A complexidade que queima
Porquê é que é impossível combater incêndios de grandes dimensões e o que podemos fazer para aumentar as nossas chances.
Antes de mais, um aviso: não sou, nem me pretendo retratar neste artigo como perito em fogos, incêndios florestais, nem combate aos mesmo. Alguns dos pressupostos que apresento de seguida podem estar errados. Se assim for, agradeço a correcção!
O primeiro artigo que li, hoje de manhã, sobre o fogo do Algarve, foi este do Semanário Expresso que retrata a atitude da sociedade civil na autodefesa perante o fogo florestal do Algarve. Não consegui deixar de pensar em alguns aspectos da teoria da complexidade que são retratados (indirectamente) neste artigo.
Combater uma força exponencial com meios lineares
É comum ouvir comentadores dizerem na TV e nos jornais que fogos desta dimensão são impossíveis de combater. A explicação para esta tese reside no facto de entrarem em choque duas forças que exploram matemáticas diferentes: 1) o fogo, como força da natureza, escala de forma exponencial; 2) o combate, uma força gerada pelo ortodoxia mecanicista /reducionista característica da civilização industrial, escala de forma linear. A imagem abaixo pretende ilustrar esta tensão.
É simplesmente impossível esperar que a forma de combate tradicional, adicionando carros, bombeiros, aviões e helicópteros, tenha um resultado exponencial: dois helicópteros a mais não apagam com 16 vezes mais eficiência!
Pelo que se percebe do que se lê e escuta nos meios de comunicação social (mas eu gostava imenso de ouvir alguém com experiência de terreno. Fica aqui a dica) é que o único plano durante a época de combate é o controlo, a todo o custo, da fase inicial do incêndio; antes que a catástrofe se dê.
Claro que antes do combate há toda uma discussão a ter sobre a prevenção. Mas isso é tema para outro artigo.
Teoria da Catástrofe
Um ramo da matemática dos sistemas dinâmicos (isto é, que evoluem no tempo) não-lineares chama-se teoria da catástrofe. Estuda fenómenos que, em determinadas condições, evoluem de forma brusca, completamente não proporcional e impossíveis de prever.
Imaginem-se a caminhar, lentamente pé-ante-pé, em direção a uma falésia. Cada passo que dão é idêntico ao anterior. Mas se julgarmos as consequências do próximo passo pelas consequências dos passos anteriores então os nossos níveis de confiança e segurança estão muito altos. Até que…o último passo que demos foi em direção ao abismo e não há como voltar atrás. Isto parece tão óbvio que parece uma verdade La Palisse. Este conceito de “catástrofe” aplica-se também às doenças cardiovasculares, ao aparecimento e progressão de cancros e ao acumular de material combustível nos terrenos.
Aplica-se também ao processo de início e progressão de um fogo florestal e isso, parece-me, é bem sabido por quem combate os fogos. Por isso se diz que as primeiras horas de combate são críticas. Porque nesta fase o fogo ainda progride de forma pré-catastrófica, é ainda possível prever a sua evolução e a eficiência de progressão ainda se encontra na mesma gama que a eficiência do combate. Esta é, de facto, a melhor estratégia operacional neste regime: ganhar a dianteira ao “tipping point” da catástrofe.
E como é que nós, os comuns cidadãos, sabemos se um determinado fogo atingiu esse ponto de catástrofe?
Quando aparece nas notícias das 20h.
Entre os dias 4 e 6 de Agosto de 2018, de acordo com o site da Protecção Civil, ocorreram cerca de 230 incêndios mas apenas um ocupou as notícias durante uma semana. Eis o perfeito exemplo de um sistema complexo: quando basta apenas um fugir ao controlo para que a catástrofe se dê. Um desfecho pouco provável mas com enormes impactos.
Comando e Controlo versus Sentir e Adaptar
A única forma de combater uma força exponencial é com outra força exponencial.
A pior estratégia para lidar com o caos é reforçar o paradigma de comando e controlo centralizado. Com a escala de elementos envolvidos no ecossistema criado durante a catástrofe, com o elevadíssimo grau de incerteza, é irracional imaginar que o controlo centralizado vai conseguir “agarrar” um fenómeno que entretanto ganhou vida própria e tem uma energia imensa.
Aliás, eu atrevo-me a dizer que tem até efeitos nefastos, pois cria uma dependência do comando que inibe a proação e a intervenção de quem está mais habilitado para tomar a decisão mais acertada no instante mais acertado.
Quando o sistema se torna catastrófico e caótico, é um desperdício de recursos investir em mais comando centralizado.
