguidos de reconciliações, os obstáculos são esclarecidos como o nevoeiro se abrindo e, no final, os dois ficam juntos e se casam. Em Hollywood, nos anos 50, um final feliz sempre envolvia casamento — a criação de um ambiente no qual os amantes podiam fazer sexo legalmente. Minha namorada e eu, é claro, não nos casamos. Ainda estávamos no ensino médio, e tudo o que fizemos foi nos apalparmos desajeitadamente e nos beijarmos no sofá com o tema de Amores Clandestinos tocando ao fundo.

“Quer saber de uma coisa?” ela me disse no sofá, em voz baixa, como se estivesse fazendo uma confissão. “Eu sou do tipo realmente ciumenta”.

“Sério?”, respondi.

“Eu queria ter certeza de que você soubesse disso”.

“Está bem”.

“Às vezes dói muito ser tão ciumenta”.

Eu acariciei silenciosamente seus cabelos. Naquele momento, estava além de mim imaginar como o ciúme era ardente, o que o causava e o que levava a isso. Eu estava muito preocupado com minhas próprias emoções.

Como nota lateral, Troy Donahue, aquele belo e jovem astro, mais tarde foi flagrado consumindo álcool e drogas, parou de fazer filmes e ficou até sem teto por um tempo. Sandra Dee também lutou contra o alcoolismo. Donahue se casou com a popular atriz Suzanne Pleshette, em 1964, mas eles se divorciaram oito meses depois. Dee casou-se com o cantor Bobby Darin, em 1960, mas eles se divorciaram em 1967. Isso obviamente não tem nenhuma relação com o enredo de Amores Clandestino. E não está relacionado ao destino da minha namorada ou do meu.

Minha namorada tinha um irmão mais velho e uma irmã mais nova.

A irmã mais nova estava no segundo ano do ensino médio, mas era uns cinco centímetros mais alta que a irmã mais velha. Ela não era particularmente fofa. Além disso, usava óculos grossos. Ainda assim minha namorada gostava muito da irmã caçula. “Suas notas na escola são muito boas”, ela me disse. A propósito, acho que as notas da minha namorada eram apenas regulares. Como as minhas, provavelmente.

Uma vez, deixamos a irmã mais nova nos acompanhar ao cinema. Havia alguma razão de que precisávamos fazer aquilo. O filme era A Noviça Rebelde. A sala estava lotada, então tivemos de nos sentar mais à frente. Lembro que assisti àquele filme de 70 mm em tela larga tão próximo que isso fez com que meus olhos doessem até o fim da exibição. Minha namorada, no entanto, era louca pelas músicas do filme. Ela comprou o LP da trilha sonora e ouviu-o sem parar. Eu gostava muito mais da versão mágica de John Coltrane de “My Favorite Things”, mas achei que trazer isso à tona era inútil, então nunca fiz isso.

A irmã mais nova não parecia gostar muito de mim. Sempre que nos víamos, ela me olhava com olhos estranhos, totalmente desprovidos de emoção — como se estivesse julgando se algum peixe seco na parte de trás da geladeira ainda era comestível ou não. E, por alguma razão, esse olhar sempre me deixava culpado. Quando ela olhava para mim, era como se estivesse ignorando o lado de fora (concedo, não havia muito o que olhar) e pudesse ver através, até as profundezas do meu ser. Eu posso ter me sentido assim, porque realmente tinha vergonha e culpa em meu coração.

O irmão da minha namorada era quatro anos mais velho que ela, então ele teria pelo menos vinte anos então. Ela não o apresentou e quase nunca o mencionava. Se ele aparecia na conversa, ela habilmente mudava de assunto. Percebo agora que a atitude dela era um pouco antinatural. Não que eu tenha pensado muito sobre isso. Eu não estava tão interessado na família dela. O que me atraiu para ela foi um impulso muito mais urgente.

A primeira vez que conheci o irmão dela e falei com ele foi no final do outono de 1965.

Naquele domingo, fui à casa da minha namorada para buscá-la. Toquei a campainha repetidamente, mas ninguém respondeu. Fiz uma pausa por um tempo e toquei de novo, repetidamente, até finalmente ouvir alguém se movendo lentamente em direção à porta. Era o irmão mais velho da minha namorada.

Ele era um dedo mais alto que eu e um pouco pesado. Não era flácido, mas mais como um atleta que, por algum motivo, não consegue se exercitar por um tempo e ganha alguns quilos extras, ou seja, apenas gordura temporária. Ele tinha ombros largos, mas um pescoço relativamente longo e fino. Seu cabelo estava desgrenhado, espetado em todo o lugar, como se tivesse acabado de acordar. Parecia rígido e grosseiro, como se parecesse estar duas semanas atrasado para o corte do cabelo. Ele usava um suéter azul marinho com gola alta, o pescoço solto e moletom cinza folgado ao redor dos joelhos. O olhar dele era o oposto completo da minha namorada — ela estava sempre arrumada, limpa e bem arrumada.

Ele olhou para mim por um tempo, como um animal desalinhado que, depois de uma longa hibernação, se arrastou para a luz do sol.

