Anotações do diário do Dr. Vincent Cunningham

Rene Spoladore
Escritas
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31 min readDec 16, 2019

12 de Outubro de 1920

Minha assistente recebeu uma ligação hoje pela tarde enquanto eu estava com um paciente. Segundo Carrie, um homem que se identificou apenas como senhor Knott gostaria que eu fosse até seu escritório, no centro da cidade, para conversar sobre um assunto delicado envolvendo um patrimônio seu. Não vejo como posso ser útil nesse assunto, mas, segundo o senhor Knott, ele estaria disposto a pagar uma quantia pela minha consultoria. Ao final do dia devo retornar o contato e confirmar minha ida.

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Terminei meus afazeres pontualmente às 17h como sempre, meu último paciente já saiu tem alguns minutos e eu corri para o telefone no mesmo instante. Tive uma conversa breve com o tal senhor Knott, ele me pareceu uma pessoa calma e coerente, embora não conseguisse manter um raciocínio muito lógico durante nossa conversa. Ele foi escuso quanto ao assunto o qual tratarei e isso me deixou um pouco desconfiado, de qualquer forma agora estou curioso quanto a natureza dessa consultoria. Combinei de encontrá-lo amanhã cedo, por volta das 10h, em seu escritório. Não sei se terei uma noite tranquila de sono com esse misterioso contato rondando minha cabeça.

13 de Outubro de 1920

O centro é sempre bem movimentado pelas manhãs e não foi diferente hoje. O escritório do senhor Knott fica no terceiro andar de um prédio a algumas quadras da delegacia, não é uma construção elegante, ainda assim é um bom prédio, ele possui uma arquitetura moderna de tijolos aparentes e janelas adornadas. Em sua recepção me deparei com mais quatro pessoas o que me faz acreditar que esse projeto de consultoria do senhor Knott é algo grande, achei peculiar a presença de Nathaniel, confesso que a figura de um detetive me deixou com uma pontada de preocupação, com os demais não estou familiarizado, espero que o senhor Knott possa explicar o que quer logo de uma vez.

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A sala do senhor Knott não ostenta grandes decorações, nota-se que ele é um homem simples e ainda assim de bom gosto. Sentei-me junto aos demais ao redor de sua mesa, entulhada de papéis de tal forma que mal pude ver a superfície clara da madeira. As cadeiras são confortáveis e uma moça jovem nos trouxe café recém feito, talvez essa tenha sido a melhor parte dessa manhã, pois logo que ela saiu, o senhor Knott tratou de nos apresentar uns aos outros, enfim soube quem eram aquelas pessoas, Patrick Charle Evans (um ex-piloto de guerra), Lucille Jules Edmund (uma fotojornalista) e Nathaniel Peter Simpson (um detetive, que eu já conheço). Achei curiosa a presença da garota, Sofie Labeau, cujo senhor Knott não deu muitas explicações. Ao final das apresentações ele nos disse quais eram as suas intenções.

Ele é dono de uma propriedade famosa aqui em Boston, a casa Corbitt. Ela é famosa pelos motivos errados, a crendice popular atrelou os crimes que ocorreram dentro dela a um fator sobrenatural, do qual eu completamente desconfio a veracidade, imagino que o simples fato de que a frequente ocorrência de assassinatos dentro da casa e fantasmas estão ligados à necessidade da mente humana em criar padrões para que o mundo se encaixe de alguma forma, que o mundo faça sentido.

O senhor Knott nos pediu para investigar essas ações sobrenaturais, pois ele deseja alugar a residência e por conta dessas histórias da Carochinha nenhuma pessoa mostrou interesse nela, se conseguirmos desmentir tudo o que a vizinhança já disse sobre a casa Corbitt e publicar isso no Boston Globe, ele tem certeza de que conseguirá seguir adiante com seus negócios.

Patrick questionou sobre os possíveis lugares a serem investigados, o senhor Knott nos falou sobre o Boston Globe, onde matérias sobre a casa já foram escritas. A biblioteca e os arquivos públicos, onde conseguiremos encontrar informações sobre a casa em si, como a planta e por fim o Sanatório Roxbury, onde os últimos moradores foram internados de forma voluntária, o senhor Knott nos contou que o pai da família Macario quase matou um de seus filhos pouco antes de deixarem a residência.

Decidimos que nos dividiremos em 2 grupos, Luceille e Nate vão investigar o Boston Globe e os arquivos guardados na delegacia enquanto eu levarei Sofie e Patrick ao sanatório, eles acham uma boa ideia conversar com o casal Macario, eu não acredito que teremos resultado algum lá, sei como são os pacientes que residem em Roxbury e se estão ali é porque não há tanta esperança de se recuperaram, mas como tenho boa relação com a Dra. Lucille Morris (gerente do sanatório) me dispus a ir com eles.

Não gosto de dirigir até lá, o caminho é tortuoso e longo.

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Passei os últimos 40 minutos dirigindo, meus braços estão cansados e minha paciência está ainda pior por conta dessa baboseira toda. A garota, Sofie, sentou-se ao meu lado e senti um leve incomodo com o jeito dela, é um sentimento irracional, mas ainda assim se manteve presente a viagem toda. Conversamos um pouco sobre a reunião no escritório do senhor Knott, mas assim que saímos de Boston a caminho do sanatório ficamos em silêncio a maior parte do percurso. A vegetação é muito densa na saída da cidade, é quase como se as árvores que flanqueiam a estrada formassem um túnel verdejante, permitindo que apenas poucos raios de sol passem por entre suas copas cheias.

