Sobre os incêndios

Filipa Carlos
The HiveMind
Published in
6 min readOct 23, 2017

Uma perspetiva sistémica a inspirar um plano de ação

imagem Pexels

Enquanto parte de um sistema vivo, é claro, evidente e consciente o sentimento, em qualquer ser humano, de pertença à natureza. Basta estar minimamente conectado com o que o rodeia para o sentir. Para quem não o sente, este texto será provavelmente uma perda de tempo.

Os últimos dias têm sido de sofrimento. Começa a ser impossível não sentir, pois a malha dos desastres naturais aperta e mesmo aqueles que ainda não a tinham sentido próximo, já não a podem negar. Atrevo-me a dizer que, mesmo que não tenhamos sido afetados diretamente, não existe em Portugal ninguém que não tenha em primeiro grau um familiar ou um amigo afetado pela catástrofe dos incêndios.

A dor, cada um a sente à sua maneira. Uns engolem em seco e outros choram, uns isolam-se e outros procuram o conforto do grupo, uns perdem as forças e outros arregaçam as mangas.

Depois de um verão onde um tradicional interior afetado pelos incêndios é notícia pela nova dimensão da tragédia e as suas fatais consequências, temos um outono que trouxe às regiões litorais esta realidade, a qual costuma ser mais distante. Por isso reforço a ideia de que hoje todos nos sentimos tocados por uma profunda tristeza, pela riqueza natural destruída.

Horas e dias de discussão se passaram na Assembleia da República após “Pedrogão”. Grandes partes pudemos assistir via ARTV e ainda assim conseguimos quatro meses depois repetir o feito.

Repito, a dor, cada um a sente à sua maneira. Claramente ninguém fica indiferente. Mas existe um grupo grande de pessoas em que deposito maior esperança — aqueles que perante a dor arregaçam as mangas.

E é aqui que partilho a visão idealizada perante um momento de crise tão grande. É notório que uma recuperação para voltar ao estado pré-incêndios será extremamente complexa e demorada, mas, e se tivéssemos um mapa que nos ajudasse a chegar mais rápido ao objetivo comum de termos o correto apoio às pessoas afetadas, a floresta portuguesa planeada e plantada de forma sustentável e a sociedade civil envolvida na sua proteção e preservação?

E se nesse mapa tivéssemos todos os perfis de agentes e formas de interligação para esse objetivo comum?

Perante momentos profundos de crise, a esperança alimenta a capacidade de agir. Eu acredito que é possível. Não é por acaso que a mitologia nos oferece essas criaturas mágicas que são as fénixes.

Sementes de algumas espécies autóctones portuguesas

Então parto de dois pressupostos:

1) Se sentimos de forma consciente a importância deste momento, o voluntarismo das primeiras horas é convertido numa disponibilidade de longo prazo

2) Toda a pessoa que, perante a dor atual se sente impelida a agir, o fará pondo ao dispor da comunidade os seus talentos, competências e capacidades.

Estes dois pressupostos alimentam essa idealização de que é possível agir e fazer a diferença. O primeiro implica perceber que, apesar do impulso inicial, nem todos podemos correr para o palco das operações no primeiro momento e que, reconhecendo que algumas necessidades só poderão ser respondidas mais tarde, a energia inicial deve ser canalizada para esses momentos. Aqui está implícita a capacidade de gerir emoções e economizar energia sobre a forma de compromisso de longo prazo. Não é fácil, nem o mais satisfatório no curto-prazo, mas é sem dúvida muito necessário e relevante. Estarmos disponíveis para ação quando o nosso perfil for chamado a tal.

O que liga com o segundo pressuposto. Sobre o segundo pressuposto, seria importante perceber que nem todos temos as mesmas apetências e que existem perfis necessários no imediato e para acorrer as populações em necessidade, mas também existirão competências que serão necessárias ativar no longo-prazo. Isto significa que a assistência social será primordial na primeira fase enquanto outros perfis técnicos especializados serão necessários depois. Então, enquanto o sistema social entra em recuperação, quem se ocupa da regeneração natural dos territórios afetados? Não basta dizer que a responsabilidade é do governo, afinal já percebemos que se deixarmos só por aí, não vai ser suficiente. Mas é importante pedir ao governo que sejam criadas as condições necessárias para que a sociedade civil possa agir sem sentir que está à revelia de um sentido de estado. A mão de obra voluntária vai ser necessária durante um grande período de tempo, se quisermos responder de forma assertiva, participada e se quisermos que o processo seja o mais rápido possível, dentro de um quadro de regeneração que se prevê longo. E essa mão de obra irá espraiar-se de acordo com vários perfis.