“Eu acho que você é… Amigo de Sayoko?” Ele disse isso antes que eu tomasse a palavra. Limpou a garganta. Sua voz estava sonolenta, mas eu podia sentir uma centelha de interesse nela.

“Está certo”, eu disse e me apresentei. “Eu deveria vir aqui às onze”.

“Sayoko não está aqui agora”, disse ele.

“Não está aqui”, eu disse, repetindo suas palavras.

“Ela está em algum lugar. Ela não está em casa”.

“Mas eu deveria vir buscá-la hoje às onze”.

“Isso está certo?” disse o irmão. Ele olhou para a parede ao lado dele, como se estivesse olhando um relógio. Mas não havia relógio lá, apenas uma parede de gesso branco. Relutantemente, voltou o olhar para mim. “Pode ser, mas o fato é que ela não está em casa.”

Eu não tinha ideia do que deveria fazer. E nem o irmão, aparentemente. Ele deu um bocejo descontraído e coçou a nuca. Todas as suas ações eram lentas e medidas.

“Parece que ninguém está em casa agora”, disse ele. “Quando me levantei há um tempo atrás, ninguém estava aqui. Eles devem ter saído, mas eu não sei para onde”.

Eu não disse nada.

“Meu pai provavelmente está jogando golfe. Minhas irmãs devem ter saído para se divertir. Mas minha mãe estar fora também é um pouco estranho. Isso não acontece com frequência”.

Abstive-me de especular. Essa não era a minha família.

“Mas, se Sayoko prometeu que estaria aqui, tenho certeza de que ela voltará em breve”, disse o irmão. “Por que você não entra e espera?”

“Eu não quero incomodá-lo. Vou ficar em algum lugar por um tempo e depois voltar”, falei. “Não, não é um incômodo”, disse com firmeza. “É muito mais incômodo tocar a campainha novamente e abrir a porta da frente. Então, entre”.

Como não tinha outra escolha, entrei e ele me levou à sala de estar. A mesma que tinha o sofá em que ela e eu havíamos nos beijados no verão. Sentei-me e o irmão da minha namorada se acomodou em uma poltrona de frente para mim. E mais uma vez soltou outro longo bocejo.

“Você é amigo de Sayoko, certo?”, perguntou novamente, como se estivesse duplamente seguro.

“Está certo”, eu disse, dando a mesma resposta.

“Não é amigo de Yuko?”

Eu balancei minha cabeça. Yuko era sua irmã mais alta.

“É interessante sair com Sayoko?”, perguntou com um olhar de curiosidade em seus olhos.

Eu não tinha ideia de como responder, então fiquei em silêncio. Ele ficou sentado, esperando minha resposta.

“É divertido, sim”, eu disse, finalmente encontrando o que eu esperava que fossem as palavras certas.

“É divertido, mas não é interessante?”

“Não, não é isso que eu quero dizer…” Minhas palavras desapareceram.

“Não importa”, disse o irmão. “Interessante ou divertido — não há diferença entre os dois, suponho. Ei, você já tomou café da manhã?”

“Tomei sim”.

“Vou fazer um brinde. Tem certeza de que não quer?”

“Não, estou bem”, respondi.

“Que tal café?”

“Estou bem”.

Eu poderia ter tomado um café, mas hesitei em me envolver com a família da minha namorada, principalmente quando ela não estava em casa. Ele se levantou sem dizer uma palavra e saiu da sala. Depois de um tempo, ouvi o barulho de pratos e xícaras. Fiquei lá sozinho no sofá, educadamente sentado ereto, com as mãos no colo, esperando que ele voltasse de onde quer que estivesse. O relógio marcava onze e quinze.

Vasculhei minha memória para ver se nós realmente havíamos decidido que eu estaria às onze. Estava certo de que contava com a data e o horário corretos. Havíamos nos falado ao telefone na noite anterior e então confirmado. Ela não era do tipo que esquecia ou rompia uma promessa. E era realmente estranho que ela e sua família saíssem no domingo de manhã e deixassem o irmão mais velho sozinho.

Confuso com tudo isso, fiquei pacientemente sentado. O tempo passou terrivelmente devagar. Ouvia o som ocasional da cozinha — a torneira se abrindo, o barulho de uma colher misturando algo, o som de um armário abrindo e fechando. Esse irmão parecia ser do tipo que precisava fazer barulho, seja lá o que fizesse. Mas era isso, tanto quanto os sons se foram. Nenhum vento soprando lá fora, nenhum cachorro latindo. Como lama invisível, o silêncio rastejava em meus ouvidos e os entupia. Eu tive que engoli-lo algumas vezes para desbloqueá-lo.

Alguma música teria sido legal: o tema de Amores Clandestinos, “Edelweiss”, “Moon River” — qualquer coisa. Eu não era exigente. Apenas música. Mas não conseguiria muito bem ligar o som na casa de outra pessoa sem permissão. Procurei algo para ler, mas não localizei jornais ou revistas. Verifiquei o que estava dentro da minha bolsa de ombro. Eu quase sempre tinha um livro que estava lendo na minha bolsa, mas não naquele dia.

