Diários índios — Darcy Ribeiro

Trechos

Sophia Kraenkel
TFG_sophia_amanda_2017
3 min readAug 17, 2017

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"20/nov/1949 — Berta, abro este diário com o seu nome. Dia a dia escreverei o que me suceder, sentindo que falo com você. Ponha sua mão na minha mão e venha comigo. Vamos percorrer mil quilômetros de picadas pela floresta, visitando aldeias índias que nos esperam, para conviver com eles, vê-los viver, aprender com eles. D.R. "— p. 17

"Saímos do Rio no dia 5, estivemos até o dia 17 em Belém, quando partimos para Bragança e depois, a 18, para Vizeu. Foram dias cheios de trabalho na preparação da pesquisa e também de amolações. Por isso mesmo só começo hoje meus registros" — p.17

"21/nov./49 — Continuo hoje, deu sono ontem e não pude terminar." — p.27

"25/nov.49 — Não tenho tido novidades. Esperamos uns filmes que Foerthmann deixou para trás. Só depois de chegarem, poderemos combinar uma embarcação. É um a vidinha insípida, tentei visitar o arquivo da Prefeitura para aproveitar o tempo caçando informações, mas não foi possív el, os documentos estão organizados em ordem cronológica de 1946 para cá, os antigos amontoados em caixões. " — p. 33

"Sobre a maconha, é grande o seu uso pela população do rio. Tanto caboclos como negros consomem liamba, geralmente fumada em cigarros. O vício chega a ser tão generalizado que se tornou mais um meio de exploração dessa gente. Por liamba, os caboclos, tanto da marinha como os do interior, trocam a última camisa e fazem viagens enormes em busca da erva sagrada, que lhes custa os olhos da cara. É cultivada, secretamente, no meio de roçados inocentes. A maior produção vem do Maranhão e dali se distribui para São Luís e para Belém, hoje grandes centros consumidores. — p.45

No interior, do lado do Maranhão e até em São Luís se fuma a maconha com uma aparelhagem especial de barragem de fumaça. Consiste numa cabaça comprida de pescoço afunilado. Sobre a parte mais larga eles colocam um cachimbo grande, que serve de braseiro; enchem-na d'água e vão jogando em cima das brasas folhas de maconha e aspirando a fumaça, através da água, pot um furo na extremidade da cabaça. Fumam maconha com esse conjunto denominado bei, em grupos de pessoas que se revezam na chupada e cada uma, após a fumarada, faz um mote. Dizem que mesmo em classes mais altas é generalizado o uso da maconha em cigarros, porém os principais consumidores são mesmo os caboclos famintos dessa zona."- pg 46

"Branco aqui é sinônimo de patrão e de homem rico. Veja-se, por exemplo, esses rapazes que vieram nos trazendo no motor: um é filho de Rachid e o outro também é claro. Ambos se referem ao dono da embarcação como "o branco, e ele não é nada mais claro que eles. O próprio Nhozinho, apresentado o Mistol de nossa farmácia a um empregado seu, claro, de olhos verdes e cabelos quase louros, comentou:

-Toma homem, põe nas ventas. Isso é remédio de branco." — p.51

"Consegui convencê-la de que era um "iniciado" e fazê-la(pajé de Camiranga) cantar.Assim que consentiu, me disse que para cantar era necessário arranjar uns cigarros. Logo ofereci os meus, mas verifiquei a rata, ela queria cigarros "temperados", isto é, com maconha. Eu me pus logo em campo e acabei conseguindo um pouco de liamba e um maço de fumo que entreguei à velha. Ela mandou seu ajudante preparar alguns cigarros e, depois de fumar um, começou a cantar. Primeiro, cantos compassados e roucos, a velha sentada num banco, com a cabeça inclinada sobre os joelhos e tendo numa das mãos um maracá e na outra um penacho de rabo de arara. Aos poucos foi se animando, depois já cantava de pé e, por fim, dançava e gingava como uma louca, em cantos terríveis de desespero.

Aí a sala já estava cheia de curiosos, as negras velhas entreolhavam-se, dizendo primeiro em sussurros e, depois, aos gritos:

-Ela está atuada

-É o espírito da Mãe d'Água.

-Pra que faz isso aqui?

-Atuadinhazinha…" — p.55

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