Filhos de pano

Rene Spoladore
Escritas
Published in
8 min readSep 14, 2019

Meu nome é Marco, eu moro em um pequeno prédio no centro. Tudo ao meu redor é gerado pelo caos da cidade. Eu não tenho uma vida interessante, mas isso não é relevante, pois o que contarei à vocês não é sobre mim ou sobre a cidade, talvez um pouco, enfim, vou lhes contar a história de uma mulher, Catharina.

Ela mudou-se para cá há uns sete ou oito anos, não me lembro exatamente agora. Sua chegada foi algo normal. Um caminhão com diversas caixas que seguia o carro dela e do marido (não me lembro o nome dele). Lembro-me de ter saído e quando voltei, o caminhão estava parado no estacionamento do prédio e no chão, os funcionários da transportadora pousavam as caixas cuidadosamente. Como um bom vizinho (literalmente vizinho, pois ela morava na porta ao lado da minha) me apresentei e dei-lhes as boas vindas. O homem (droga, qual o nome dele?), apertou minha mão e eu me ofereci para ajudá-los a subir algumas caixas. Todo o processo de sobe e desce foi até que rápido, não deve ter levado mais que uma hora.

Até aí, nada de mais, um casal normal que se mudou para uma nova casa.

Algum tempo depois, quando já podia dizer que eramos amigos, o casal e eu, Catharina me contou que eles estavam tentando ter um filho, e que por isso havia se mudado para um apartamento maior e que na manhã daquele dia ela iria ao hospital para fazer o primeiro ultrassom e fazer o acompanhamento para os primeiros dias de gravidez. Fiquei feliz por ela, na minha opinião, uma criança só traz mais alegria à um casal.

Acho que ela estava no quarto mês de gravidez, quando a vi indo ao médico para as consultas periódicas, como sempre, ela estava radiante e feliz e seu marido não parava de sorrir. Era uma bela cena, o casal feliz. Eles não voltaram para casa nesse dia, ou pelo menos, eu não notei a volta deles. Três dias depois, através das finas parede eu ouvi um choro que anunciava a perda da criança. Catharina e seu marido estavam aos prantos pela vida que nem ao menos chegou a se iniciar e já se perdera. Mentalmente, mandei minhas condolências aos dois, assim como eles, senti algo apertando meu peito, lógico que não era uma dor tão intensa quanto à do casal, mas ainda assim me senti mal. No apartamento ao lado, um quarto ficaria vazio, mas será que ficaria assim por muito tempo, me perguntei.

Alguns meses depois uma nova gravidez surgiu e trouxe de volta a esperança aos amantes. Novamente as mesmas cenas se repetiram, como em um deja vu. Um casal feliz e com o amor renovado indo ao médico e a barriga de Catharina crescendo cada semana mais. Um novo sorriso se abria em meu rosto sempre os via passando pelo corredor do prédio.

Nunca vou me esquecer daquele dia. Uma chuva pesada caia como um presságio. Quando ouvi os passos pelo corredor, senti um peso no peito que só se agravou ao ouvir o choro do casal. Assim como da primeira vez, ela perdeu o bebê, mas agora ela quase entrara no oitavo mês de gravidez o que deve ter sido ainda mais terrível, pois a criança estava quase nascendo.

Pobre casal, ao invés de alegria, eles acumulavam apenas as tristezas da perda de um filho que eles nem ao menos tiveram a chance de conhecer. Infelizmente, para eles, ser agraciado com um bebê se transformou em um pesadelo. Eles tentaram mais três vezes. Em nenhuma tiveram sucesso. O choro de Catharina era um tormento, seus suspiros eram como facadas no coração. Nas duas últimas perdas, me juntei à ela num pranto interminável. Chorei em silêncio junto à ela, embora ela não soubesse dessa partilha.

Há quatro anos, o marido dela… O marido… Fabio! Acho que era isso. Ele parecia uma pessoa normal, sentindo as mesmas alegrias a cada anúncio de que o feto fora concebido e chorando as perdas. Acho que depois de tantas mortes, ele pirou de vez. Eu andava pela calçada, na volta do trabalho, na esquina à frente eu vi Catharina virando uma esquina e então à chamei. No caminho até o prédio ela me contou como os dias estavam dificieis e como Fabio estava agindo de forma estranha. Fazendo o papel de bom vizinho disse que tudo ia melhorar e que eles não podiam desistir. Quando nos aproximamos do conjunto de apartamentos, vimos luzes vermelhas que brilhavam frenéticamente, era uma ambulância. Como dois bons seres humanos, ficamos curiosos e apertamos o passo até chegarmos ao veículo. Lá, três paramédicos acomodavam uma maca com um corpo para dentro da ambulancia. Catharina tomou a dianteira e perguntou à um dos paramédicos quem era a pessoa de rosto coberto. O zelador nos chamou, começou o homem, ele disse que o vizinho de baixo ouviu um barulho alto como se algo tivesse caído no chão e ficou preocupado com o morador. Eu o interrompi perguntando em que apartamento esse morador fora encontrado e a resposta petrificou Catahrina. No quinhentos e dois, respondeu prontamente. Catharina não disse mais nada e subiu calmamente para sua casa, o apartamento número quinhentos e dois. Os paramédicos devem ter entendido o que aconteceu, mas não se pronunciaram.

Subi correndo para acolher a pobre viúva. Enquanto martelava os degraus com meus sapatos, pensei no que ela havia me dito no caminho para casa “Ele tem agido estranho”. Como eu havia deduzido, a perda de tantos futuros filhos o enlouqueceu e fez com que ele se matasse.