Quando saíamos para namorar, minha namorada e eu fingíamos que íamos estudar na biblioteca, e eu colocava itens relacionados à escola na minha bolsa para manter o fingimento, como um criminoso amador inventando um álibi frágil. Portanto, o único livro que eu tinha na minha bolsa naquele dia era uma leitura suplementar ao nosso livro escolar “Língua e literatura japonesas”. Relutantemente, puxei-o para fora e comecei a folhear as páginas. Eu não era o que você chama de leitor, que lê livros de maneira sistemática e atenta, mas era mais do tipo que acha difícil fazer passar o tempo sem ter algo para ler. Eu nunca poderia apenas me sentar quieto e silencioso. Eu sempre tinha que virar as páginas de um livro ou ouvir música. Quando não havia livro por perto, eu pegava qualquer coisa impressa. Eu lia uma lista telefônica, um manual de instruções para um ferro a vapor. Comparado com esse tipo de material de leitura, um leitor suplementar para um livro em japonês era muito melhor.

Folheei aleatoriamente a ficção e os ensaios do livro. Alguns textos eram de autores estrangeiros, mas a maioria era de escritores japoneses modernos conhecidos — Ryunosuke Akutagawa, Junichiro Tanizaki, Kobo Abe dentre outros. E anexado a cada trabalho — todos os trechos, com exceção de um punhado de histórias muito curtas — estavam algumas perguntas. A maioria dessas perguntas era totalmente sem sentido. Com perguntas sem sentido, é difícil (ou impossível) determinar logicamente se uma resposta está correta ou não. Eu duvidava que quem tivesse feito as perguntas fosse capaz de decidir. Coisas como “O que você pode obter desta passagem sobre a posição do escritor em relação à guerra?” ou “Quando o autor descreve o surgimento e o declínio da lua, que tipo de efeito simbólico é criado?” Você poderia dar quase qualquer resposta. Se você dissesse que a descrição do aumento e da diminuição da lua era simplesmente uma descrição do aumento e da diminuição da lua e não criava efeito simbólico, ninguém poderia dizer com certeza que sua resposta estava errada. É claro que havia uma resposta relativamente razoável, mas eu realmente não achava que chegar a uma resposta relativamente razoável era um dos objetivos do estudo da literatura.

Seja como for, perdi tempo tentando conjurar respostas para cada uma dessas perguntas. E, na maioria dos casos, o que me veio à mente — no meu cérebro, que ainda crescia e se desenvolvia, lutando todos os dias para alcançar uma espécie de independência psicológica — eram os tipos de respostas relativamente irracionais, mas não necessariamente erradas. Talvez essa tendência tenha sido uma das razões pelas quais minhas notas na escola não eram nada extraordinárias.

Enquanto isso acontecia, o irmão da minha namorada voltou para a sala de estar. Seu cabelo ainda estava espetado em todas as direções, mas, talvez porque ele tomou café da manhã, seus olhos não estavam tão sonolentos quanto antes. Ele segurava uma grande caneca branca, com a imagem de um biplano alemão da Primeira Guerra Mundial, com duas metralhadoras na frente da cabine impressas na lateral. Essa tinha de ser a sua própria caneca especial. Eu não conseguia imaginar minha namorada bebendo em uma caneca assim.

“Você realmente não quer café?” ele perguntou.

Balancei minha cabeça. “Não. Estou bem. Realmente.”

Seu suéter estava enfeitado com migalhas de pão. Os joelhos de seus moletom também. Ele provavelmente estava morrendo de fome e engoliu a torrada sem se importar com as migalhas espalhadas por toda parte. Poderia imaginar como isso incomodava minha namorada, já que ela sempre parecia tão limpa e arrumada. Eu gostava de ser arrumado e arrumado, uma qualidade compartilhada que fazia parte do motivo pelo qual nos damos bem, acho.

O irmão dela olhou para a parede. Havia um relógio pendurado. Os ponteiros mostravam quase onze e meia.

“Ela ainda não voltou, não é? Para onde diabos ela poderia ter ido?”

Não disse nada em resposta.

“O que você está lendo?”

“Uma leitura suplementar para o nosso livro de japonês”.

“Hmm”, disse ele, inclinando a cabeça levemente. “Isto é interessante?”

“Não particularmente. Só não tenho mais nada para ler”.

“Você poderia me mostrar?”

Passei-lhe o livro sobre a mesa baixa. Com a xícara de café na mão esquerda, ele pegou o livro com a direita. Eu estava preocupado que ele derramasse café nela. Isso parecia prestes a acontecer. Mas ele não derramou. Colocou a xícara na mesa de vidro com um tinido e segurou o livro com as duas mãos, começando a folhear.

“Então, qual parte você estava lendo?”

“Agora eu estava lendo a história de Akutagawa, Rodas Dentadas. Há apenas parte dela, não a coisa toda”.

Ele refletiu sobre isso. “Rodas Dentadas é um livro que nunca li embora eu tenha lido Kappa há muito tempo. Rodas Dentadas não é uma história bastante sombria?”

“Isto é. Ele escreveu logo antes de morrer”. Akutagawa teve uma overdose aos 35 anos. As anotações do suplementar afirmam que Rodas Dentadas foi publicado postumamente, em 1927. A história era quase uma última vontade e testamento.