A entrada do sanatório sempre me impressiona. É uma construção muito antiga, não sei ao certo o quão antiga, deve datar de 1600 ou 1700. Se não me engano o lugar era uma propriedade da igreja, talvez funcionasse como um convento, e possui um pátio grande de paralelepípedo com uma bela árvore centenária bem ao centro. Próximo à entrada eles mantém um canil em que, curiosamente, os cães não ladraram à nossa chegada. Parei meu carro próximo a entrada. As paredes externas são brancas, mas a pintura está desgastada e é visível os nichos de onde figuras religiosas foram removidas quando aqui fora instalado o sanatório. Deixei meu sobretudo e paletó pendurados no banco do carro e apanhei minha maleta. Meus companheiros saíram e ficaram observando a entrada do sanatório Roxbury enquanto eu subi as escadas e bati com a argola na porta.

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Já passa das 14h e eu estou no hospital, escrever esse diário nas minhas condições não é fácil, mas vou relatar o que eu vi no sanatório. Quando eu ler isso em um futuro breve vou dar risada de mim mesmo, mas nesse momento eu não sei dizer exatamente o que aconteceu. Vou começar do início.

Mary, como sempre, me recepcionou na entrada do sanatório. A recepção é uma enorme sala que carece de mobília, fora uma mesa em L próxima a uma porta de metal e uma mesinha alta com uma jarra d’água com alguns copos ao redor. O pé direito é alto o que faz nossas vozes ecoarem no menor sussurro e o espaço é mal iluminado, embora tenha janelas grandes na entrada, elas ficam escondidas atrás de espessas cortinas. Conversei com ela sobre o trabalho que nós três estávamos desenvolvendo e quando citei o nome Macario a mulher pareceu ficar petrificada. Ela insistiu para que não fossemos até eles, pois ambos não estavam em condições de receber visitas. Pedi para que Mary falasse com a dra. Morris e tratasse como um pedido pessoal. A senhora me olhou cansada e assentiu, saiu pela porta atrás da mesa da recepção e se ausentou por muitos minutos. Meus dois convidados ficaram impacientes quanto a ausência da mulher, me disseram que ela não voltaria e eu insisti que sim, ela voltaria. Patrick tentou ler os arquivos que estavam em cima da mesa e eu o impedi, disse que não permitiria esse tipo de comportamento, eles estavam ali como meus convidados. O rapaz me puxou para conversar e nesse momento vi Sofie passando pela porta de metal, pela qual Mary havia ido. Fiquei nervoso com aquilo, a garota me desobedecendo, como pôde? Quando disse que ia atrás dela, Patrick sugeriu que ele faria isso, pois se a dra. Lucille Morris chegasse era melhor que eu estivesse ali. A contra gosto concordei e pedi para que ele fosse rápido, coisa que ele não foi.

Notei que Patrick estava se demorando, minha impaciência tomou conta, olhei brevemente para os documentos em cima da mesa, ao melhor estilo faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço, e encontrei informações sobre a sra. Macario, na página havia apenas seu nome, Gabriela Macario, e onde estava, Ala C quarto 22. Ao ler isso, me virei para a porta de metal e abri, me deparei com um corredor iluminado por luzes elétricas que pareciam falhar de vez em quando. Ali, vi Mary voltando a caminho da recepção, ela ficou surpresa ao me ver. Mary veio até mim e informou que a dra. Lucille Morris não poderia me atender, mas que eu e meus companheiros estávamos autorizados a ver os pacientes, o problema era que eles, Patrick e Sofie, já não estavam mais na recepção. Fiquei desconcertado quando Mary me perguntou sobre os dois, foi então que vi Patrick no final do corredor e o chamei, mas o idiota se escondeu na curva do corredor. Mary deve me odiar por não tê-los impedido de cruzar a porta. Enquanto conversava com Mary, tentando remediar a situação, Patrick se mostrou e ela disse que procuraria por Sofie assim que nos levasse ao senhor Macario, mas que aconselhava que não fôssemos ter com ele. Insisti no assunto e ela deu de ombros. Nós passamos por uma porta com uma tranca no formato de escotilha, a válvula rangeu alto, o mesmo aconteceu com as dobradiças quando Mary abriu a porta. Quanto mais adentrávamos o sanatório mais escuros ficavam os ambientes, essa foi minha sensação. Andamos até o final e viramos à direita, então no novo corredor viramos à esquerda, vi na parede a informação de que estávamos na ala B, deduzi com isso que o casal Macario não estavam residindo no mesmo quarto. Mary mostrou a porta e me entregou um molho de chaves, quando as peguei ela se retirou para encontrar Sofie. Havia uma portinhola estreita na altura dos meus olhos, eu a abri e vi o homem dentro de seu quarto. Ele estava sentado em uma cadeira próximo a uma mesa, em suas mãos havia um livro e ele tinha a cabeça baixa, como se estivesse lendo. Chamei por ele, mas o homem não me respondeu, tentei fazer algumas perguntas e mesmo assim ele continuou parado. Patrick tocou meu ombro para falar algo, não me lembro o que ele disse, mas quando me voltei para o quarto de Victorio Macario vi algo estranho, algo que desafiava qualquer lógica, as paredes, antes desbotadas e com manchas de umidade, agora estavam cobertas por palavras escritas em uma língua da qual não sou capaz de identificar, apertei os olhos e os abri, o quarto estava normal, repensei minha sanidade por alguns segundos e então me afastei da porta e respirei fundo. Nunca cheguei a mencionar isso à ninguém.

