Debaixo da cama. Dentro do armário

Rene Spoladore
Escritas
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6 min readSep 14, 2019

Pai? — disse o garoto, enfiado debaixo das cobertas pronto para dormir, ao homem que encostava a porta repleta de desenhos feitos pelo filho, todos com linhas infantis e pinturas berrantes.

- Sim? — Respondeu o homem. Tinha o semblante cansado, mas a inocente imagem de seu filho o acalmava, mesmo depois de um dia estafante no escritório.

Ele andava vagarosamente em direção à cama do garoto. O quarto à meia luz dava um toque acolhedor de intimidade paterna. O pai ajoelhou-se ao lado de sua cria, que ele amava mais que tudo nesse mundo. O garotinho de cabelos escuros e lisos observou o homem ao seu lado trajando uma camisa com os dois primeiros botões abertos e uma gravata frouxa. Embora tivesse apenas seus cinco anos, percebeu o cansaço no olhar do pai, mas ainda assim havia carinho. O menino segurou, com uma de suas pequenas mãos, a ponta da gravata e inocentemente pediu:

- Não esquece de ver a cama… hmm… e… e o armário? — Seus olhos estavam semicerrados mas era possível sentir o medo do pequeno.

Sem titubear o pai deitou de lado no chão e pediu que o menino descesse da cama e verificasse junto com ele. O filho hesitou por um instante, mas depois de um minuto, o pai viu o pequeno pé do garoto marcar uma profunda pegada no macio tapete que ficava ao lado da cama. Com um aceno de mão do pai o garoto criou coragem e deitou o rosto nas fibras junto à cabeça do homem. Com uma pequena lanterna do Mickey Mouse ambos olharam os fiapos e brinquedos espalhados no chão de madeira. Havia vários Hot Wheels, blocos coloridos de Lego, alguns bonecos e três bolas espalhadas por toda a extensão da cama. O homem deitou-se de costas e soltou um longo suspiro. O garoto deitou em cima da barriga do pai e acomodou a cabeça em seu peito. Com um sorriso franco no rosto, ele disse ao pequenino:

- Viu só — sua voz transmitia toda a calma do mundo — não há com que se preocupar — o menino levantou o rosto olhando bem nos olhos do pai e lentamente levantou o braço em direção ao armário — Ah! É verdade — exclamou — Vamos ver o armário.

Ele sentou-se no chão e segurou o filho, levantou-o no colo e andou lentamente até o móvel alto de madeira clara. Uma das portas tinha uma fresta que mostrava sua escuridão interna. A cada passo sentia a cabeça do menino se pressionando mais e mais contra o seu peito. O peito que o protegia dos seus medos infantis. Quando chegaram em frente ao armário o homem sentiu o corpo do garoto relaxar. Achou que aquilo fosse bom. Apoiou o traseiro do menino no antebraço esquerdo enquanto, com a mão direita, abria lentamente a porta, deixando a parca luz do abajur penetrar naquela escuridão. As sombras dos dois se projetou no interior do guarda-roupas, enquanto as pequenas jaquetas e calças penduradas nos cabides se expunham à luz alaranjada. O pai reforçou:

- Como eu disse, não há nada o que temer — Ele sorriu para o filho e o repousou na cama cobrindo-o. Beijou a testa do menino — Vou deixar a porta aberta, se sentir medo, estarei no quarto, tá bom?

O garoto sorriu e fechou os olhos.

O homem sentiu-se bem com tudo o que fez para o bem estar do filho. Dirigiu-se até seu quarto, na cama, sua mulher dormia profundamente iluminada pela luz da televisão que exibia um filme de terror. Se curvou perto da esposa e repetiu a mesma cena, à cobriu e beijou-a, mas nos lábios. Quando se ergueu viu algo que o fez pular. Seu filho estava lá, sentado na cama com o rosto pálido e sério.

- Papai, estou com medo.

Os olhos do homem estavam arregalados e fitavam o garoto. Devo estar mais cansado do que imagino, pensou, nem o ouvi entrar.