“Hmm”, disse o irmão da minha namorada. “Você acha que pode ler para mim?”

Olhei para ele surpreso. “Ler em voz alta, você quer dizer?”

“Sim. Eu sempre gostei de ter pessoas lendo para mim. Eu também não sou um ótimo leitor”.

“Não sou bom em ler em voz alta”

“Não me importo. Você não precisa ser bom. Basta ler na ordem certa e tudo ficará bem. Quero dizer, parece que não temos nada a fazer”

“Mas é uma história bastante neurótica e deprimente”, eu disse.

“Às vezes eu gosto de ouvir esse tipo de história. É como combater o mal com o mal”.

Ele devolveu o livro, pegou a xícara de café com a foto do biplano e suas cruzes de ferro e tomou um gole. Então afundou na poltrona e esperou o início da leitura.

Foi assim que acabei naquele domingo lendo parte de Rodas Dentadas, de Akutagawa, para o irmão mais velho excêntrico da minha namorada.

No começo, fiquei um pouco relutante, mas me entusiasmei com o trabalho. A leitura suplementar tinha as duas seções finais da história — “Luzes vermelhas” e “Avião” -, mas acabei lendo “Avião”. Havia cerca de oito páginas e terminava com a frase “Alguém não será bom o suficiente para me estrangular enquanto durmo?” Akutagawa se matou logo após escrever esta linha.

Terminei de ler, mas ninguém na família ainda havia chegado em casa. O telefone não tocou e nenhum corvo cantou do lado de fora. Estava perfeitamente imóvel por toda parte. A luz do sol do outono iluminava a sala através das cortinas de renda. Só o tempo fazendo seu caminho lento e constante. O irmão da minha namorada estava sentado lá, braços cruzados, olhos fechados, como se saboreasse as linhas finais que eu tinha lido: “Não tenho forças para continuar escrevendo. É doloroso, para além das palavras, continuar vivendo quando me sinto assim. Alguém não será bom o suficiente para me estrangular enquanto durmo?”

Quer você tenha gostado da escrita ou não, uma coisa ficou clara: essa não era a história certa para ler em um domingo claro e brilhante. Fechei o livro e olhei para o relógio na parede. Já passava das doze.

“Deve ter havido algum tipo de mal-entendido”, eu disse. “Eu acho que me vou.” Comecei a me levantar do sofá. Minha mãe me ensinou desde a infância que você não deveria incomodar as pessoas em casa na hora das refeições. Para o bem ou para o mal, isso havia penetrado no meu ser e se tornado um hábito reflexivo.

“Você veio até aqui, então que tal esperar mais trinta minutos?”, perguntou o irmão dela. “Que tal você esperar mais trinta minutos? Se ela não voltar, então você pode sair”.

Suas palavras eram estranhamente distintas, e eu me sentei e descansei minhas mãos no meu colo novamente.

“Você é muito bom em ler em voz alta”, disse ele, parecendo genuinamente impressionado. “Alguém já te disse isso?”.

Balancei minha cabeça.

“A menos que você realmente compreenda o conteúdo, não poderá ler como leu. A última parte foi especialmente boa.

“Oh”, respondi vagamente. Senti minhas bochechas corarem um pouco. O elogio parecia mal direcionado, e isso me deixou desconfortável. Mas a sensação que eu estava sentindo era que só estava ali para ter mais de trinta minutos de conversa com ele. Ele parecia precisar de alguém para conversar. Colocou as palmas das mãos firmemente em sua frente, como se estivesse rezando, e de repente saiu com essa: “Isso pode parecer uma pergunta estranha, mas você já teve sua memória parada?”

“Parada?”

“O que estou falando é, de um momento para o outro, que você não consegue se lembrar de onde estava ou do que estava fazendo”.

Balancei minha cabeça. “Acho que nunca tive isso”.

“Então você se lembra da sequência do tempo e dos detalhes do que fez?”.

“Se aconteceu algo recentemente, eu diria que sim”.

“Hmm”. Coçou a parte de trás da cabeça por um momento, e depois falou. “Suponho que isso seja normal.”

Eu esperei ele continuar.

“Na verdade, por várias vezes minha memória sumiu. Como se minha memória desligasse às 3 da manhã e a próxima coisa que sei é que já são 7 da manhã. Não me lembro onde eu estava ou o que estava fazendo durante aquelas quatro horas. E não é como se algo especial tivesse acontecido comigo. Como se eu tivesse atingido a cabeça ou estivesse bêbado ou algo assim. Estou apenas fazendo o que costumo fazer e, sem aviso prévio, minha memória é cortada. Não consigo prever quando isso vai acontecer. Não tenho pistas sobre quantas horas, quantos dias se passarão até que minha memória volte a desaparecer.

“Entendo”, murmurei para que ele soubesse que eu estava seguindo o raciocínio.

“Imagine que você gravou uma sinfonia de Mozart em um gravador. E, quando você a reproduz, o som salta do meio do segundo movimento para o meio do terceiro, e o que deveria estar no meio desapareceu. É assim que é. Quando digo ‘desapareceu’, não quero dizer que haja uma seção silenciosa da fita. Acabou. Você entende o que estou dizendo?”

