O carona

Rene Spoladore
Escritas
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8 min readSep 14, 2019

A escuridão é algo que assusta o ser humano. Na minha modesta opinião, isto acontece pelo fato dela conter o desconhecido. Sentimos medo da escuridão, mesmo estando em nossa cama, num ambiente extremamente familiar. As trevas nos consomem nos fazendo sentir como se estivéssemos em outro planeta…

Numa de minhas viagens corriqueiras eu senti esse medo.

A noite estava densa. Tão escura e nublada que mal se via as estrelas. A lua era algo minimamente nítido, uma parca luz escapava da assombrosa cortina que as nuvens criavam. A estrada estava deserta e, além da lua — que quase não conseguia perceber — os faróis do meu carro, um Honda velho prateado, iluminavam a autoestrada; dois focos de luz tão fortes, mas ao mesmo tempo, tão limitados. Dois fachos de luz que alguns metros à frente do carro se uniam num formato que me fez lembrar um traseiro. Logo dispersei esse pensamento quando fui consumido por um breve lampejo de sono. Veio um grande bocejo.

– Meu Deus, que sono!

Estava acordado há quase um dia inteiro, precisava chegar a algum hotel. Para isto, talvez precisasse dirigir por mais algumas horas. Depois viria a recompensa, o grande prêmio: uma bela noite de sono! Já havia planejado tudo. Chegaria a um hotel de beira de estrada, jogaria minha mala num canto qualquer, tiraria os sapatos e me deitaria. Antes desligaria o despertador do meu celular. Como odiava aquela coisa, sempre me interrompendo! Não! Não queria acordar antes do meio-dia!

Um piscar de olhos lentos. Os pneus do carro trepidaram nos pequenos, como se chamam mesmo? “Olho-de-gato”! Enfim, aquilo me despertou um pouco. PLAFT! Apliquei a mim mesmo um sonoro tapa na bochecha direita, senti-a latejar. Uau, não sabia que tinha tanta força nesse estado zumbificado. Imaginei que meu rosto tinha ficado vermelho e com as marcas dos meus dedos bem desenhadas. Tentei ver isso pelo retrovisor, acendi a luz acima da minha cabeça, estiquei o meu pescoço um pouco, mas não consegui enxergar direito. Desisti e sentei-me corretamente. A estrada era entediante, nada se via senão uma infinita reta e a bunda luminosa na minha frente. Assim que apaguei a luz interna do carro percebi pelo retrovisor que um ponto amarelado vinha rápido em minha direção. Fiquei um pouco desesperado, não conseguia pensar no que seria. O sono estava eliminando até minhas respostas mais óbvias. Quando aquele ponto amarelado se aproximou percebi que era uma luz que invadia o vidro traseiro do meu possante, projetando a sombra do banco e do topo da minha cabeça no painel. Era uma moto que passou zunindo pelo meu lado direito. Só pude perceber um borrão. Fiquei mais calmo e continuei meu trajeto.

Já não aguentava mais o tédio de não fazer nada além de manter o carro em frente, reto. O rádio não funcionava, não havia sintonia na região. No início estranhei, mas não dei muita importância até que o silêncio ficou insuportável. Dei mais uma cochilada. Dessa vez balancei a cabeça com violência para ver se ficava acordado, ela começou a latejar levemente. Avistei mais um ponto amarelo, bem à frente do meu carro que se movia de maneira estranha, desenhando arcos na escuridão. Meus faróis iluminaram a fonte desse foco de luz: era um homem com uma lanterna. Não havia nenhum carro ou moto. O que fazer? Qualquer pessoa em sã consciência passaria pelo desconhecido com um belo aceno de mão e seguiria seu destino. Afinal de contas, não é aconselhável confiar em pessoas sozinhas numa autoestrada, ainda mais tão tarde da noite! E que noite! Mas, como eu disse antes, o sono me libertava das escolhas óbvias e me mostrava outras possibilidades. Então decidi parar o carro no acostamento, descer e, iluminado apenas pelos faróis que eu havia deixado ligado, me aproximar do sujeito.