Chegando à porta quinhentos e dois me deparei com Catharina de joelhos com um bilhete nas mãos. Fabio, ao menos, deixara uma justificativa. A mulher chorava e suas lágrimas caiam em cima das últimas palavras do marido.

Querida Catharina,

Não posso viver desse jeito, sabendo que eu sou o culpado de todo esse pesadelo. Sei que você estava feliz para a chegada do nosso filho, mas (havia algumas palavras rabiscadas).

Não tenho coragem de dizer isso olhando nos seus olhos, mas a culpa é minha. Eu sou um assassino e só te trouxe infelicidade desde que nos mudamos para cá.

Fabio.

Ela me contou, aos prantos, que o marido lhe dava os remédios indicados pelo médico que acompanhava sua gravidez e talvez no meio deles, o marido adicionava alguma coisa que era ruim para a criança.

Essa foi a última conversa que tive com ela. Depois disso, ela se trancou no apartamento e sua irmã leva comida para a coitada. Bom, esse é apenas um prólogo para entender a mente perturbada de Catharina.

A partir de agora, o que vou lhes contar são coisas que a irmã dela me disse. Como fiquei preocupado com a situação psicologica dela, busquei em seu apartamento o contato de alguem que pudesse ampará-la. Na geladeira, preso com um imã, estava o número de sua irmã, Amanda, e então à chamei aqui. Sempre que faz suas visitas, Amanda bate em minha porta antes de ir embora e me conta algumas coisas, mesmo que eu não seja nenhum tipo de psicologo, acho que Amanda quer apenas desabafar com alguem.

Depois de algumas semanas com visitas regulares, Amanda levou um presente para distrair a irmã. Uma antiga boneca de pano. A boneca era de Catharina e quando menina brincava que ela era sua filha, isso foi o suficiente para que sua loucura aumentasse. A viúva começou a costurar bonecos para suprir a ausência de tantos filhos perdidos. O tecido e espuma foram retirados de moveis do seu apartamento. Ela havia destruído tudo, sofá, cortinas, colchões e lençóis, as roupas das bonecas eram feitas com todo o enxoval da criança que nunca existiu.

Amanda já havia tentado de tudo para tirá-la do apartamento, mas a irmã não deixava. Houve vezes em que acordei de madrugada com os gritos insanos de Catharina, ela implorava para que não levasse seus filhos embora. Certa vez, Amanda veio à mim e em seu ombro havia um pouco de sangue. Catharina se tornara violenta e superprotetora e a atacou com uma das agulhas que usava para confeccionar suas crianças. Seus ataques aconteciam cada vez com mais frequencia até o dia em que Amanda nunca mais bateu em minha porta. Acredito que Catharina deva te-la matado, pois ela nunca mais atendeu uma ligação minha, duvido muito que ela tivesse abandonado a irmã dessa forma. Não uma pessoa como Amanda. Pobre Amanda, que fez de tudo para ajudar a irmã e acabou presa naquela loucura de pano e espuma.

Pelo que vocês podem perceber, essa história não tem um final feliz, nem mesmo um final conclusivo. Vou contar o que eu vi e o que eu penso que a levou fazer o que fez.

Há duas semanas atrás, um sentimento ruim martelava minha cabeça e eu decidi entrar no apartamento de Catharina. Havia dias que eu não ouvia nada vindo do lado de lá. Abri a porta e estiquei o pescoço para o corredor, olhando para os dois lados para ter certeza de que ninguem me veria arrombando a porta da minha vizinha. Respirei fundo e saí de casa, fiquei parado por uns cinco segundos na frente da porta quinhentos e dois. O ar ao redor tinha um cheiro putrefato que invadia minhas narinas, mas nada que não pudesse suportar. Primeiro bati delicadamente para o som não ecoar com tanta intensidade pelo corredor, depois bati um pouco mais forte. Nenhum ruido veio de dentro. Toquei a campainha. Nenhum ruido veio de dentro. Girei a maçaneta, incredulo de que isso fosse funcionar e, bom, não funcionou, óbvio. Olhei para o corredor vazio mais uma vez e então me atirei contra a porta. Na terceira pancada, ela cedeu.

Ao ver o interior do lugar fiquei paralisado, meus olhos se arregalaram com a visão aterrorizante. No chão da sala havia, pelo menos, umas sessenta bonecas de pano. Para aumentar meu terror, próximo à porta da cozinha, estava o corpo de Amanda em um tom pálido um pouco azulado ou acinzentado e seu pescoço estava ornado com doze agulhas de costura que foram enfiadas com violência e embaixo dela uma poça de sangue ressecado. Quanto mais eu penetrava nesse pesadelo, mais acre o cheiro ficava, me dando náuseas e levando meu almoço para perto da garganta e eu o mandava de volta ao estômago. Encontrei Catharina no quarto ao lado de uma única boneca. A mesma boneca que Amanda dissera ter trazido para a irmã. Catharina estava deitada com a barriga para cima, na sua traqueia havia uma faca grande enfiada até quase o cabo pescoço a dentro e apoiada em seus seios estava a boneca com sangue no rosto e a mão apoiada no cabo de madeira da faca.

Não enlouqueci com a cena de morte, mas foi perturbador de qualquer forma. Agora, o que eu acho que aconteceu na confusa mente de Catharina? Não faço ideia e, na verdade, tento não pensar muito nisso embora ainda sonhe com a cena de violência.

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