Patrick agiu estranho quando coloquei a chave no ferrolho, ele que antes estava determinado a conversar com os pacientes, agora parecia repensar essa ideia. Eu entrei no quarto de Victorio Macario, não notei na hora, mas Patrick não entrou imediatamente, ficou na porta observando as paredes mal cuidadas. Me aproximei do paciente e o chamei e como antes continuou sem dizer uma única palavra. Cheguei ainda mais perto para ver o que ele lia, era um livro com páginas em branco. Quando toquei com a ponta dos dedos a superfície do papel virgem, Victorio levantou o braço junto com o livro em um estranho movimento para tentar me atacar, dei um passo para trás e me preparei para um segundo ataque, mas ele não o fez, apenas levantou o rosto em minha direção e por um segundo pensei que o homem não possuísse olhos, nariz e nem boca, mas as sombras logo se desfizeram e pude ver os traços bem marcados de um rosto cansados com uma barba desgrenhada, Victorio Macario disse “Pela sua própria arma o diabo é ferido”, e enquanto falava, seu indicador passeava pela página em branco, como se estivesse acompanhando uma passagem impressa na folha. Não sei ao certo o que ele quis dizer com isso. Engoli seco e me aproximei mais uma vez e lhe perguntando sobre a casa Corbitt, ele voltou a ficar em silêncio. Respirei fundo e disse “Já que não vai me ajudar, vou fazer as perguntas para sua esposa, Gabriela.”. A postura de Victorio mudou, ele se colocou ereto na cadeira e perguntou sobre ela, eu insisti na pergunta sobre a casa Corbitt e ele apenas me alertou que não deveria investigar esse assunto, que deveria esquecê-lo. Depois, antes de entrar no silêncio mais uma vez, me pediu se poderia ver sua esposa e eu neguei. Fui em direção a porta e quando me dei conta, Patrick nocauteou Macario, que corria em direção a saída. Coloquei-o na cama.

Antes que pudesse sair do quarto, ouvi uma batida ritmada percebi que Patrick estava incomodado com isso e tentei puxá-lo para dentro do quarto, mas ele se desvencilhou e acabei saindo junto com ele. O som era incômodo, como se cada paciente batesse nas paredes em uníssono. Enquanto essa percussão assustadora seguia, Patrick tentou me convencer a irmos embora e então, de repente, o barulho parou. Nos olhamos e então, com o rapaz mais calmo, decidimos continuar e ir ao quarto de Gabriela Macario.

Enquanto andávamos pelo corredor da ala B para a ala C, Patrick disse que todos os pacientes estavam nos observando através pequenas portinholas. Tentei ignorar isso, embora fosse de fato muito estranho ter aqueles olhos perscrutando nossos passos. Quando passamos pela intersecção dos corredores avistamos na outra ponta Lucille (a jornalista, não a doutora), Nate e Sofie. Eu os chamei, disse que estávamos indo ao quarto da sra. Macario. Eles se apressaram para nos acompanhar.

Antes de chegarmos a porta, Sofie contou que teve uma conversa estranha com Mary, a velha senhora estava preocupada com nossa presença no sanatório e que deveríamos ir embora e desistir da investigação (não foi a primeira pessoa que nos disse isso, e duvido que será a última), além disso Sofie nos contou que encontrou um antigo documento que diz que o senhor Corbitt já fora internado no sanatório Roxbury há muitos anos atrás. Nathaniel e Lucille confirmaram algumas informações que batiam com o que Sofie achou no documento do sanatório. Eles falam sobre um homem, reverendo Michael Thomas (Capela da Contemplação e da Igreja do Nosso Senhor Provedor de Segredos), que fora o executor do testamento do senhor Corbitt e sobre o prédio da igreja que fora destruído por chamas há algum tempo atrás.

Continuamos em direção à porta e assim que chegamos nos deparamos com uma ala mais limpa e melhor iluminada. A porta era de madeira e não possuía a portinhola. Quando toquei a maçaneta, Lucille se afastou como se algo a tivesse assustado, Sofie disse que também havia visto o fantasma de uma mulher sair do quarto e atravessar a mim e então a própria Lucille e desaparecer pela parede. Visto um fantasma, como posso acreditar em tal coisa? Ao menos compreendi o papel de Sofie na investigação, Knott é um homem que acredita nas histórias da casa, por isso a contratou, uma cultista. Pedi para que elas se acalmassem e abri a porta. Ela estava destrancada. Empurrei a porta devagar e lá dentro havia uma mulher deitada na cama, como se fosse colocada com gentileza em cima dos lençóis. O quarto em si não era diferente em nenhum aspecto, havia um armário, uma escrivaninha e uma pequena cômoda. Nate e eu fomos logo até a mulher, ela estava gelada e não havia pulsação. Tiramos a camisola e analisamos o corpo, mas não havia nada que indicasse qualquer ato violento contra ela e que lhe causou a morte. Nate me emprestou a lanterna e então eu abri seus olhos e notei, mesmo com os olhos revirados, a íris de cor castanha, ainda não estava leitosa. Pensei que ela pudesse ter sido envenenada e por isso abri sua boca, a língua dela era azul, mas a mucosa ainda mantinha o tom rosado o que era muito estranho, foi quando, de repente, ela fechou a boca em um espasmo muito forte, quase arrancando o meu indicador direito. Nunca gritei tão alto em toda minha vida. Com muita dificuldade consegui tirar meu dedo que fora dilacerado pelos dentes da mulher, arrancando um bom pedaço da pele, como uma banana descascada. Nathaniel pediu um pedaço da saia de Sofie para que ele pudesse fazer uma bandagem (a garota entregou a contragosto, pois tenho sido um pouco rude com ela, por conta de sua área de especialização), mas vendo que o detetive iria apenas enrolar meu dedo, me irritei (principalmente pela dor) e disse entredentes que era necessário limpar a ferida. Peguei o tecido e fui ao banheiro do quarto. A água gelada parecia uma lâmina afiada correndo pelo meu dedo quase sem pele, minha mão tremia durante todo o procedimento e com dificuldade consegui lavar o dedo e aplicar a bandagem. Quando sai do banheiro, vi meus companheiros revirando o quarto da senhora Macario e enquanto via aquilo tive um pressentimento. E se ela tivesse se suicidado com os medicamentos? Voltei ao banheiro e procurei por remédios no armário, mas não havia nada ali. Não era possível, algo a matou e não conseguia encontrar nenhuma evidência disso. Continuei procurando até que um fundo falso se soltou da parte de trás do armário, um painel de madeira mirabolante que passou despercebido pelos enfermeiros. Havia 4 comprimidos escondidos e que, depois de alguma análise vaga, identifiquei como algum tipo de calmante forte. Entreguei-os ao detetive e então saímos em direção a recepção. Infelizmente o remédio escondido não é evidência para sua morte, ela apenas escolhera não ingerí-los. Não sei dizer a causa da morte de Gabriela Macario.