Lá estava eu, fora do carro. Perguntei àquele homem, que era muito estranho por sinal, se ele queria uma carona. Não houve resposta. Ao invés disso ele me fitou longamente com aqueles olhos desesperados, vidrados. Aquele olhar por mais estranho que fosse não me assustou, porém me senti desconfortável. Era um homem de altura mediana, com a pele um pouco suja e suada, estava despenteado e embrulhado em um casaco de inverno tão espesso que não pude identificar se ele era gordo ou magro, quem sabe estivesse um pouco acima do peso. Talvez, pensei, ele escondesse no interior daquele casaco algumas facas e outras armas letais, caso fosse um assassino a procura de sua próxima vítima. Podia apostar todas as minhas fichas que essa próxima vítima seria eu.

Ele deu um passo. Fiquei petrificado.

– É agora que vou dormir e para sempre. — pensei alto — Ah, como eu queria uma cama de qualquer hotel velho!

Ele desligou a lanterna. Clique. Deu mais um passo. Guardou-a no bolso de trás do seu jeans velho e desbotado. Um terceiro passo.

– Quem me dera ter uma lanterna! — meus pensamentos fluíam. Com certeza a usaria como arma, nem sei de que maneira! Mas eu a usaria! Oh, meu Deus, me imaginei com um sabre de luz! Minha mente estava confusa e sonolenta.

O homem esticou o braço esquerdo na minha direção. Sua mão estava levemente suja. Minha voz não conseguia ser projetada, emiti apenas um grunhido estranho na forma de resmungo. Se eu não estivesse paralisado de medo já teria corrido histérico para dentro do carro.

– Ei — era uma voz suave e macia que me libertou do desesperador transe — amigo!

– Oi. — respondi. Quase não acreditei que conseguia falar — Está com problemas? Não vejo um carro ou uma moto. O que aconteceu?

O homem parou a dois passos de mim, pude sentir um cheiro de madeira e terra. Provavelmente teria vindo da floresta que beirava a autoestrada. Ele estava ofegante. Começou a falar.

– Estou perdido. Pode me dar uma carona até um hotel próximo? Estou cansado, nem sei como ainda estou de pé.

Concordei, acenando com a cabeça e o acompanhei até a porta do passageiro.

– Estou indo para um hotel também, preciso de uma cama tanto quanto você!

Que diabos eu estava fazendo? Socializando com um possível esquartejador ou sei lá o que? O desconhecido entrou no carro e se acomodou. Fechei a porta e assim que ele teve certeza de que estava fechada recostou sua cabeça contra o vidro da janela. Pobre homem! Tinha uma expressão tristonha, parecia ser alguém que não encontrava nenhum motivo para continuar vivo. Dei a volta pela frente do meu carro e percebi que o andarilho me encarou até eu entrar e sentar. Depois voltou a encostar sua cabeça no vidro. Permanecemos em silêncio por alguns bons minutos enquanto eu dirigia. O sono estava aparecendo novamente. Pesado e lento. Enfim, o silêncio foi quebrado. O homem voltou a falar.

– Obrigado. Obrigado mesmo. — sua voz era melancólica — Imagino que esteja pensando o que aconteceu comigo, mas eu não sei. Lembro-me das árvores e de uma trilha de terra, o som dos meus pés nas folhas secas, o farfalhar delas, e uma coruja. Sim, havia uma coruja dando seu aviso noturno. Não sei se foi real. Vou dormir um pouco — mais uma vez recostou a cabeça no vidro e deu um longo suspiro.

Seu corpo se movia de maneira constante e lenta, era quase hipnótico o levantar e abaixar do seu dorso. Distrai-me com aquilo por alguns segundos, o suficiente para quase sair com o carro da pista. Refleti sobre todos os eventos estranhos que estavam acontecendo. Por que comigo? Ainda

mais quando estou tão cansado e sonolento. O hotel parecia cada vez mais distante a cada quilômetro que eu rodava com meu novo companheiro. Mais uma aparição de luz. Dessa vez eu achei ter chegado ao meu destino. Era uma luz branca, forte que me cegou por alguns segundos. Mantive o carro em linha reta, o que mais poderia fazer? Tentei enxergar o carona com os olhos semi cerrados e por incrível que parecesse ele ainda estava dormindo. Por alguma razão, senti como se fosse bater em algo. Freei, quase fiz com que o pedal varasse o piso do automóvel. A luz sumiu, minha visão estava borrada. Notei alguns vultos, não eram pessoas, pelo menos nunca vi pessoas com sete metros de altura! Senti certa estranheza, algo estava muito errado. Senti frio, muito frio. Abracei-me, segurando meu braço esquerdo com a mão direita e vice-versa. Percebi que estava sem minha jaqueta jeans. Algo realmente estava errado! Eu estava em pé.

