Óleo Sobre Tela
ou
Sangue e Resina: uma obra fugaz
por
Fernando Massami Kikuthi
— Ânsia de vômito. Reuniões. Ganância. Não são coisas idênticas?
– Minha cabeça dói. Seis ou sete? Pro inferno, nunca durmo cedo mesmo. Ontem o dia foi, entre aspas, penoso. Aspas? Mesmo assim não foi de todo mau. O café estava gelado, mas adoçado a meu gosto. Hora de trabalhar… e-mails? Só ofertas e sites pornô — spam — a famosa navegação de mão única.
- Onan era um deus ou um bárbaro? Ou isso era um quadro na TV? Esqueça, o lugar dos quadros são as paredes.
Na verdade, nada importa. O trabalho é a condenação suprema do homem, mas um ato necessário para suprir as necessidades criadas pelo sistema. Quê? Afinal de contas é preciso dinheiro para alimentar a família, comprar um casaco decente ou um shape para meu skate.
Todo problema decorre de uma causa, direta ou indireta. No meu caso, ainda tenho dúvidas se a causa consistia no fato de o meu chefe ser um idiota sovina ou se assassinatos complicam ainda mais casos já críticos.
Analise os fatos:
- Meu chefe era um antigo conhecido, talvez um provável amigo.
- Trabalho em uma empresa muito importante no ramo de alta tecnologia, empresa essa a qual eu mesmo ajudei a edificar.
- Não tenho que estar presente na empresa a maior parte do tempo, um desses cargos criados pela sociedade atual e sua maravilhosa tecnologia.
- Meu estado financeiro é lamentável, os agiotas querem meu pescoço.
- Vou de skate ao trabalho, economizo gasolina e posso dessa forma sentir o vento contra meu rosto. Um conversível seria uma opção, mas daria au revoir à economia.
- Estou de shape novo.
- Meu chefe vem me passando pra trás em um megaempreendimento no qual tenho, ou deveria ter, uma modesta participação.
- Ele não desconfia que estou ciente de sua traição.
- Acordei puto.
Agora examine a situação da qual o problema surgiu, ou na qual ele se intensificou:
O telefone toca — são 8h30min — faz trinta minutos que me deitei. Atendo. É meu chefe. Um novo trabalho, diz ele, algo que somente eu, na empresa, posso fazer. Ele pede o orçamento e salienta a urgência de minha resposta.
Desligo o telefone, faço alguns cálculos e considero os diversos fatores. Em vinte minutos, tenho o orçamento em mãos. Tudo com base em indicadores e cotações complicadíssimos, ou seja, uma saída para o caso dos agiotas. Imprimo o projeto em casa.
Tomo um café correndo — breakfast — não tenho tempo para tomar uma ducha ou para escovar os dentes. Pego o skate e vou para a empresa, sem nem mesmo trocar de roupas, afinal, geralmente, durmo com as roupas que uso para andar de skate no fim de noite. Vou andando, mas não de skate, o chão estava molhado.
A diretora de recursos humanos, que simpatiza comigo, nota meu estado deplorável e me cumprimenta de forma menos entusiástica que de costume. Recebo a notícia de que meu chefe saiu para encontrar a filha que estava em Vancouver.
Espero esparramado no sofá da recepção cerca de 01h40min. Quando o chefe chega, damos início às negociações. Ele avisa de supetão que vai querer lucrar em cima de mim. Como já estou acostumado, concordo acenando com a cabeça. Digo meu preço, proporcional ao volume de trabalho e ao porte do contratante.
Aguardo a resposta…
Então a bomba. Da boca de meu chefe, saem as seguintes palavras:
- “Tenho quem faça mais barato.”
Quem? Não sou o único programador quântico dessa empresa? — penso.
Diante desse panorama, ou melhor, desse plano geral encorajador para uma manhã de rara beleza, sou obrigado a tomar uma decisão na fração de segundos que precede um contra-argumento:
1) Barganhar o preço do serviço;
2) “Soltar o verbo” no chefe desonesto e antiético;
3) Usar meu skate, que ainda se encontra ao alcance de minhas mãos, e ir embora desse lugar.
Despois de hesitar pensando no preço mínimo que poderia salvar minha cabeça, resolvo ficar com a última opção e acabo por estrear o shape.
Saio da sala de meu ex-chefe como se nada tivesse acontecido, dou adeus à diretora cativante de recursos humanos e volto para a casa dormir. Durmo, mas não em casa.
Faz um dia que pedi minha “demissão”. Enquanto dropo do quarter e me concentro na próxima ação, o som de Dido, “No Slide”, em meu MD portátil, me faz pensar em toda composição que esboça minha atual situação, em suas cores ocres e rubras, em sua estrutura gótica. A polícia deve estar no meu encalço, mas estamos no Brasil. Não estamos?
No fim ,tudo tende para o surreal, revisito Dali — ficção, penso eu, ficção é a vida. O resto é realidade.— foco o objetivo, o shape já está seco apesar da mancha. Não posso errar a próxima manobra.