A caminho, me lembrei do pobre senhor Macario, me senti na obrigação de contar ao homem o que houve com sua esposa. Por mais que os outros fossem contra, por motivos do homem estar internado, eu achei ético que ele soubesse, Patrick concordou comigo “Os outros médicos não vão contar à ele, acho que é o certo”. Outros médicos, eu não havia visto outros médicos desde nossa chegada, apenas Mary e isso acendeu uma luz em minha cabeça. Patrick e Nate me seguiram de volta ao quarto de senhor Macario. Lá, abri a pequena portinhola, por mera formalidade, já estava com a chave em mão e prestes a destrancá-la, mas mesmo assim o observei. O que eu vi me deixou confuso e um pouco assustado. O homem estava escorado na parede, com o rosto apoiado nela. Entrei depressa e amparei o homem, deitei-o na cama, como fizera minutos antes. Seu rosto estava desfigurado, crânio rachado, nariz afundado e o sangue cobria toda sua face. Na parede havia uma grande mancha que se transformava em um rastro. Era óbvio o que acontecera, o homem se flagelou até a morte. Digo isso, pois Nate e eu buscamos evidências que comprovassem que ele havia sido assassinado, mas não havia sinais de luta e apenas seu rosto estava machucado, o resto do corpo estava intacto. Patrick foi insistente sobre as condições em que o sanatório estava tratando seus pacientes e por mais que eu defendesse a instituição, tive que concordar com ele em alguns aspectos. Nathaniel disse que chamaria seus colegas para realizar uma investigação no local.

Voltamos à recepção e lá estavam Lucille e Sofie nos aguardando, elas estavam um pouco exaltadas diante as coisas que viram e conversavam sobre a visão do fantasma de Gabriela Macario. Patrick recolheu os documentos que estavam na mesa da recepção e entregou à Nate, disse que iriam ajudar na investigação.

Eu não me lembro de ter visto o Sanatório Roxbury dessa forma, lembro-me de sempre ter sido bem atendido e de ter conversado com a dra. Lucille Morris sobre como as instalações eram boas para o tratamento dos pacientes, mas hoje minha opinião se abalou. Um local sem médicos, com quartos imundos como o de Victorio e pacientes morrendo de forma brutal. Talvez seja apenas coincidência. Ou será que Sofie tem razão?

Na saída do sanatório nos dividimos mais uma vez. Lucille e Sofie foram até a biblioteca, atrás de mais informações sobre o senhor Corbitt. Elas deixaram Nate na delegacia, onde o detetive deve ter solicitado uma equipe para vasculhar o sanatório. Eu, por minha vez, vim ao hospital acompanhado de Patrick, estou aguardando os cuidados médicos para o meu incidente, meu dedo está latejando e dói muito, o simples ato de escrever nesse diário está sendo um tormento.

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Finalmente em casa, após uma série de acontecimentos. Julgo serem coincidência e apenas isso, já ouvi muita coisa nesses meus anos tratando meus pacientes, por isso não fico alarmado com o que ocorreu. Mas o incidente no Sanatório Roxbury não foi o ponto final do dia. Quando saí do hospital, junto de Patrick, decidimos almoçar pela região onde fica a casa Corbitt, assim poderíamos entrevistar os vizinhos logo na sequência. O bairro em que a casa se encontra é um pouco afastado do centro. Fica em uma região mais antiga de Boston. No trajeto nos deparamos com uma rua bloqueada e próximo ao bloqueio pudemos vislumbrar as edificações da Capela da Contemplação e da Igreja do Nosso Senhor Provedor de Segredos que jaz em ruínas após o incêndio que a engoliu. Aquela construção devastada destoa muito do cenário ao redor e mesmo depois de anos do incêndio ela continua ali, como que para lembrar a população sobre o lado sombrio da cidade. Fui obrigado a dar a volta pela rua de terra que passa por trás da capela e desemboca na rua em que estávamos antes.

A casa Corbitt, assim como a capela, é destoante das outras casas. Seu terreno é imenso e grandes árvores crescem ao redor da casa, os moradores parecem não ligar para as densas copas encobrindo a imagem de uma casa que representa todo o mau agouro do mundo. Nessa rua, a casa Corbitt é vizinha direta apenas de uma outra casa, seu terreno fica em uma esquina. Parei o carro em frente a essa outra casa, cuja a caixa de correio marcava o nome Douley. Na varanda havia um homem sentado em uma cadeira de balanço. Desci do carro e fui até ele. Conversamos brevemente sobre a casa e a família Macario. O homem tem receio de mencionar qualquer coisa relacionada às histórias que a cercam e o que ele nos contou não foi diferente do que já ouvimos. Gritos, brigas e coisas estranhas. Em um segundo momento perguntei-lhe sobre a capela, o senhor Douley falou sobre o que ocorreu de forma vaga, apenas mencionou um tiroteio com a polícia e o incêndio. Disse, também, que alguns amigos faziam parte das cerimônias religiosas, mas que nenhum deles está mais por aqui. Agradeci e me despedi.

Sugeri a Patrick que fossemos olhar as ruínas, mas o rapaz se recusou, ele está assustado com esse caso e imagino que ele se pudesse voltar atrás, não teria aceitado fazer parte disso. Ele estava realmente desconfortável então sugeri que ficasse ali, junto ao carro enquanto eu iria até as ruínas da capela. Embora seja uma construção devastada pelas chamas, não parece tão frágil hoje. O que havia de desmoronar já desmoronou. Sua fachada ficou enegrecida pela fumaça e não se pode ver a cor original de suas paredes, a vegetação tomou tudo a sua volta, fazendo os escombros parecerem pedras naturais. O caminho até a entrada não possui obstáculos, mas há algo curioso, em um dos blocos dos escombros vi um símbolo pintado (só consigo descrever esse símbolo como três “Y” cada um rotacionando de uma forma diferente fazendo a junção deles formar um triângulo e no meio desse triângulo há um olho aberto), essa pintura com certeza é recente.

