Fichamento dos textos de Câmara Cascudo

Textos relativos ao folclore amazônico e a lenda da Iara

Sophia Kraenkel
TFG_sophia_amanda_2017
7 min readMar 7, 2017

--

Planta- Murerê

O Conto da Iara

A versão do conto da Iara presente no livro "Lendas Brasileiras" a sereia é descrita semelhante a uma índia de cabelos negros e olhos negros. Ela usa um adorno na cabeça de flores lilases (mureré). O cenário são os rios da região da Amazônia.

Ela canta aos fins de tarde, mas o seu canto não é suficiente para atrair o índio "tapuio" (termo para designar um índio que não pertence aos tupinambás).

"- É bela, porém é a morte…. é a Iara."

Um dia a "piracema"(fenômeno em que os peixes nadam rio acima para a desova) o leva para longe e ele é surpreendido pela chegada da noite. Atravessando os rios amazônicos em sua jangada Iara o surpreende saindo das águas e cantando. Sua beleza ofuscante faz com que ele deixe cair o remo e navegue de acordo com a correnteza.

Nesse momento ele se torna obssecado pela Iara. Seus dias são sem alegria, até a chegada do fim de tarde, no qual ele se dirige aos rios e fica horas navegando de acordo com a correnteza procurando ouvir o canto da sereia.

Um dia ela reaparece e canta queixando-se da frieza do índio.

Ele lembra da recomendação de sua mãe :

"- Taíra, não te deixes seduzir pela Iara, foge de seus braços, ela é munusaua"(morte).

Ele resiste a tentação, mas se torna um índio triste. Para de falar com seus amigos e abandona a pesca.

Um dia outros índios encontram a jangada vagando sem ninguém, o índio finalmente havia se deixado seduzir pela Iara. Mais tarde encontram seu corpo em um teonguerá (curral dos mortos/cemitério) e seus lábios haviam sido dilacerados pelos dentes das piranhas.

A Origem

No livro "Dicionário do Folclore Brasileiro" Luis da Camara Cascudo compila as referências históricas da Iara, a mãe d'agua.

Ele começa dizendo que em todo Brasil se conhece a mãe d'água por uma sereia loira, alva e meia peixe que canta para atrair os homens e depois mata-los afogados. Mas segundo Cascudo, esse mito é de origem européia, posterior a Homero, para o qual as sereias eram aves (nereidas — ver no post Pesquisa da Iara) e as ninfas não cantavam, apesar de terem matado Hilas e habitar em uma fonte.

Loreley do Reno, mito alemão

Apesar de não ter um data exata de surgimento do mito da sereia, houveram diversos mitos ao longo do continente europeu que poderiam ter dado origem a essa criatura. Por exemplo as russalcas eslavas ou a Loreley do Reno.

Na África sudanesa existia a Iemanjá. deusa marinha sem personificação, mas quando personalificada é feita de maneira semelhante a versão europeia de sereia, mesmo tendo um nome africano.

No Brasil nos séculos XVI e XVII não existia a mãe d'água atual. O indígena pela sua concepção não admitiria uma sedução sexual nas chamadas cís, as mães, origem de tudo. A mãe da água não tinha forma nem função além do elemento que haviam criado, assim como a mãe do fogo, a mãe da fruta, etc.

Os mitos que estavam ligados a água são os mitos da cobra d'água ou cobra-grande e o mito do Ipupiara, o homem d'água.

Na primeira metade do século XVII, o Padre Franscisco de Figueroa, registrou que a Mãe d'água indígena tinha forma de serpente. Relato que reafirmado por outros relatos e documentos do mesmo século.

A cobra d'água (ou Boiúna, Mboiassu), segundo os relatos de von Martius presentes no livro "Geografia dos Mitos Brasileiros" é uma serpente gigante que mata pessoas nos afluentes do Rio Amazonas. Ela é enorme e raramente emerge. Matá-la traria ruína para a tribo, por isso os índios a temem, mas jamais tentam tirar-lhe a vida. Essa seria a Mãe D'Água original indígena.

Em 1850, Henry Walter Bates escreveu pela primeira vez sobre que o mito do boto cor-de-rosa e que ele se transformava em mulher e afogava índios, mas ele não era mencionado como a Mãe D'água.

Nenhum relato semelhante a de uma sereia surge se não na segunda metade do século XIX e mais intensamente depois dos poetas românticos começarem a retratar os indígenas (ver poemas no post Pesquisa da Iara).

Ipupiara

O ipupiara é um dos mitos mais antigos do Brasil tendo seu primeiro registro em 1560 pelo Padré José Anchieta. Ele é um homem-marinho que habita as fontes e rios, inimigo dos pescadores e lavandeiras. Relatos falam de machos e fêmeas.

“parecem-se com homens propriamente de boa estatura, mas têm os olhos muito encovados. As fêmeas parecem mulheres, têm cabelo compridos e são formosas… O modo que têm para matar é: abraçam-se com a pessoa, tão fortemente, beijando-a e apertando-a consigo, que a deixam feita toda em pedaços, ficando inteira, e como a sentem mora, dão alguns gemidos como de sentimento, e largando-a, fogem; e se levam alguns, comendo-lhes somente os olhos, narizes, e pontas dos dedos dos pés e das mãos, e as genitálias; e assim os acham de ordinário pelas praias com estas cousas menos.”