- Filho… — respirou, ainda um pouco assustado — Fique um pouco aqui com sua mãe e tente dormir, eu vou tomar banho e já volto — confuso, ele andou até o banheiro e deixou a porta aberta. Enquanto se despia, seu coração voltava ao normal. Ficou mais calmo depois de entrar debaixo da água morna. Durante o banho ele ria de si mesmo pensando no escritório e em como tivera um dia cheio.

Quando voltou ao quarto, nem o menino nem sua esposa estavam lá. Ele sorriu e pensou Ela deve tê-lo convencido à dormir na própria cama. Sentou-se, apoiando as costas na cabeceira de mogno trabalhado e esperou que ela voltasse para enfim dormir. Havia passado quase quarenta minutos e ele cochilara naquela posição desconfortável, acordou com o solavanco que seu corpo deu para frente. Olhou em volta e ela ainda não havia voltado. O homem se levantou e foi até o quarto do garoto.

A porta estava escancarada e a luz alaranjada vazava para o corredor. Do quarto não se ouvia nada. Devagar ele se aproximou do batente e observou o interior do quarto que parecia em chamas. Na cama só havia os cobertores do filho. Na cozinha, talvez. Quando virou as costas ouviu a voz do garoto.

- Debaixo da cama, dentro do armário.

Ele sentiu as espinha gelar e um arrepio subiu por ela ouriçando os pelos da nuca. Ele deu meia volta e não viu o menino.

- Onde você está, filho?

Silêncio.

Andou até o pé da cama e, como em um déjà vu, ajoelhou-se e observou debaixo da cama. Dessa vez ele não viu apenas os Legos, Hot Whells e bolas. O que ele viu o fez bater a cabeça na base da cama. Sua esposa estava deitada e as órbitas dos olhos vazias. O homem, ainda ajoelhado, colocou ambas às mãos no topo da cabeça enquanto sua visão desembaralhava. A pancada fora forte o suficiente para fazer a cama se mover alguns poucos centímetros. Com a cabeça pulsando olhou para o armário. Foi até ele cambaleante. Quando parou em frente ao móvel, outro déjà vu, apoiou as mãos na porta lisa e se endireitou. Sua visão pulava à cada pulsação. Quando colocou a mão no puxador de metal gelado, ouviu a voz do filho de novo.

- Dentro armário.

Sentiu um gosto metálico na boca e achou que fosse vomitar. A cabeça doía muito, o cérebro parecia que iria inchar até sair por todos os seus orifícios do crânio.

Pousou a mão novamente no puxador, vagarosamente abriu a porta. A media em que a porta era aberta, ele sentiu um peso vindo do interior ajudando no movimento. O corpo de sua esposa. Ele gritou desesperado e caiu de costas no chão, havia sangue, muito sangue. Isso é impossível, pensou, ela está embaixo da cama. Um corte na base do abdômen da mulher fazia suas tripas e sangue jorrarem em uma cascata tenebrosa, tingindo de rubro o pijama do marido apavorado. Quando olhou para cima, viu que em pé, próximo à sua cabeça, estava o menino um pouco curvado olhando firmemente dentro de seus olhos. A voz do filho não era mais infantil e muito menos inocente.

- Pai! — gritou como se estivesse possuído — Você não me protegeu do monstro mau!

O menino segurou as bochechas do pai, fazendo-o abrir a boca e aos pouco introduziu a pequena mão dentro dela, depois o braço até que fez o homem engolir toda aquela criatura estranha que tomara a forma de seu filho.

- Você viverá com os meus medos para sempre — a respiração do garoto era alta e asmática. Quando terminou o discurso, fez com que o pai o absorvesse por completo. Em sua cabeça não conseguia para de ouvir os gritos da esposa e o pranto do filho. Abraçou o corpo dilacerado da mulher por alguns segundos enquanto lágrimas vertiam de seus olhos. Os sons mentais ficaram mais altos e agudos, ele soltou o corpo inerte e apertou as têmporas com as mãos, na esperança que aquilo ajudasse um pouco. Não ajudou. Ainda segurando a cabeça, começou a batê-la no assoalho, o grito da esposa cessou, mas a voz do filho continuava. Pai… Pai… Pai…

- Pai, acorda pai — O homem se agitou e sentiu um peso em cima do peito. Ofegante ele analisou o ambiente. Estava no quarto do filho, o garoto estava deitado em cima dele — Pai, você ainda não viu o armário.

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