“Acho que sim”, respondi em um tom incerto.

“Se é música, é meio inconveniente, mas sem nenhum dano real, certo? Mas, se isso acontece na sua vida real, é uma dor, acredite… Você entende o que eu quero dizer?”

Eu assenti.

“Você vai para o lado escuro da lua e volta de mãos vazias.”

Balancei a cabeça novamente. Não tinha certeza de ter entendido completamente a analogia.

“É causado por um distúrbio genético, e casos bem definidos como o meu são muito raros. Uma pessoa em dezenas de milhares terá o distúrbio. E mesmo assim haverá diferenças entre eles, é claro. No meu último ano do ensino médio, fui examinado por um neurologista do hospital universitário. Minha mãe me levou”.

Ele fez uma pausa e continuou: “Em outras palavras, é uma condição em que a sequência da sua memória fica confusa. Uma parte da sua memória é guardada na gaveta errada. E é quase impossível, ou realmente impossível, encontrá-lo novamente. Foi assim que eles me explicaram. Não é o tipo de desordem terrível que pode ser fatal, ou onde você gradualmente perde a cabeça. Mas causa problemas na vida cotidiana.
Eles me disseram o nome do distúrbio e me deram alguns remédios para tomar, mas as pílulas não fazem nada. Eles são apenas um placebo”.

Por um momento, o irmão da minha namorada ficou em silêncio, me estudando de perto para ver se eu havia entendido. Era como se ele estivesse do lado de fora de uma casa olhando pela janela.

“Eu tenho esses episódios uma ou duas vezes por ano “, ele finalmente disse. “Não é tão frequente, mas a frequência não é o problema. Quando isso acontece, causa problemas reais. Mesmo que raramente, é muito ruim ter esse tipo de perda de memória e não saber quando isso acontecerá. Você entendeu?”

“Uhum”, disse vagamente. Foi tudo o que pude fazer para poder seguir sua estranha e incessante história.

“Tipo, vou dizer algo que poderia acontecer comigo. Minha memória repentinamente corta e, durante esse lapso, eu pego um martelo enorme e bato na cabeça de alguém, alguém que eu não gosto. De jeito nenhum, você pode simplesmente escrever isso dizendo: ‘Bem, agora, isso é estranho.’ Estou certo?”

“Eu diria que sim.”

“Os policiais se envolverão e, se eu disser: ‘O problema é que minha memória sumiu’, eles não vão comprar isso, vão?”

Eu balancei minha cabeça.

“Na verdade, existem algumas pessoas de quem eu não gosto. Caras que realmente me irritam. Meu pai é um deles. Mas quando estou lúcido, não vou bater na cabeça do meu pai com um martelo, vou? Sou capaz de me controlar. Mas, quando minha memória acaba, não faço ideia do que estou fazendo”.

Inclinei minha cabeça por uma fração, retendo qualquer opinião que pudesse vir a emitir.

“O médico disse que não há perigo disso acontecer. Não é como se, enquanto minha memória desaparece, alguém roubasse minha personalidade, como o Dr. Jekyll e o Sr. Hyde. Eu sempre sou eu mesmo. É que a parte gravada pula do meio do segundo movimento para o meio do terceiro. Sempre sou capaz de controlar quem sou e agir normalmente em sua maior parte. Mozart não se transforma subitamente em Stravinsky. Mozart continua sendo Mozart — é só que uma parte desaparece em uma gaveta em algum lugar”.

Ele se calou nesse momento e tomou um gole de sua xícara de café biplano. Eu estava desejando poder tomar um café sozinho.

“Pelo menos, foi o que o médico me disse. Mas você precisa aceitar o que os médicos dizem como um grão de sal. Quando eu estava no ensino médio, isso me assustou, pensando que, quando eu não sabia o que estava fazendo, poderia bater na cabeça de um dos meus colegas de classe com um martelo. Quero dizer, quando você está no ensino médio, ainda não sabe quem você é, certo? Adicione a dor da perda de memória a isso e você não aguenta mais…”

Eu assenti silenciosamente. Ele poderia estar certo.

“Eu praticamente parei de ir à escola por causa de tudo isso”, continuou o irmão da minha namorada. “Quanto mais eu pensava nisso, mais assustado me sentia e não conseguia ir para a escola. Minha mãe explicou a situação ao meu professor e, mesmo tendo muitas faltas, eles abriram uma exceção para mim e me deixaram formar. Eu imagino que a escola queria se livrar de um aluno problemático como eu o mais rápido possível. Mas eu não fui para a faculdade. Minhas notas não eram tão ruins e eu poderia ter entrado em algum tipo de faculdade, mas não tinha confiança para sair. Desde então, ando vagando pela casa. Levo o cachorro para passear, mas por outro lado quase nunca saio. Hoje em dia não me sinto tão em pânico, seja o que for que aconteça. Se as coisas se acalmarem um pouco mais, acho que talvez eu comece a frequentar a faculdade”.

Ele então ficou calado, e eu também. Eu não tinha ideia do que dizer. Entendi agora porque minha namorada nunca quis falar sobre seu irmão.