A única hipótese, é a sua substituição por uma rede distribuída com acesso a bons meios de comunicação e informação mas com autonomia para se autogerir. Sei que isto soa arriscado especialmente porque (elefante na sala!!) nós não estamos habituados a trabalhar assim.
No entanto, como aquele artigo do Expresso, conta, a decisão tomada pelos agentes mais bem apetrechados com informação, experiência e com a sua “pele em jogo” (skin in the game) revelou-se mais adaptada à situação em causa. E é a isto que a decisão estratégica em contexto de caos se resume. Tomar decisões rápidas e adaptadas à situação em causa. Avaliar os seus efeitos, adaptar e voltar a tentar. Não proponho, como espero ser claro, a eliminação da gestão. Mas gostava de experimentar distribuir poder de decisão pelos vários “nós” que compõem a rede de combate. Muitos destes são civis que já passaram por situações idênticas, conhecem melhor a orografia do terreno, sabem melhor quais as infra estruturas mais sensíveis e mais importantes para a comunidade e têm, no geral, um acumular de experiência (por oposição a conhecimento) inigualável. Em contexto de caos, a experiência é mais valiosa do que o conhecimento. A combinação das duas (experiência e conhecimento) numa rede distribuída bem conectada, resulta numa força exponencial que, essa sim, tem hipóteses de lutar contra uma outra força exponencial.
Existem alternativas?
Quando o sistema de torna caótico, o foco da intervenção deve imediatamente passar da quantidade para a qualidade. Neste caso, não falo da qualidade técnica do combate, mas na qualidade do processo de decisão, da informação a circular e da eficiência da adaptação às condições emergentes.
Este é o problema que pode ser expandido a outros problemas complexos do século XXI, como o das alterações climáticas. Eu diria, inclusivamente, que este é O Desafio do século XXI, pois os problemas que temos que resolver, são, todos eles, de natureza complexa e com tendência a evoluir para a catástrofe. Pese embora o processo de prevenção para evitar a catástrofe seja importante, diz o bom senso, que também nos devemos preparar para actuar em contexto de caos e catástrofe a várias escalas e em vários planos (físico, social, económico, emocional, etc.).
A alternativa existe e passa, primeiro, por assumir o limite das nossas instituições tradicionalmente hierárquicas na sua capacidade de percepcionar e tomar decisões em ambiente de complexidade. Nestes ambientes, não só a resposta tem que ser rápida mas o feedback, ou seja, o que é que resultou da nossa resposta, e a consequente adaptação também. Um sistema de gestão piramidal simplesmente não consegue ter essa rapidez nem capacidade de actuação (não só pelo tempo que a informação demora a chegar de um extremo ao outro da pirâmide mas também pelos canais que essa informação tem que atravessar e que, inadvertidamente, introduzem ruído na mensagem).
Depois, a alternativa passa por um longo processo de formação e de re-programação de modelos mentais que só se consegue com muita coragem e com disponibilidade para arriscar. Muito há para dizer sobre esta nossa adoração colectiva pela gestão organizacional científica e reducionista. Ela tem as suas origens na era industrial e nos nossos modelos de ensino (desde o primário até ao superior). A minha proposta é a de rapidamente iniciar um processo de transição para modelos orgânicos de organização que podem funcionar em modelo “comando e controlo” enquanto o sistema se mantém no regime linear, mas que se adaptam para uma rede distribuída para “sentir e adaptar” quando atingimos o ponto de catástrofe. Este processo de transformação contém elementos de aquisição de novos conhecimentos (das novas ciências e não só), mas fundamentalmente da acumulação de experiência em participação em redes de resposta orgânica. Experiência essa ganha tão somente através de um eterno ciclo de acção → reflexão → adaptação → acção.
Finalmente, assumir que é muito difícil para quem executa a acção ser também capaz de reflexão e adaptação. Estes dois passos precisam ser feitos pelos pares num contexto de espaço seguro devidamente facilitado.
Aguardo com curiosidade para perceber se este novo paradigma, que me parece fazer tanto sentido hoje, será a próxima evolução dos sistemas organizacionais. Pelo mundo fora já existem casos de sucesso e de insucesso.
Uma coisa é certa: eventos complexos e de dimensões catastróficas como os grandes fogos de Portugal, serão cada vez mais comuns. Muito pode, e está a ser feito, a nível da prevenção. Muito pode e está a ser feito a nível do combate. Mas não estaremos nós a investir de forma linear na resolução de um problema de progressão exponencial?
Não será altura de tentar algo radicalmente diferente?