(CARDIN, Fernão. História do Brasil.in: CASCUDO, Camara. Dicionário do Folclore Brasileiro)

O Ipupiara não virava mulher, não cantava e não seduzia. Ele matava, era faminto e repugnante, bestial. Nada remetia ao mito da Iara nos primeiros anos coloniais. Segundo Cascudo:

"Nem o mito ameríndio das cí (mães) podia, psico e morfologicamente, compreeder as sereias e nixes brancas da Europa, brancas, louras, cantoras, tendo monomania da excitação sexual exclusiva. O que havia no Brasil indígena de quinhentos e seiscentos era o Ipupiara.

Boto vermelho ou tucuxi

O Boto

Assim como a Iara a história do Boto tem elementos que seriam impensáveis nos primeiros séculos coloniais. Ele surge no século XIX, seu primeiro relato foi em 1850 por Henry Walter Bates.

Ele é um dos principais mitos do Pará, sendo um dos mitos com maior número de versões e histórias que a ele são atribuídas.

O Boto, o golfinho amazônico (vermelho), se transforma no início da noite em um homem sedutor, alto, branco, forte e um grande dançarino e bebedor. Ele frequenta bailes, reuniões e encontros femininos, seduzindo mulheres nas cidades ribeirinhas aos afluentes do Rio Amazonas. Ele é o pai de todos os filhos de responsabilidade desconhecida, culpado de defloramentos e adultérios. No fim da noite ele volta aos rios e se torna boto novamente.

Existem muitas histórias sobre o Boto, inclusive houve mulheres que atribuíram a paternidade de seus filhos ao golfinho. Outros que mataram um homem sedutor suspeito durante a noite e no dia seguinte um boto estava morto.

Uma das histórias registradas por Bates é que o Boto se transformou em uma mulher de cabelos longos que foi passear nas ruas de Ega e levar moços para o rio. Se algum deles se seduzisse ela o pegava pela cintura e mergulhava com um grito de triunfo.

Dizem que o boto usa sempre um chapéu para esconder o orifício pelo qual respira.

Nas histórias europeias os delfins ou golfinhos, eram muitas vezes retratados como animais que remetem a sexualidade, devido aos seus movimentos de sobe e desce na água e a sua proximidade com os humanos. O animal era companheiro de Afrodite, deusa do amor na mitologia grega. Os golfinhos eram visto como bons amigos no mar, que ajudavam náufragos, característica também atribuída aos Botos.

Cascudo escreve que o Boto e a Iara são o mesmo mito, apenas de sexos diferentes devido a necessidade do europeu de separar os gêneros que antes eram contidos em um personagem só, o Boto.

"Bates, em meados do século XIX, só encontra boto-sereia e suas aventuras com as cunhãs paraenses. Não me constata anteriores a 1860. O boto sobreviveu hemafrodita, como Stadelli anotou, terminando pela fixação morfológica no Inia e na Mãe D'água, um para moças e um para rapazes. Com os elementos clássicos do delfim mediterrâneo e da sereia atlântica, o europeu determinou a função dos dois mitos, diferenciados e típicos. O boto sensual amazônico é a réplica masculina da Mãe D'água, ambos inexistentes nos pavores das noites coloniais do Brasil. "

Esse mito gerou diversas supertições como o medo de matar um boto, pois poderia trazer má sorte e usar o óleo de sua gordura traria cegueira. Ao mesmo tempo, o olho de boto era utilizado como amuleto para atrair o amor de uma mulher ou usado em feitiços do amor. Hoje ele corre perigo de extinção.

Cascudo, assim, conclui que os mitos do Boto e da Iara são de origem mestiça nordestina, fruto da influência principalmente de brancos e índios. Em a "Geografia dos Mitos Brasileiros" ele escreve:

"A Iara dos cabelos dourados, de voz irresistível, é tão ameríndia como seria natural o encontro duma baleia viva num píncaro dos Andes"

Essa conclusão vai de encontro com a origem da maioria dos mitos da região da Amazônia. No seu livro "Geografia do Mitos Brasileiros" ele escreve sobre as lendas da região:

“Estabelecendo uma relação nas diversas influências étnicas na região amazônica, podemos arriscar algumas afirmativas: Os brancos com o contingente nordestino fazem o primeiro núcleo. Os indígenas, pelo volume impõem o segundo, com intensa interdependência com o primeiro. Os negros estão dando vestígios, colorações, traços, em todos os dois centros anteriores”

O processo de surgimento dos mitos amazônicos se dá segundo ele:

"Na população branca e mestiça vivem os mitos europeus, com suas nuanças locais. A massa gigantesca das tribos vem, continuamente, carregando modificações que se divulgam, assimiladas, noutros mitos. Estórias da catequese confunde-se com tradições religiosas amerabas."

"A incrível facilidade com que o indígena ouve, retém e transmite, já inconscientemente modificada, qualquer estória, multiplica o mundo fantástico, alargando as fronteiras móveis da imaginação criadora. "

Referências:

CASCUDO, Luis da Camara. Lendas Brasileiras. São Paulo. Global, 2002.

CASCUDO, Luis da Camara. Dicionário do Folclore Brasileiro. São Paulo. Global, 2012.

CASCUDO, Luis da Camara. Geografia dos Mitos Brasileiros. São Paulo. Global, 2002.

--

--