Os 10 ingredientes para a mudança sistémica profunda

Pedro Portela
The HiveMind
Published in
6 min readMar 10, 2019

O meu trabalho de sonho é acompanhar pessoas (indivíduos ou grupos) comprometidas com mudanças profundas nos ecosistemas em que se encontram imersas.

Confesso que escrevo estas linhas a partir de um lugar de alguma frustração e ansiedade. Fui recentemente recordado por um amigo e, por sinal, colega de escritas, que devemos ventilar estas frustrações e gerar energia criativa através delas. Criar, portanto, um artefacto a partir da frustração.

E a frustração reside numa eventual incapacidade da minha parte em identificar em Portugal agentes comprometidos com uma estratégia de muito longo prazo para lidar com problemas realmente complexos. Admito que possa estar a sofrer de viés confirmatório mas, parece-me que existe alguma dispersão de recursos para projectos com muita visibilidade mediática, que resultam apenas em “artefactos”: eventos glamourosos, documentos e roadmaps cuidadosamente paginados e divulgados amplamente pelo megafone digital das redes sociais, conferências megalíticas com oradores que se fazem cobrar a preços que compravam alguns bons apartamentos. A chave para lidar com problemas complexos (e não sou eu que o digo) está nos “grassroots”; quem está no terreno a prototipar o novo. Fundações e Organizações Filantrópicas por esse Mundo já reconhecem esta verdade e estão rapidamente a adaptar as suas estratégias de longo prazo para uma prática sistémica admitindo, em muitos casos, que não existe ainda um manual que nos diga como executar na práctica esta mudança de paradigma.

Para mim, parece quase óbvio que seria muito mais útil pegar no caché de um qualquer grande orador internacional (por muito mérito e carisma que este orador tenha), e investi-lo em centenas ou milhares de pequenos protótipos de mudança que, certamente, existem por esse país fora.

Mas esta é uma decisão muito difícil de se tomar porque estas mudanças profundas são….enfim, uma chatice.

As chatices da mudança sistémica

A primeira chatice das mudanças sistémicas profundas é que elas são invisíveis e difíceis de medir, pelo que não se adequam aos modelos de financiamento e de medição de impacto actuais que funcionam um pouco como a medicina baseada nas evidências. Se não há evidências, não existe. Mas as transformações que ocorrem dentro de nós, na nossa personalidade, nos nosso desejos e na nossa mundividência, existem de facto. Mas como se mede a alteração de mundivisão de uma pessoa?

A segunda chatice das mudanças sistémicas é que esta actividade é processual e não projectada. Ou seja, trata-se de um processo e não um projecto de adaptação. Os modelos de gestão e aferição que temos em vigor, pelo menos em Portugal, são orientados ao projecto que produz artefactos e não a processos que produzem adaptação. O processo integra investigação, pesquisa, análise, prototipagem, teste e aprendizagem num ciclo literalmente infinito.

O pensamento sistémico é um guia ou companheiro estratégico para ajudar a apontar os nossos recursos na direção mais promissora, por forma a ter impacto sustentado no longo prazo.

A terceira chatice tem a ver com a lista de ingredientes que elenco de seguida, aos quais se aplica o Princípio de Karenina: todos, sem excepção, têm que estar presentes para podermos começar a falar em mudanças sistémicas.

Os 10 ingredientes:

  1. Humildade para aceitar que eu não tenho a solução. Nem sequer percebo muito bem o problema;
  2. Compromisso com o longo prazo. Temos que estar preparados para um processo longo que pode durar vários anos até começar a dar frutos;
  3. O problema pode piorar antes de melhorar. É muito comum que os primeiros sinais de resistência à mudança tornem o problema pior numa primeira fase. O truque é persistir;
  4. Ser capaz de integrar informação que contradiz as nossas crenças e desafiam o nossos modelos mentais;
  5. Comunicar de forma autêntica, sem contaminação cruzada de julgamentos, pressupostos e ideias pré-concebidas;
  6. Disponibilidade para investir em protótipos que vão (e devem) falhar miseravelmente;
  7. Integrar mecanismos de feedback que nos permitam observar o sistema que estamos a (tentar) alterar de uma perspectiva diferente da nossa, e um sistema de captura e recolha de aprendizagens que reduza ao máximo a hipótese de repetirmos erros do passado;
  8. Acompanhamento no desenvolvimento pessoal e, sim, espiritual. Se o processo fôr, de facto, profundo, iremos descobrir coisas sobre nós que não sabíamos que não sabíamos. Este processo pode ser penoso e é essencial ter um guia ou um mentor que nos acompanhe neste processo de crescimento;
  9. Conhecimentos técnicos sobre sistemas vivos. Parece pouco credível mas, no geral, o nosso sistema de ensino pouco ou nada nos ensina sobre como funcionam os sistemas vivos. Sabemos melhor como funciona um carro do que como funciona um colectivo de pessoas ou um organismo vivo;
  10. Comunidade de práctica. Precisamos dos nossos pares. De pessoas que estejam a passar pelos mesmos processos de transformação, pelas mesmas dificuldades e sentir que a nossa experiência (por vezes dolorosa) faz parte de uma experiência humana partilhada;

