Caminho de Santiago — Days 1 and 2

Maria Fernanda Garcia
The way | My way
Published in
6 min readApr 28, 2018

Um texto que vale por dois

Se prepara que lá vem textão. Texto que vale por dois…

Ontem cheguei tão anestesiada do primeiro dia que nem consegui escrever nada.

Parece que aconteceram coisas demais e coisas demais sempre precisam de reflexão. Me dei uma noite de sono e um dia de caminhada antes de sintetizar qualquer coisa que eu tenha vivido até agora.

Saí do albergue 8h25 da manhã; já super atrasada pra missa, que era as 8h30 na Basílica de Santo Isidoro em Leon. Ainda na saída, o Juan (vide história do dia 0) me puxou num papo e começou a perguntar quais eram meus planos. Disse que queria começar tranquila e que só andaria 20km no dia de ontem. Ele me disse:

“É seu primeiro dia! Não vai pelo Caminho normal… vai pelo alternativo, te juro que é mais bonito”

Aquilo soou como uma loucura total. Como que eu já ia começar “mudando a rota”? Mas tudo bem, resolvi não decidir naquela hora e começar a caminhar… quando chegasse a hora de mudar a rota, decidiria o que fazer.

Saí correndo (literalmente, com mochila e tudo) pra missa e cheguei logo quando começavam. Mal imaginava que era dia do Santo que dava nome a Basílica da cidade de Leon, Santo Isidoro, doutor da Igreja. Já comecei bem! Além de ir a missa antes de começar, ainda tive a graça de receber a Indulgência Plenária por estar celebrando o dia do Santo na Igreja que leva o seu nome. Fiz um tempinho de adoração após a missa e saí para o caminho…

Uns 10 quilômetros de caminhada depois, quase 2h, encontrei duas Britânicas, Beatriz e a Bárbara. As duas me convenceram a pegar o caminho alternativo com elas. Fomos conversando e comecei a entender como funcionava a vida por aqui: 1. você vê uma pessoa de mochila; 2. Você deseja “Buen camino!”; 3. Vocês se tornam amigos de longa data.

Quando completei 15 quilômetros do primeiro dia, caiu a ficha. E bateu o cansaço. Parei na beira da via de terra mesmo… E por ali fiquei uns 10 minutos sentada no chão, vendo os peregrinos passarem. A verdade é que quem manda no seu ritmo é o seu corpo: se ele pede uma pausa, ele precisa de uma pausa.

Cheguei no albergue depois de 25 quilômetros. Exigentes, muito sol e frio, mas eu estava muito bem. Comi, tomei um banho, lavei minhas roupas e pronto não havia mais nada para fazer. Isso eram 16h. Havia completado “as tarefas do dia”. Por um momento contemplei o meu momento “nada para fazer” até que fiquei bem entediada.

Entenda: Eu não sou uma pessoa que fica sem nada para fazer. Nunca. Eu não sei como me comportar nesses momentos. Resolvi ir no mercado comprar alguma coisa para comer no café da manhã do dia seguinte, mas isso não levou mais de 10 min.

Ok. E agora?

Arrumei a mochila para o dia seguinte.

Ok. E agora?

Aceitei o ócio.

Não foi fácil. Era incômodo. Tudo isso é incômodo. Andar 25 quilômetros em uma manhã é incômodo. Ter coragem para fazer tudo isso é incômodo (logo mais falarei mais sobre coragem).

Mas, era para isso que estava aqui.

Li 3 capítulos do meu livro, fiz a minha rota do dia seguinte e logo, fui para o pátio do albergue onde estavam os outros peregrinos.

Haviam aí 2 senhores, as duas inglesas do início da história (que ficaram muito felizes de me ver bem e no mesmo albergue que elas). Depois chegou a Tereza, uma austríaca que tem a minha idade e desde que eu havia chegado no albergue me olhava com uma curiosidade meio tímida. Eu resolvi respeitar a sua timidez e valorizar a minha (sim, ela existe). Ficamos conversando aí por umas duas horas, todos compartilhando suas histórias até o Caminho e no Caminho.