Toquei-a com os dedos na dúvida de que pudesse estar fresca a tinta, mas não. Continuei para a porta principal. Lá dentro é escuro, ainda mais por conta do sol baixo, próximo do entardecer, mas pude ver o chão a minha frente, ou melhor a ausência de um chão a minha frente. Para chegar do outro lado da nave principal da capela, fui obrigado a andar por uma beirada que restou, como um alpinista em uma passagem estreita. Cheguei até um altar de madeira carbonizado, ele tinha um tecido cobrindo sua superfície, igualmente danificado pelas chamas. Eu o analisei e arranquei um pedaço, ele parece roxo e de boa qualidade. Estou olhando para ele agora mesmo, ao lado do frasco de tinta da minha pena.

Por detrás do altar há uma escada que leva até uma espécie de porão. Aqui fui obrigado a enxergar com o auxílio da chama do meu isqueiro, o que foi uma tarefa muito difícil. Fui tateando ao redor e nesse momento quase caí de costas com o susto que levei. Ao lado de um pequeno armário havia dois esqueletos usando mantos, imagino como o que o senhor Douley descreveu em nossa conversa, mexi nos esqueletos para ver se encontraria alguma coisa, mas algo estranho aconteceu, em cada pedaço de osso que eu tocava ele se desfazia em pó. Minha especialização médica é voltada à mente humana, mas sei que ossos não se comportam dessa maneira. No momento em que toquei os ossos senti como se um alfinete estivesse entrando em minha testa, bem entre os olhos, era uma dor incômoda, mas suportável. Respirei fundo e fui investigar o armário. Nele encontrei uma pilha de papéis que não consegui ler ali, com tão pouca iluminação. Os enrolei e prendi na cintura da minha calça. Voltei para a área externa da capela e pude ver na rua Nate e Patrick vindo até mim. Fui ao encontro deles e contei ao detetive o que eu vi ali dentro. Nate se mostrou preocupado com nossa investigação, tanto que me ofereceu um revólver que eu prontamente recusei, nunca atirei com uma arma e provavelmente acertaria o alvo errado se tentasse.

Ao sair do entorno da capela a dor de cabeça cessou, como se minha mente se sentisse aliviada de não estar mais naquele lugar agourento. Nós três fomos comer algo após isso e então os deixei cada um em suas respectivas casas. Combinamos de nos encontrar em frente a casa Corbitt amanhã pela manhã e enfim investigar o local propriamente dito. Vou usar essas horas restantes da noite para tentar ler os papéis que encontrei, muitos deles estão se desfazendo por conta do incêndio, mas acho que consigo algo.

14 de Outubro de 1920

Acordei um pouco cansado essa manhã, fiquei lendo os documentos encontrados na capela até tarde. Não foi fácil entender as palavras escritas naqueles papéis, as chamas os danificaram muito e o que eu consegui ler falava sobre uma batida policial que aconteceu na Capela da Contemplação e da Igreja do Nosso Senhor Provedor de Segredos, pois se especulava que os membros do culto eram os responsáveis pelo desaparecimento de diversas crianças. Nessa ação, 3 policiais e 17 membros do culto foram mortos ou pelo tiroteio ou pelas chamas, não se sabe ao certo, pois ao que parece os registros de autópsia foram feitos de forma desleixada, sem detalhar nenhuma das análises feitas nos corpos, é como se o legista não tivesse realizado os exames de fato. Agora devo tomar meu café e encontrar com os demais enfrente a casa Corbitt.

19 de Fevereiro de 1921

Me afastei de Boston por alguns meses, não foi uma decisão simples, mas eu precisava fazer isso. Estive em Nova Iorque estudando um pouco sobre o que vi naquela manhã de outubro, sei que disse àquelas pessoas que nunca mais as veria e que me afastaria de todo aquele pesadelo, mas aquelas coisas, aquelas coisas não sairão da minha mente nunca mais e eu preciso entendê-las, entender que não enlouqueci, entender que este mundo ainda é são. O que aconteceu naquela casa me deixou (perturbado) confuso, por isso pode parecer que o que estou escrevendo aqui não faz sentido algum, mas eu sei o que eu vi e minha sanidade, apesar de tudo, parece intacta. Vou usar essa escrita como uma forma de exorcizar isso de mim, externalizar algo é sempre um bom remédio. Espero que funcione assim como funciona para os meus pacientes.

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Lembro-me de ter chegado à casa e que alguns dos meus sócios nessa investigação já estavam por lá. A casa Corbitt é grande e destoa das demais casas da região, ela fica ao centro de um terreno, de esquina, e é rodeada por grande e antigas árvores com copas cheias. Patrick estava com as chaves dadas pelo senhor Knott. O rapaz sugeriu que déssemos a volta pela ruela, fizemos isso. Os muros que cercam a casa são divididos em duas partes, uma de alvenaria, baixa na altura do meu peito e o restante, acima, possui grande e compridas lanças de metal preto. Nessa breve caminhada avistamos uma porta lateral e o terreno terminava, vindo uma nova casa ao lado. Voltamos à frente da residência e Patrick, então, abriu o portão principal. Assim que entramos Nate sugeriu que usássemos a porta lateral. Fiquei irritado com aquela atitude e disse que era ridículo querer entrar pela porta lateral pelo simples fato de ele achar que pudesse existir uma armadilha em uma casa ABANDONADA. Sofie concordou comigo e disse que queria entrar pela porta da frente, solicitei a chave à Patrick e disse que podiam entrar pela lateral como bem entendessem. Lucille ficou desconfortável por nos separarmos em dois grupos, mas mesmo assim o rapaz sacou a chave e abriu a tranca, que fez um grande e enferrujado cleque. Girei a maçaneta e pisei do lado de dentro abrindo os braços como um mágico após finalizar um truque. Como eu suspeitava, nada aconteceu.