“Obrigado por ler essa história para mim”, disse ele. Rodas Dentadas é muito bom. Uma história sombria, com certeza, mas parte da escrita realmente me impressionou. Tem certeza de que não quer café? Só vai demorar um minuto”.

“Não, eu estou bem, sério. É melhor eu ir em breve”.

Ele olhou novamente para o relógio na parede. “Por que você não espera até uma e, se ninguém voltar, pode sair. Estarei no meu quarto no andar de cima, para que você possa ficar a sós. Não precisa se preocupar comigo”.

Eu assenti.

“É interessante sair com Sayoko?” o irmão da minha namorada me perguntou mais uma vez.

Eu assenti: “É interessante”.

“Que parte?”

“Há tanta coisa sobre ela que eu não sei”, respondi. Uma resposta muito honesta, eu acho. “Hmm”, disse, refletindo sobre isso. “Agora que você mencionou, eu posso ver isso. Ela é minha irmã mais nova, relacionada ao sangue, os mesmos genes e tudo mais, e nós vivemos juntos sob o mesmo teto desde que ela nasceu, mas ainda há muitas coisas que eu não entendo sobre ela. Eu não a saco — como devo dizer? O que a faz funcionar? Então, eu gostaria que você pudesse entender essas coisas para mim. Embora possa haver coisas que seja melhor não tentar descobrir”.

Xícara de café na mão, ele se levantou da poltrona.

“De qualquer forma, dê o seu melhor”, disse o irmão da minha namorada. Ele agitou a mão livre para mim e saiu da sala.

“Obrigado”, eu disse.

Como ainda não havia sinal de que alguém iria voltar, então fui sozinho para a porta da frente, calcei meu tênis e saí.

Passei pela floresta de pinheiros até a estação, entrei no trem e voltei para casa. Era uma tarde de outono estranhamente quieta e tranquila no domingo. Recebi uma ligação da minha namorada depois das 14h. “Você deveria vir no próximo domingo”, disse ela. Eu não estava totalmente convencido, mas ela foi tão clara que provavelmente estava certa. Pedi desculpas por ter ido à casa dela uma semana inteira mais cedo.

Eu não mencionei que, enquanto esperava que ela voltasse para casa, tive uma conversa com o irmão dela — talvez “conversa” não fosse a palavra certa, já que basicamente eu apenas o ouvia. Achei que provavelmente era melhor não dizer que li as Rodas Dentadas de Ryunosuke Akutagawa para o irmão dela e que ele havia me revelado que tinha uma doença com lapsos de memória. Se não havia contado essas coisas a ela, não havia motivo para eu contar.

Dezoito anos depois, encontrei o irmão dela novamente.

Era meados de outubro. Eu tinha 35 anos na época e morava em Tóquio com minha esposa. Meu trabalho me manteve ocupado e quase nunca voltei a Kobe.

Era fim de tarde e eu estava subindo uma colina em Shibuya para pegar um relógio que estava sendo consertado. Eu estava seguindo em frente, perdido em pensamentos, quando um homem por quem passei se virou e me chamou.

“Com licença”, disse ele. Ele tinha uma entonação Kansai [um grupo de dialetos japoneses da região de Kansai que abrange Osaka, Kyoto, Nara, Shiga, Kobe e outras províncias, nota do tradutor] inconfundível. Parei, virei e avistei um homem que não conseguia reconhecer. Ele parecia um pouco mais velho que eu, e um pouco mais alto. Usava uma jaqueta grossa de tweed cinza, gola alta, suéter de cashmere creme e calça marrom. Seu cabelo era curto e ele tinha a constituição firme de um atleta e um bronzeado profundo (parecia um bronzeado de golfe). Seus traços não eram refinados, mas eram ainda atraentes. Bonito, suponho. Tive a sensação de que esse era um homem que estava satisfeito com sua vida. Uma pessoa bem-educada era meu palpite.

“Não me lembro do seu nome, mas você não foi namorado da minha irmã mais nova por um tempo?” ele disse.

Eu estudei seu rosto novamente, mas não tinha lembrança disso.

“Sua irmã mais nova?”

“Sayoko”, disse ele.

“Eu acho que vocês estavam na mesma classe no ensino médio.”

Meus olhos pousaram em uma pequena mancha de molho de tomate na frente de seu suéter de cor creme. Ele estava bem vestido, e aquela pequena mancha me pareceu fora de lugar. E então a ficha caiu — o irmão com olhos sonolentos e um suéter azul marinho de pescoço largo polvilhado com migalhas de pão.

“Eu me lembro agora”, eu disse. “Você é o irmão mais velho de Sayoko. Nós nos encontramos uma vez em sua casa, não é?”

“Você está certo. Você leu Rodas Dentadas de Akutagawa para mim”.

Eu ri. “Mas estou surpreso que você tenha conseguido me achar nessa multidão. Nós nos encontramos apenas uma vez, e foi há tanto tempo”.

“Não sei por que, mas nunca esqueço um rosto. Além disso, você parece não ter mudado nada”.

“Mas você mudou bastante”, eu disse. “Você parece tão diferente agora”.

