Disparos no corredor
Os três homens voltaram ao corredor, estava escuro novamente. Um clarão repentino iluminou as paredes estreitas por alguns segundos, projetando sombras aterrorizantes em sua superfície. Vincent apertou o revólver com mais força em seu punho enquanto Harry atirava a luz do lampião em direção a porta da sala principal. Ali na frente, embaixo do umbral, então, surgiu mais uma vez a forma bioluminescente. A luz fez o corredor parecer ter seu próprio sol, tornando a noite em dia. A forma era amorfa, mudava sua silhueta de modo fluído como ondas de um líquido espesso.
Larry ficou pasmo com o que via, ele apontava com o dedo como uma criança impressionada, balbuciava alguma coisa inteligível enquanto sacudia o ombro de Vincent. O repórter tinha convicção de que agora o alienista não poderia negar aquela aparição.
- Está vendo? Está vendo? — finalmente conseguiu dizer antes de ficar catatônico mais uma vez, com os olhos arregalados e a boca aberta em uma expressão de incredulidade.
Em um movimento desesperado Vincent Cunningham apontou o revólver e atirou uma única vez. O estampido alto deixou os três homens um pouco atordoados e o projétil acertou o teto não muito longe da forma iluminada que foi desaparecendo lentamente, tornando-se translúcida até sumir completamente como se nunca estivesse estado ali, exceto pela gosma que ficou no chão, bem no ponto onde a forma estava.
Os olhos demoraram a se acostumar com o breu. Vincent esfregava-os com força, conseguindo apenas distinguir a respiração rápida e pesada dos dois homens. Aos poucos ele viu a silhueta do repórter, de cócoras e com as mãos nos ouvidos, ele chorava e repetia apenas uma palavra em um sussurro como que para ninguém.
- Barulho, barulho, barulho…
Ao se virar ele pôde ver o cientista na mesma posição, mas ele parecia mais lúcido, embora bastante perturbado também. Ele balançava a cabeça até que olhou para o próprio pulso, o tic tac do relógio parecia enlouquecedor. Harry King arrancou o relógio de seu pulso e o jogou no chão, próximo aos pés de Vincent.
- Faz o relógio parar! — sua voz tinha um som gutural, quase que demoniaco.
O alienista olhou para o objeto no chão e pisou no visor de vidro, estilhaçando-o. Os ponteiros tortos e o vidro quebrado finalmente ficaram em silêncio. Aos poucos o cientista foi se recuperando, levantou-se lentamente, apoiando-se nas paredes. Ele tomou ar, inspirou profundamente e então esvaziou os pulmões em uma demonstração de alívio.
Mas ainda havia Larry. O repórter ainda repetia aquela palavra, apertando as mãos nas orelhas. Vincent foi até o banheiro no fim do corredor e abriu o pequeno gabinete próximo a pia, mas não havia nada que ele pudesse usar para tampar os ouvidos do homem atormentado. Harry iluminava o caminho até Vincent e ele notou uma expressão soturna no rosto do médico. Cunningham sacou os dois revólveres e encarou as peças como se fossem monstruosidades. Ele andou pesado, mas rápido até Larry e se ajoelhou ao lado dele. King não se moveu, apenas ficou ali observando.
Vincent conseguiu ver o rosto de pânico do homem. Era uma manifestação pura de medo, em seu modo mais primal. Era um medo mortal. Os olhos injetados penetraram sua mente e ele apenas disse:
- Faz o barulho parar.
Vincent afastou as mão dele e estendeu os dois revólveres quase que tocando as orelhas. Os canos apontando para a porta do banheiro traziam uma imagem que atormentaria o médico pelo resto de sua vida. Ele engoliu seco e focou os olhos no rosto de Larry. Ele puxou os dois cães ao mesmo tempo, eles pareciam pesados. Os indicadores, então, pressionaram o gatilho muito lentamente, Vincent podia jurar que ouviu um ranger metálico enquanto fazia aquilo. Fechou os olhos puxou uma grande golfada de ar para os pulmões e soltou de uma vez e então um estampido muito maior que o anterior. Dois tiros dados simultâneos como se fossem apenas um. O clarão alaranjado. O rugido das armas. Os projéteis atingindo a madeira. Estava feito. Ele largou as armas no chão em total descrença no que tinha feito.
Larry demorou alguns segundos para entender o que havia acontecido. Ele tocou os orifícios das orelhas enquanto sentia algo quente escorrendo de dentro delas. Olhou para a ponta dos dedos e viu o sangue. Pequenas gotas escarlate gotejavam de seus lóbulos, como pingentes, então o repórter percebeu o silêncio, mas não era qualquer silêncio. Era a total ausência de som que não fosse o zumbido agudo causado pelo disparo.
Mais alto que o som dos tiros foi o grito de dor de Larry. Um grito vindo da alma, um grito rouco que parecia arranhar toda a garganta do homem. Vincent colocou a mão em sua boca, e ainda assim conseguia sentir a vibração. Larry o empurrou e o alienista se ergueu e apenas ficou parado observando o homem. O repórter olhou para o chão e apanhou um dos revólveres, fez mira e disparou sem nem ao menos pensar no que estava fazendo. O tiro não acertou Vincent e Larry começou a rir como um maníaco. Ele não havia ouvido o estouro da arma e agora não ouvia a própria risada.
Vincent se virou e esperou pelo julgamento do cientista, mas Harry não disse uma única palavra por segundos. Apenas ficaram se encarando. A risada de Larry dava um ar sinistro à situação.
- Vamos continuar investigando a casa — disse Harry apontando para a porta fechada.
Esse é um trecho de uma partida de Call of Cthulhu que transformei em uma narrativa.