O primeiro cômodo era uma sala, estava muito escuro, pois cortinas grossas cobriam as janelas. Mal enxergávamos os móveis que estavam lá. Fui até essas janelas e afastei as cortinas, levantando uma nuvem de poeira que se realçou à luz do sol, pequenas partículas bailando suspensas no ar e tomando todo o recinto. Havia uma porta na parede à esquerda de quem entra, e na parede oposta à porta principal uma passagem que revelava apenas escuridão. Sofie mexeu em alguns livros em uma prateleira próximas às janelas em que eu estava. Todos faziam um silêncio incômodo, deixando apenas a casa emitir seus sons velhos. Nathaniel, com a lanterna, foi até a passagem e disse ser uma sala de jantar. Fomos todos até lá, e abrimos as cortinas, como fizemos na sala principal. Ali, no centro da sala de jantar, estava uma mesa posta para 3 pessoas, a louça estranhamente colocada uma em cada cabeceira e a terceira ao lado de uma das duas, havia comida velha e se decompondo dentro dos pratos. Em um móvel alto onde eram guardadas o restante das peças do aparelho de jantar, não havia nada de interessante lá dentro, embora eu tenha dado um salto para trás quando avistei um rato passar correndo e se esconder atrás de uma pilha de pratos de sobremesa. Nesse momento ouvimos um barulho alto vindo do andar de cima, como se duas tábuas de madeira colidissem agressivamente, Nate me deu a lanterna e puxou o rifle das costas, Patrick o imitou, empunhando o revólver. Fui na frente até o próximo cômodo, atravessando a passagem depois da mesa. Joguei a luz amarela da lanterna para todos os lados, banhando armários, janelas e uma pia entulhada de louças sujas. Sofie abriu a cortina da cozinha, fazendo a lanterna não ser mais necessária. O cheiro era desagradável, era de comida estragada, mofo e poeira, mas não nos demoramos ali, pois nosso foco era ir até a fonte do barulho. Guiei a todos através de uma porta que estava entreaberta, depois dela havia um corredor, na parede logo a frente havia uma porta fechada, me virei para a esquerda e lanterna não conseguiu iluminar até o fim do corredor, então dei meia volta e a luz revelou uma parede e a sombra me fez perceber que ela continuava para ambos os lados. Fomos até lá e vimos escadas, do lado direito uma escada que descia e para a esquerda uma escada que subia. Nate subiu rapidamente, com o rifle sempre apontando para uma ameaça que nunca aparecia.

Assim que chegamos no andar de cima ouvimos mais uma vez o barulho, mas antes que eu pudesse ir com os demais até a porta, algo me chamou a atenção. A escuridão que engolia aquela parte da casa não parecia certa. Era uma escuridão errada, mas ainda assim familiar. Fui até a janela e observei o lado de fora da casa. As copas densas das árvores encobriam quase toda a vista, mas ainda assim eu pude vislumbrar uma porção do céu, do céu negro da noite, com estrelas salpicando suas luzes na superfície. Eu engoli seco e respirei fundo. Gritei de espanto, por algo que minha mente não compreendia e que não compreendo até hoje. Peguei meu relógio de bolso e vi os ponteiros, eram 10:47. Da manhã? Da noite? Ficamos 12 horas dentro daquela casa? Larguei a lanterna no chão pelo choque. Nathaniel veio até mim, alarmado com meu grito, a única coisa que consegui fazer foi jogá-lo contra a janela e pedir para ele me dizer o que via lá fora. O detetive também ficou assustado, mas não tanto quanto eu. Eu cambaleei para trás e coloquei as mão nos joelhos, arqueando as costas um pouco, senti que ia vomitar, mas não o fiz. Desci as escadas até a cozinha novamente e olhei pela janela, dali eu via o céu azul e sem nuvens de uma manhã bonita. Apanhei o primeiro copo que vi, naquela pilha de louça e enchi com a água da torneira, de início turva e com cor de ferrugem, mas logo se tornou cristalina. Limpei o copo e bebi a água e grandes goladas. De repente vi Lucille entrando e me puxando pelo braço, mas não me lembro dela ter conversado comigo no caminho de volta ao andar superior. Apenas me deixei guiar pelas mão da jornalista. Sentia como se eu não estivesse fisicamente ali, muito menos mentalmente. Ela me levou até um quarto onde os outros estavam reunidos. Era um quarto de crianças, com duas camas, brinquedos espalhados e um armário com roupas penduradas com esmero nos cabides. Ouvimos o barulho mais uma vez e acho que isso foi o que me tirou daquele transe estranho. Saímos e nos dirigimos até o quarto ao lado, ali não havia quase mobília, apenas uma cama sem o colchão e um armário velho. A janela estava aberta e ela batia contra a parede da casa a cada lufada do vento. BLAM, mais uma vez. Lucille disse que iria fechar a janela e assim que chegou em frente a ela a cama se ergueu do chão e foi jogada contra a mulher, tentei correr em direção a ela, mas o som do grito e do seu corpo rolando pelas telhas da casa me mostravam que não havia nada a ser feito. Sofie e eu tiramos a cama, agora de pé, da janela, ela caiu no chão com um estrondo. Fomos até o parapeito e vimos ela deitada de costas, abraçada à sua câmera fotográfica e com um cigarro na boca, perguntando se alguém tinha fogo. Apesar de tudo, era um bom sinal. Nathaniel desceu para ir ajudá-la. Descemos todos, agora em direção ao porão, como bem lembrou Sofie, o senhor Corbitt havia dito que queria ser enterrado em seu porão e talvez isso tivesse sido concretizado.