“Bem, muita água passou por debaixo da ponte”, disse ele sorrindo. “Como você sabe, as coisas ficaram bem complicadas para mim por um tempo.”

“Como está Sayoko?” Eu perguntei.

Ele lançou um olhar perturbado para o lado, respirou lentamente e depois expirou. Como se medisse a densidade do ar ao seu redor.

“Em vez de ficar aqui na rua, por que não vamos a algum lugar onde podemos sentar e conversar? Se você não estiver ocupado, é claro”, disse.

“Não tenho nada urgente”, respondi.

“Sayoko faleceu”, disse de forma calma.

Estávamos em uma cafeteria próxima, sentados em frente a uma mesa de plástico. “Faleceu?”

“Ela morreu. Três anos atrás.”

Eu fiquei sem palavras. Senti como se minha língua estivesse inchando dentro da minha boca. Tentei engolir a saliva que havia se acumulado, mas não consegui. A última vez que vi Sayoko ela tinha vinte anos e havia acabado de obter sua carteira de motorista. Fomos para o topo do Monte Rokko, em Kobe, em um Toyota Crown de capota rígida branca que pertencia ao pai dela. Sua condução ainda era um pouco estranha, mas ela parecia exultante enquanto dirigia. Previsivelmente, o rádio estava tocando uma música dos Beatles. Eu me lembro bem disso. “Hello Goodbye”. Você diz adeus, e eu digo olá. Como eu disse antes, a música deles estava em toda parte então.

Não conseguia assimilar o fato de que ela havia morrido e não existia mais neste mundo. Não tinha certeza de como reagir àquilo — parecia tão surreal.

“Como ela…morreu?”Perguntei, minha boca seca.

“Ela cometeu suicídio”, disse ele, como se cuidadosamente escolhesse suas palavras. “Quando ela tinha 26 anos, casou-se com um colega da companhia de seguros em que trabalhava, teve dois filhos e tirou a vida. Ela tinha apenas trinta e dois anos”.

“Ela deixou crianças para trás?”

O irmão da minha ex-namorada assentiu. “O mais velho é um menino, a mais nova é uma menina. O marido está cuidando deles. Eu os visito de vez em quando. Filhos ótimos”.

Eu ainda tinha problemas para acompanhar a realidade de tudo. Minha ex-namorada se matou, deixando para trás dois filhos pequenos?

“Por que ela fez isso?”

Ele balançou sua cabeça. “Ninguém sabe o porquê. Ela não agiu como se estivesse perturbada ou deprimida. Sua saúde estava boa, as coisas pareciam boas entre ela e o marido, e ela amava os filhos. Não deixou uma nota nem nada. Seu médico havia prescrito pílulas para dormir, e ela as guardou e as tomou de uma só vez. Então parece que ela estava planejando se matar. Ela queria morrer e, durante seis meses, escondeu o remédio pouco a pouco. Não foi apenas um impulso repentino”.

Fiquei em silêncio por um bom tempo. E ele também. Cada um de nós se perdeu em seus próprios pensamentos.

Naquele dia, em um café no topo do Monte Rokko, minha namorada e eu terminamos. Eu estava indo para uma faculdade em Tóquio e me apaixonei por uma garota lá. Eu saí e confessei tudo isso, e ela, dizendo apenas uma palavra, pegou sua bolsa, levantou-se e correu para fora do café, sem sequer olhar para trás.

Eu tive que pegar o teleférico descendo a montanha sozinho. Ela deve ter levado aquela Toyota Crown para casa. Era um dia lindo e ensolarado, e eu lembro que eu podia ver Kobe inteira pela janela da gôndola. Era uma vista incrível.

Sayoko foi para a faculdade, conseguiu um emprego em uma grande companhia de seguros, casou-se com um de seus colegas, teve dois filhos, economizou pílulas para dormir e tirou a própria vida. Eu teria terminado com ela mais cedo ou mais tarde. Mas ainda tenho boas lembranças dos anos que passamos juntos. Ela foi minha primeira namorada e eu gostei muito dela. Ela foi a pessoa que me ensinou sobre o corpo feminino. Experimentamos todo tipo de coisas novas juntos e compartilhamos momentos maravilhosos, do tipo que só é possível quando você é adolescente.

É difícil para mim dizer isso agora, mas ela nunca tocou aquele sino especial nos meus ouvidos. Ouvi o mais forte que pude, mas não tocou nenhuma vez. Infelizmente. A garota que eu conhecia em Tóquio foi quem fez isso por mim. Não é algo que você possa escolher livremente, de acordo com a lógica ou a moralidade. Ou acontece ou não. Quando isso acontece, acontece por vontade própria, em sua consciência ou em um ponto profundo em sua alma.