Aprender a mudar

Sinto que precisamos de uma “escola” que nos ensine a mudar.

Onde possamos treinar as dez competências elencadas acima. Este pensamento não me sai da cabeça desde que fui pela segunda vez ao Schumacher College, no Reino Unido.

Temos em Portugal alguns agentes na área da Inovação Social que oferecem programas de formação em empreendedorismo social mas, na minha humilde opinião, estes ficam aquém do trabalho que é necessário fazer neste momento.

Mais do que mensagens inspiradoras, precisamos de espaços de partilha de ideias radicalmente diferentes. Ilhas de desvios positivos onde o impossível pode tornar-se real. Onde a imaginação e a criatividade, as características que nos distinguem dos algoritmos de inteligência artificial, sejam libertadas sem medos e sem pré-conceitos.

Onde ideias das ciências modernas se cruzam com conceitos de filosofias milenares apenas para revelar que, enquanto espécie, nós já estivemos aqui.

Onde o princípio operacional seja o de sermos obsessivamente coerentes com os valores de uma sociedade humanista e em harmonia com a Natureza, que é o garante da nossa sobrevivência. Onde possamos simplesmente ser humanos, com as nossas virtudes mas, sobretudo, com os nossos defeitos e que, nesse contexto, possamos olhar para nós e tentar mudar apenas mais um bocadinho.

Porque é que isto é tão importante agora?

Esta questão da mudança sistémica torna-se especialmente pertinente no mundo “moderno” porque o mundo social moderno move-se a uma velocidade louca. O que na geração passada demorava 20 anos a acontecer, hoje acontece em 20 dias. O ritmo da mudança é muito acelerado e nem todas as mudanças são boas e/ou reversíveis. E uma vez que o mundo moderno vive a uma velocidade louca, vemos mais e mais padrões a repetirem-se com frequência; estamos mais sensíveis a estes mesmos padrões e é, para nós, mais fácil percepcioná-los (por exemplo, as crises financeiras).

Porque vivemos numa época de aparências e de soluções fáceis, existe um apetite para fazer investimentos em projectos que sejam promissores e pouco arriscados na produção dos tais artefactos que justifiquem o investimento perante o público. O paradoxo é que o público está cada vez mais atento a estas soluções cosméticas e frustrado por ver que existem ainda problemas crónicos que se mantêm por resolver e nada parece surtir efeito. Penso que existe, também, um trabalho a ser feito na sensibilização geral para o tempo que estes processos de mudança carecem e em como isto se confronta com a urgência da sua resolução.

A nossa frustração colectiva está a aumentar — e com ela aumentam dois fenómenos: 1)Por um lado, aumenta a probabilidade de aceitação do discurso populista que promete tudo resolver, atirando as culpas para um “outro qualquer” (Brexit, Trump, Bolsonaro). 2)Por outro, perdemos a nossa confiança nas instituições que são o garante da nossa paz social. E eu não quero pensar no que aconteceria se essa confiança desaparecesse por completo.

Finalmente, penso que isto é importante agora, pois relaciona-se com questões do futuro do trabalho.

Imagino um futuro no qual os empregos tradicionais das 9h às 18h a fazer tarefas repetitivas e rotineiras serão uma excepção. Nessa altura, a nossa concepção de trabalho será muito mais abrangente. Iremos provavelmente ter falta de empregos mas não teremos, certamente, falta de trabalho.

Sonho em como o acompanhamento a pessoas e comunidades em processos de mudanças sistémicas seja um dos muitos novos emprego do futuro…

Photo by Evan Kirby on Unsplash

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Pedro Portela
The HiveMind

System’s Thinking my way through a Complex life.