O fim

Rene Spoladore
Escritas
Published in
3 min readSep 14, 2019

Eu corro e levo comigo uma mulher. Seguro seu braço magro e de pele branca. Olho para trás e vejo seu rosto oculto por uma sombra. Seus cabelos são bem longos e marcam uma trilha ondulada atrás de nós. O movimento leve e rítmico de cada fio negro da cabeça dela me hipnotiza e me faz querer correr ainda mais. Do que fugimos? Não sei, acho que me esqueci. Talvez não estejamos fugindo e sim indo a algum lugar. Será?

Estamos em um deserto de areia branca, ao luar noturno ela é tingida de um azul profundamente escuro. Não vejo dunas ou vegetação. Tudo é plano, o deserto parece infinito. Olho para cima e vejo apenas a lua, nada de estrelas. Lá no horizonte, o céu escuro da noite engole as areias, estão se fundindo em um único elemento. Quero chegar lá, sei que tenho que ir, sinto isso.

Olho meus pés, eles parecem flutuar, mas percebo a areia sendo compactada à forma curva e criando pequenas pegadas. Olho meu braço e o sigo, vejo a mão da mulher aberta após o meu punho que se fecha no seu antebraço. Ela não se incomoda, apenas corre. Tento ver o rosto dela mais uma vez, nada, apenas sombra. Continuo em frente. Não estou cansado, a respiração é regular e a minha tez está seca, não há uma gota de suor. Não posso dizer o mesmo sobre ela. A mulher de mantos negros esvoaçantes não emite nenhum som, apenas seus passos, assim como os meus.

Eu paro. Não sei porque, assim como sei que devo ir em frente, sei que agora devo parar. Há uma placa de madeira velha e metal enferrujado, nela uma inscrição. Não compreendo. Nunca vi esses símbolos, nem ao menos sei como descreve-los. No alto da placa há um corvo tão negro que mal o enxergo. Ele é uma sombra do que a noite esconde. Sinto doer meu peito quando o olho diretamente. O pássaro crocita apenas uma vez e alça voo. Sua plumagem se mistura ao negrume noturno. Ele some.

A mulher aponta para frente. Sua mão fria segura a minha e entrelaçamos os dedos como um casal de namorados. Eu sinto o frio sendo transferido para o meu corpo inteiro. Sinto um arrepio e estremeço. Não corremos agora, apenas andamos em silêncio. Ouço o assobio do vento crescendo a medida que chegamos a… Não sei aonde, apenas seguimos em frente, dessa vez ela lidera o caminho, um passo a frente de mim. Ouço, mais uma vez, o crocitar do corvo negro. Não sei de onde o som vem, parece vir do deserto inteiro. O som é um alerta. A mulher para, mas faz um sinal para que eu prossiga. Eu continuo, agora mais devagar, respiro cada centímetro do deserto. Sinto cada grão de areia azul escura. Sinto o vento que passa pelas asas do corvo tremelicando suas penas soturnas. Olho para trás, a mulher assente. Não há mais chão. O deserto se encerra e abaixo de mim o nada. O fim. Ouço a voz dela, embora ela não emita som, eu sei que é ela quem está falando. Ela me conta sobre o mundo. Me enche de conhecimento e então compreendo o deserto e a noite. Perambulo pelo reino da Morte. O reino dela. Ela diz que esse é o meu fim. Peço mais tempo, ter o conhecimento do mundo é fascinante, mas não pode ser duradouro, ela diz. Essa dádiva é dada apenas uma vez à cada ser humano, ela diz. Respiro fundo e compreendo. Compreendo que esse é o meu fim. Compreendo o que ela é, eu sou ela, sou o deserto, sou o corvo. Eu sou tudo, mas apenas por uma fração de segundo. Deixo meu corpo cair no abismo do infinito dos domínios da Morte. A Morte que me guia pelos caminhos finitos e ao mesmo tempo infinitos até o fim. Ela não segura minha mão, não mais como antes, mas me acompanha abismo abaixo. Ela é graciosa e parece levitar ao meu lado, mas sei que ela não chegará ao fim comigo. Esse jornada é minha e apenas minha, como já foi de muitos e como será de todos. Me apago, como uma lufada de ar extingue a chama de uma vela gasta. Não compreendo mais nada, apenas que esse é o meu fim.

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