“Você sabe”, disse o irmão da minha ex-namorada, “nunca passou pela minha cabeça, nem uma vez, que Sayoko se suicidasse. Mesmo que todos no mundo inteiro se matassem, eu pensei — erradamente, ao que parece — que ela ainda estaria de pé, viva e bem. Eu não podia vê-la como se tive desesperançada ou como se tivesse alguma escuridão escondida internamente. Honestamente, eu pensei que ela era um pouco superficial. Nunca prestei muita atenção a ela, e a mesma coisa se aplicava a ela quando se tratava de mim, eu acho. Talvez não estivéssemos no mesmo comprimento de onda… Na verdade, eu me dei melhor com minha outra irmã. Mas agora sinto como se tivesse feito algo horrível com Sayoko, e isso me dói. Talvez eu nunca a conhecesse de verdade. Nunca entendi nada sobre ela. Talvez eu estivesse muito preocupado com minha própria vida. Talvez alguém como eu não tenha forças para salvar a vida dela, mas eu deveria ter conseguido entender algo sobre ela, mesmo que não fosse muito. É difícil de suportar agora. Eu era tão arrogante, tão egocêntrico.

Não havia nada que eu pudesse dizer. Eu provavelmente também não a entendi. Como ele, eu estava muito preocupado com minha própria vida.

O irmão da minha ex-namorada disse: “Naquela história, que você leu para mim na época, Rodas Dentadas, de Akutagawa, havia uma parte sobre como um piloto respira no ar, subindo no céu e depois não consegue mais respirar aqui na terra. “Doença de avião”, eles chamavam. Não sei se é uma doença real ou não, mas ainda me lembro desse trecho”.

“Você superou aquela condição em que sua memória desaparecia às vezes?” Perguntei a ele. Eu acho que queria mudar de assunto de Sayoko.

“Oh, certo. Isso” — ele disse, estreitando os olhos um pouco. “É meio estranho, mas isso desapareceu espontaneamente. É um distúrbio genético e deveria ter piorado com o tempo, disse o médico, mas desapareceu, como se eu nunca tivesse tido. Como se um espírito maligno tivesse sido expulso.

“Fico feliz em ouvir isso”, comentei. E eu realmente estava.

“Aconteceu pouco tempo depois que te conheci. Depois disso, nunca experimentei esse tipo de perda de memória, nem mesmo uma vez. Eu me senti mais calmo, consegui ingressar em uma faculdade decente, me formar e depois assumir os negócios do meu pai. As coisas se desviaram por alguns anos, mas agora estou vivendo uma vida comum”.

“Fico feliz em ouvir isso”, repeti. “Então você não golpeou seu pai na cabeça com um martelo”.

“Você lembra de algumas coisas idiotas também, não lembra”, ele disse, e riu alto.

“Ainda assim, eu não venho a Tóquio a negócios com frequência, e parece estranho esbarrar em você dessa maneira nesta cidade enorme. Não posso deixar de sentir que algo nos uniu”

“Com certeza”, respondi.

“E você? Você mora em Tóquio esse tempo todo?

“Casei-me logo depois que me formei na faculdade”, disse a ele, “e moro aqui em Tóquio desde então. Estou vivendo como escritor agora”.

“Um escritor?”

“Sim. De algum modo”.

“Bem, você era muito bom em ler em voz alta”, disse. “Pode ser um fardo para você contar isso, mas acho que você foi a pessoa de quem Sayoko sempre mais gostou “.

Eu não respondi. E o irmão da minha ex-namorada não disse mais nada. E então nos despedimos. Fui buscar o relógio, que havia sido consertado, e o irmão mais velho da minha ex-namorada lentamente desceu a colina até a estação de Shibuya. Sua figura de paletó de tweed foi engolida pela multidão da tarde. Eu nunca mais o vi. O acaso nos reuniu pela segunda vez. Com quase vinte anos entre encontros, em cidades localizadas a trezentos quilômetros de distância, estávamos sentados, com uma mesa entre nós, bebendo café e conversando sobre algumas coisas. Mas esses não eram assuntos sobre os quais você conversa durante o café. Havia algo mais significativo em nossa conversa, algo que parecia significativo para nós, no ato de viver nossas vidas. Ainda assim, era apenas uma pista, entregue por acaso. Não havia nada que nos ligasse de maneira mais sistemática ou orgânica. (Pergunta: Que elementos na vida desses dois homens foram simbolicamente sugeridos pelas duas reuniões e conversas?)

Também nunca mais vi aquela jovem adorável, que estava segurando o LP “With the Beatles”. Às vezes me pergunto — ela ainda estará correndo pelo corredor mal iluminado do ensino médio em 1964, a bainha da saia tremulando enquanto se movimenta? Com os mesmos dezesseis anos, segurando com força a maravilhosa capa do álbum com a foto meio iluminada de John, Paul, George e Ringo, como se sua vida dependesse daquilo.

Tradução: medium.com/ricardoxmoura

Link para o texto original: https://www.newyorker.com/magazine/2020/02/17/with-the-beatles?irclickid=zifRej1NGxyOTcAwUx0Mo3IUUknXwBV290%3A4WY0&irgwc=1&source=affiliate_impactpmx_12f6tote_desktop_adgoal%20GmbH&utm_source=impact-affiliate&utm_medium=123201&utm_campaign=impact&utm_content=Online%20Tracking%20Link&utm_brand=tny

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Ricardo Moura
Textura

Jornalista e cientista social. Interessado nas interfaces desses 2 campos, com ênfase em segurança pública e comunicação para o desenvolvimento.