De seguida exponho alguns dos perfis mais imediatos, mas salvaguardo que na resolução de um problema tão complexo e extenso, a enumeração não é exaustiva, e muitos outros perfis emergirão ao longo da evolução das atuações.

Um dos perfis necessário na resolução deste problema será o dos agentes de direito. Estes devem acusar e procurar as explicações que permitam identificar e melhorar as falhas do sistema, bem como identificar a existência de ciclos perversos que devem ser eliminados. Acrescentaria ainda que com este perfil teremos os interlocutores que precisamos para incorporar na futura legislação o conhecimento e necessidades da sociedade civil bem como traduzir o seu espaço de ação, para que não sintam estar a atuar à margem de ou de forma desconexa das eventuais estruturas existentes.

Outro perfil será o dos agentes na área da economia e gestão, no apoio que poderão dar a quem mais precisa de aceder ao apoio financeiro disponibilizado e que muitas vezes desconhece a existência desses apoios ou não consegue falar a mesma linguagem das instituições financeiras.

Também os perfis nas várias áreas da engenharia são desde logo chamados, pelo seu conhecimento técnico e científico, seja na elaboração de planos de mitigação de riscos ambientais e sociais (lembremo-nos dos lixiviados das chuvas de inverno ou do risco de colapso de estruturas) e de intervenção de longo prazo no planeamento estratégico do uso do solo e da sustentabilidade das florestas.

Ainda um importante perfil são os empresários e outros agentes económicos que, atendendo à sua natureza na capacidade de gerar valor, o poderão fazer de forma mais responsável e com modelos de negócio adaptados, alargando a sua cadeia de valor à comunidade envolvente ou levando o know how do seu core business às geografias onde este é mais necessário.

Finalmente, salientam-se os movimentos ou associações (escuteiros, associações da natureza, movimentos de voluntariado) com capacidade de mobilização e organização da sociedade civil disponível e motivada para ajudar com disponibilidade de tempo e força de trabalho, mas que necessita de orientação para canalizar essa sua disponibilidade, que serão importantes plataformas de informação junto de um público vasto.

Ao identificar estes perfis, pretendo incentivar a um olhar sistémico na resolução do problema dos fogos florestais por forma a minimizar as suas consequências nefastas, na perspetiva social e ambiental. Por isso estes perfis não atuarão isoladamente, mas sim articulados entre si. Tal articulação não pressupõe uma centralização, antes considera que o modelo se possa replicar em diversas geografias afetadas por este problema.

Também por esta razão, para além dos perfis técnicos, é relevante salientar perfis baseados em outras competências, não técnicas, mas nas soft skills, que emerjam no sentido da liderança já que, defendendo a capacidade de mobilização da sociedade civil e a descentralização de algumas tomadas de decisão, existirá a necessidade de orientação e estruturação das iniciativas e ações a desenvolver. Tal poderá ser decorrente de uma liderança coletiva, mas onde os first movers terão um papel preponderante e delineador do cenário de futuro a alcançar.

Com a consciência de que muito mais haverá para expor e desenvolver no que diz respeito ao tema e tal como é característico de problemas sistémicos e complexos, pretendo deixar aqui um ponto de partida à reflexão de forma a que esta abordagem sistémica inspire à ação e se deixe para trás o modelo linear de resolução de problemas, que se torna solução apenas para alguns e no curto prazo. Por exemplo não é referido de forma específica como as artes e a cultura poderão ter um papel na abordagem necessária, essencialmente por ser uma área mais distante da minha realidade. É por isso que todas as reflexões apresentadas estão incompletas e representam evidentemente uma opinião pessoal e por isso passível de ser rebatida. No entanto, o grande objetivo é que esta exposição seja um foco, um olhar sobre o problema, a partir do qual se vão levantando outros pontos e aspetos a adicionar ao modelo de futuro da floresta em Portugal.

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