Eram umas 19h30 quando todos foram se preparar para jantar e dormir, alguns não estavam no mesmo albergue, e sobramos eu e a Tereza. Resolvi aproveitar o momento e tentar descobrir porque me olhava com tanta curiosidade.

A verdade é que ela estava me achando muito parecida com ela, estava curiosa para saber o que eu também estava fazendo ali. Conversamos muito, jantamos e fomos cada uma para o seu quarto.

Dormir cedo não é algo que faz parte da minha rotina, mas parece que a ideia é sair, fugir a rotina. 20h30 eu estava na cama, de pijamas e de dente escovado. Pronta para descansar esses lindos pezinhos que mamãe e papai me deram.

As 5h da manhã acordei como se nada tivesse acontecido. Existem anjos massagistas que fazem massagem nos seus pés aqui no Caminho, durante as noites, mas isso é segredo.

Faziam 4 graus na cidade. E comecei a enfrentar meu primeiro desafio.

Brasileiros NUNCA estão preparados para o frio. Podemos ter casacos, roupas adequadas, tudo… não estamos prontos. Não faz parte do nosso cotidiano, de quem nós somos. Não é normal.

Passei quase 1h completamente sozinha. Lógico, sai antes mesmo do sol nascer. Mas, acho que não contava que ia estar tão sozinha. Ao mesmo tempo, não era solitário. É estranho dizer isso, mas havia uma segurança que me acompanhava.

Enquanto o sol nascia no fundo, atrás de mim, fiz uma oração. E foi diferente de todas as que eu já tinha feito. Cada passo era um pedaço junto com as palavras que eu estava dizendo. Os primeiros 10 quilômetros passaram fáceis. Leves.

Quando me dei por mim, havia mais de 1 hora que eu não via nenhuma seta amarela (todo o Caminho de Santiago é marcado por setas amarelas, que vão indicando aos peregrinos qual é o próximo passo) e essa foi a primeira vez que eu senti medo. Medo de verdade, tipo, paralisada.

Tentei me controlar e resolvi seguir em frente. Pensei: se eu voltar e estiver certa, vou perder muito tempo, se eu estiver errada, lá na frente eu corrijo a rota. Foi só uma intuição, mas deu certo. Depois de mais uns 2 quilômetros encontrei a tão desejada seta amarela.

Tudo parecia dar certo. Meu plano de andar mais de 30 quilômetros seguia bem e eu estava bem.

O trecho que eu fiz hoje é um trecho difícil, ele é longo, tem muitas subidas e descidas. É árduo e trabalhoso, exige concentração, atenção. Mas tem suas vantagens: É lindo, tem muitas pessoas junto com você nesse trecho longo e você tem muito tempo para deixar a sua cabeça te levar para o lugar que você está buscando.

Nos 25 quilômetros, mais ou menos, a minha cabeça esqueceu que deveria me levar a algum lugar e simplesmente travou. Eu tinha certeza que não chegaria. Comecei a pensar que não teria cama para dormir, que tinha andado muito devagar, que tinha parado muito.

Sabe, eu disse que falaria de coragem, e agora chegou a hora. Hoje eu entendi o que realmente quer dizer coragem. Coragem não é um tipo de heroísmo. Muito menos uma força inigualável e incontrolável.

Coragem é deixar o coração agir.

É deixar o seu coração demonstrar as vulnerabilidades dele, e deixar que ele controle a situação. Ou melhor, é aceitar que, às vezes, não ter controle não é o fim do mundo. Estar tudo sempre bem, não pode ser condição básica para a vida e o caminho continuarem.

Ouvi algumas vezes que o caminho é uma metáfora para a vida. E sim, talvez seja uma das melhores. A cada passo e com cada pessoa, tenho tirado lições que, por mais simples que sejam, talvez até um pouco óbvias, me fazem uma pessoa melhor,

Hoje eu errei. Acertei. Cansei. E mais, vivi.

Desafios concluídos: aceitar o ócio, ter coragem e ouvir mais.

Amanhã tem mais e meus pés doem.

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