– Eu morri, com certeza!

Percebi então onde eu realmente estava. Não era o céu nem o inferno. O limbo talvez? Não, ainda estava vivo! Mas como eu fui parar naquela floresta? Senti minha mão direita pressionando algo, era uma lanterna. Eu a liguei e iluminei ao redor. Atrás de mim havia uma velha cabana caindo aos pedaços. Das janelas avistava-se apenas um breu. Não parecia ser visitada há muitos anos. Na frente via-se uma trilha, com folhas secas pelo chão. Caminhei até a cabana e, vagarosamente, abri a porta. Andei pela escuridão tateando o ar e notei uma pequena fonte de luz que piscava mais a frente. Segui em sua direção. O ambiente foi ganhando forma. Para minha surpresa, estava fora da cabana, na estrada, perto da floresta.

– Mas… como é possível?

Meu pensamento foi interrompido quando avistei meu carro no acostamento, preso numa vala. Corri. Isso era um sonho? Não sabia mais. Preso entre as ferragens e uma árvore encontrava-se o carona. Ele ainda respirava, mas não iria resistir. Estava deitado no capô segurando uma chave com uma das mãos. Com o próprio sangue ele escreveu apenas uma palavra na lataria do carro. Apenas uma. CABANA. Tirei a chave de sua mão e a coloquei em meu bolso. Não sabia qual caminho tomar para retornar à pequena casa de madeira. Olhei para o corpo, agora morto, e notei que a outra mão apontava para a floresta. Segui na direção que seu dedo sem vida apontava. Caminhei por entre as árvores esbarrando em galhos que me causaram alguns dolorosos cortes nos braços. Segui por ela. Lá estava a cabana, aterrorizante e escura. Minha mão congelou na maçaneta. Girei-a. A porta se abriu. Inúmeras velas se acenderam e iluminaram o carona, sentado em numa velha e empoeirada cadeira. O homem tinha todos os hematomas do acidente. Tanto o rosto quanto as roupas estavam cobertos de sangue.

– Você me matou! — sua voz era calma — mas eu não fui o único de quem você tirou a vida — com um movimento lento ele levantou o braço e apontou para uma porta de metal enferrujada — Sua saída.

– O que há atrás daquela porta? — minha voz exalava o medo que estava sentindo.

O carona não respondeu, apenas assentiu com a cabeça e seu corpo desabou da cadeira. Finalmente descansaria em paz. Com as mãos trêmulas, apanhei a chave do meu bolso. Meu coração batia acelerado. Coloquei a chave na maçaneta e a girei. Um enorme CLACK ecoou pelas velhas paredes da cabana. Atrás da porta havia somente as trevas. Fechei os olhos e entrei. Uma dor tomou conta do meu corpo, a dor era intensa. Abri os olhos e lá estávamos: o carona preso entre o Honda e eu deitado em cima do capô. Senti o medo se esvair, vi tudo se descortinando na minha frente. O carona abanava a lanterna, eu pensei em parar e ajudá-lo. Aí o sono veio como um monstro devorando tudo a sua volta. Em questão de segundos eu adormeci, o pé pesou no acelerador e bati numa árvore. Meu corpo foi arremessado pelo para-brisa e o carona foi atingido em cheio. Segurei a mão do carona. Ele sorriu e enquanto fechava os olhos lentamente eu disse:

– Me desculpe! Eu estava com sono — minha voz era fraca e quase inaudível.

A estrada, a floresta, o carona, o carro. Tudo foi escurecendo aos poucos. Enfim… Iria dormir.

Conto publicado no livro ATRÁS DAQUELA PORTA — ANTOLOGIA DE CONTOS (2013)

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