Dessa vez Patrick foi na frente, ele estava com a lanterna em uma mão e a pistola em outra. Descia os degraus para o porão pé ante pé, fazendo as tábuas velhas rangerem. Se a casa era escura, o porão tinha ausência total de luz. A lanterna nos mostrou uma caixa de força sem os fusíveis logo ao fim da escada, o chão do porão e suas paredes eram cobertos por tábuas de madeira bem instaladas, incomum para um porão, normalmente com paredes sem acabamento e chão de alvenaria ou terra batida. Patrick mirou a lanterna vagarosamente em todos os lado, revelando em um canto uma pilha de coisas jogadas de qualquer jeito, havia caixas, tecidos mofados, uma bicicleta enferrujada. Do outro lado um pequeno móvel com as portas lacradas com ripas de madeira pregadas nelas. Fui com até esse móvel e tentei puxar a madeira que lacrava o pequeno armário, empreguei muita força e mesmo assim os pregos se moveram menos de um centímetro. Tentei derrubar o armário no chão, mas ele era muito pesado. De repente Sofie apareceu, como um vulto surgindo no meio da escuridão. Ela me ajudou com a tarefa e um estardalhaço quando conseguimos levar aquela peça ao chão, Nate veio até nós e abriu o fundo do móvel com a coronha do rifle. Ouvimos uma comoção vinda de onde estavam os demais, no viramos e vimos a lanterna iluminando uma faca parada no ar, como que por magia, Lucille no chão com a mão no ombro, onde ela sofrera um corte. A faca girava lentamente em direção à nós e em um ímpeto tentei tirar o pistola no coldre de Nate, mas me atrapalhei com isso e Patrick, rapidamente, disparou contra o objetos fazendo ele rodopiar no ar e então se virar em direção ao rapaz. Sofie, prontamente iniciou um cântico em uma língua estranha, mas muito melodiosa. A faca, então, tremeu e despencou no chão (difícil acreditar, mas isso é a mais pura verdade, eu sei o que eu vi e foi exatamente isso). Patrick pisou nela e Sofie foi até o rapaz e pegou o item sem parar com o cântico. Agora com mais calma, Nate e eu buscamos por algo útil no móvel que derrubei, lá encontramos uma série de ferramentas e um par de fusíveis, prontamente fui até a caixa de força e os instalei e Lucille mexeu nos interruptores, fazendo um luz bruxuleante preencher o porão. Nathaniel percebeu, agora com o ambiente iluminado, que uma parte da parede era ligeiramente diferente do restante, as tábuas pareciam diferentes de alguma forma que eu não compreendi no momento. Do armário ele tirou um pé-de-cabra e arrancou algumas tábuas e disse “É oco, existe uma espécie de quarto do outro lado.” No mesmo armário encontrei um martelo grande e começamos a desmontar a parede na base da força bruta. Quando fizemos um buraco do tamanho de uma cabeça, uma onda de ratos começou a sair do quarto oculto. Eles vinham em levas absurdas, se espremendo para sair, como se fugissem de um navio naufragando. O ruído que eles faziam me deu enjoo, peguei a pistola que ainda estava em minha posse e disparei dentro do buraco, mas isso não impediu que eles continuassem. Desesperado, fui até a pilha de coisas jogadas no canto e encontrei material para montar um coquetel molotov, sem pensar direito eu arremessei a bomba contra a parede, vendo as chamas criarem corpo e tomar toda a parede que estávamos derrubando, se eu não alertasse sobre minha ação, Nate teria sido atingido. Saindo daquele estado de torpor eu vislumbrei minha obra. Uma obra de terror, como se o próprio inferno saísse de dentro daquele quarto oculto. Ratos em chamas continuavam saindo mais e mais e Patrick e Nathaniel atiravam neles, enquanto Lucille estava em cima do móvel derrubado e Sofie em cima do primeiro degrau da escada. Eu tentei abrir um buraco no tanque de água que havia ali embaixo, mas notei que não teria pressão suficiente para acabar com o incêndio, mas Nate, mesmo assim o fez, rachou com o pé-de-cabra a base do tanque, fazendo a água escoar pelo chão, apagando o fogo dos ratos que não se deitam por nada. Vendo que a estrutura da parede estava mais fraca, decidi, mais uma vez por um ímpeto vindo sabe-se lá de onde, me jogar contra ela. Peguei velocidade e investi contra a parede, o que senti foi uma dor leve no meu ombro e o calor das chamas intensas. Senti a madeira ceder contra meu peso e senti ela se romper. Senti meu corpo sendo levado pela gravidade e ouvi o som de madeira quebrando. Rolei para dentro do quarto oculto, levantando poeira. Levei alguns segundos até me recompor e levantar, notei, ainda deitado, que os ratos já não estavam mais daquele lado, todos tinham fugido para fora daquele lugar que estava lacrado há anos.

Nunca vou esquecer o cheiro daquele lugar, era algo ácido e adocicado, mas putrefato. O ar entrava pesado nos meus pulmões e uma ânsia tomava conta do meu corpo, sinto leves calafrios apenas de relembrar o cheiro de morte guardada em um aposento lacrado. A luz do porão foi suficiente para iluminar aquele espaço assim que a poeira assentou. O que eu vi ali foi o corpo de um homem já ressequido, magro e pálido deitado em um bloco de pedra, no lugar dos olhos havia apenas o vazio das órbitas, os lábios eram repuxados para trás, revelando dentes horripilantes. Ele estava nu e usava uma corrente ao redor do pescoço, como uma espécie de colar macabro. Atrás desse bloco de pedra havia uma mesa com alguns livros e papéis espalhados. Aos poucos, meus companheiros apareceram enquanto eu analisava o corpo morto. Não havia marcas de agressão, talvez tivesse morrido de causas naturais, a única coisa estranha era o fato dele estar tão bem conservado. Mesmo que embalsamado, um corpo não teria aquela aparência após tantos anos. Fomos todos até a mesa e Sofie, ainda executando o cântico (ela não parou momento algum), mexeu nos papéis e os leu, achei incrível o nível de concentração dessa garota. Enquanto estávamos todos ali, observando os livros e papéis, ouvimos um resmungo atônito vindo de Patrick, quando nos viramos, vimos o corpo morto sentado no bloco, era como se ele olhasse para nós mesmo sem os olhos, Nathaniel engatilhou o rifle e disparou, mas o tiro foi suficiente apenas para abrir um buraco no peito já morto do homem, que continuou ali, nos observando com os braços estendidos para frente. Nesse momento um silêncio desconfortável tomou conta do quarto, era um silêncio o qual nunca ouvi antes em minha vida, era a total ausência de som. Meus olhos arregalados àquela figura morta-viva, minha mente se recusando a acreditar naquilo que meus olhos enxergavam. Não era possível, essa era a única coisa que eu conseguia pensar. Não era possível. Eu, de alguma forma estava completamente surdo, o que descobri depois se tratar de uma surdez psicossomática que desenvolvi naquele dia. Não me lembro com detalhes o que houve depois, lembro-me de ver Sofie olhando para as próprias mãos, agora vazias. Lembro-me de Patrick de joelhos com uma careta de dor e lembro-me de ver o homem morto tentar investir contra nós. Não sei de onde veio o impulso de me jogar contra ele, talvez essa seja a coragem dos covardes. Quando me dei conta eu estava pulando com os braços estendidos e de ter agarrado a corrente ao redor do pescoço do morto. Usei meu peso para prendê-lo contra o bloco de pedra e gritei para que cortassem a cabeça dele fora (grito esse o qual não ouvi nem mesmo dentro de minha cabeça. Silêncio total). Lucille surgiu por cima da criatura e enfiou a lâmina, antes nas costas de Patrick, no pescoço dela. Aos poucos senti a corrente puxando mais para baixo e vi que ela estava entrando no rasgo feito pela jornalista, mas também notei que o morto-vivo estava se desfazendo em um pó preto por onde a lâmina passava. Uma imagem veio em minha mente, o senhor Macarioem seu quarto assombroso no sanatório e uma frase “Pela sua própria arma o diabo é ferido”.

Lucille me ergueu e disse algo que não consegui ouvir, apenas vi seus lábios se mexendo, mas deixei que ela me levantasse. Lembrei-me do fogo, ainda havia isso para resolver. As chamas já tomavam conta de todas as paredes e avançavam para as escadas. Subimos rápido e, de volta ao corredor, entramos na porta na parede em frente a da cozinha. Atrás dela havia um cabideiro com casacos de chuva e algumas galochas no chão e sacos de carvão empilhados. Ao lado do cabideiro havia outra porta, essa trancada com três ferrolhos e duas fechaduras. Nathaniel estava em pânico e por isso se atrapalhou com as chaves, Lucille tomou dele e calmamente destrancou a porta. Ao abri-la, uma luz forte penetrou naquele pequeno espaço, nos cegando momentaneamente, veio junto com a luz uma baforada de ar fresco. Essa era a porta que vimos na lateral da casa. Saímos aos trambolhões e quando meu corpo sentiu o clima fresco, me soltei, apenas joguei-me na grama. Fiquei ali deitado por algum tempo, admirando o céu azul. Uma figura encobriu o céu, era Sofie, ela falava algo, mas eu ainda sofria da perda de audição, ela notou minha expressão de confusão e tentei lhe dizer algo, mas aparentemente não era compreensível. Me levantei e vi que ela apontava para o portão principal, já na rua Nate, Lucille e Patrick estavam entrando em um carro e partindo. Olhei para o meu carro estacionado e fui até ele. Sofie me seguiu, mas não dei muita atenção a isso. Estava aliviado por ter saído vivo daquela casa maldita. Quando dei a partida, notei, pelo retrovisor que Sofie estava sentada no banco de trás.

Dirigi até o centro de Boston e por vez ou outra olhava pelo retrovisor para ver Sofie, às vezes sua boca estava se mexendo, às vezes não. Quando estacionei, puxei meu bloco de anotações e um lápis e comecei a redigir um bilhete que eu entregaria ao senhor Knott, enquanto escrevia notei aos poucos que minha audição retornava, mesmo assim terminei de escrever. Quando saí do carro, Sofie veio junto e perguntou o que estávamos fazendo ali. Disse a ela que o senhor Knott merecia saber o que havia acontecido com sua casa e que, depois de tudo o que eu vi, esperava nunca mais ver nenhum deles outra vez (coisa que consegui cumprir até a data de hoje, nem senhor Knott, nem Lucille, Patrick, Nate ou Sofie). Sofie pareceu decepcionada e eu entendo a garota, acho que meu orgulho me impediu pedir ajuda a ela, para ela me ensinar sobre aquilo que sabe. Ela se despediu e partiu a pé. Eu subi até o escritório do senhor Knott e assim que sua secretária pousou os olhos em mim, me dei conta sobre minha aparência, estava sem o paletó, minha camisa estava preta por conta da fuligem e meu colete rasgado. Disse a ela que queria falar com Knott e ela prontamente o chamou. Ao me ver, ele teve a mesma reação de sua secretária, mas ele teceu um comentário sobre isso. “Meu Deus, Vincent, você está acabado!”. Nesse instante eu percebi que não queria conversar com aquele homem, apenas respondi “A sua casa também”. Coloquei o bilhete em cima da mesa e saí, ouvi o homem balbuciando qualquer coisa, mas não me dei ao trabalho de entender, pois não havia o que entender. Entrei em meu carro e dirigi para casa.

Esse conto foi criado a partir de uma partida de Call of Cthulhu que transformei em uma narrativa em forma de diário.

O doutor Vincent Cunningham foi criado e interpretado no jogo por mim. Ele é um alienista e por essa razão era uma pessoa cética até que presenciou fenômenos dos quais não conseguia explicar.

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