Concordia, o jogo que deveria ter ganho o Kennerspiel des Jahres

Jogo de 2013 bateu na trave na premiação, mas ainda é o mais relevante dos finalistas

Anderson Butilheiro
The Meeple Kingdom
8 min readJul 29, 2020

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No ano de 2014, três jogos despontaram como os favoritos a receber o prêmio de jogo para conhecedores do ano — o Kennerspiel des Jahres — , de acordo com uma academia alemã que analisa seu próprio mercado. O vencedor foi Istanbul, um jogo gostoso, leve pra médio, mas com ótimas tomadas de decisão que o credenciaram ao prêmio por se tratar de um jogo, sem dúvida alguma, com ótima aceitação pelo mercado e pelos jogadores. Porém, os outros dois jogos são nada mais, nada menos, que Rococo e Concordia.

Concordia na mesa. Foto: BoardGameGeek.

Era uma briga de peso. Rüdiger Dorn, Mac Gerdts e Matthias Cramer são sem dúvida alguma alguns dos principais nomes do hobby e todos os três jogos têm seus méritos. Porém, ao analisar do ponto de vista do que deveria significar o prêmio, Concordia é o melhor dos três jogos e vou explicar o porquê.

Mac Gerdts já era conhecido no meio quando lançou, em 2013, o jogo que viria a se tornar seu principal trabalho, ainda hoje. Jogos como Imperial, Antike e Navegador já eram aclamados e reconhecidamente influentes, principalmente por levarem uma das marcas do designer: o rondel. A mecânica de rondel, que já existia há anos antes, era usada pelo autor para dar aos jogadores a difícil decisão de escolher entre possibilidades de ações dentro de uma roda, mas em que ao escolher uma em detrimento de outra, ele faria com que houvesse um custo para retornar à ação anterior (seja o fato de que você precisaria esperar algumas rodadas, ou mesmo o custo em moedas para avançar determinados números de espaços).

Cartas do jogo. Foto: BoardGameGeek.

O que o designer fez em Concordia foi trazer o mesmo dilema para um outro formato, o chamado card driven. Todos os jogadores começam o jogo com as mesmas possibilidades, mas devem agora decidir quando jogar uma carta A ou B, que permitirá realizar a ação associada. Diferente do sistema de rondel, o jogador não precisa desistir de uma ação e esperar algumas rodadas para fazê-la. Todas as opções estão em sua mão e ele apenas deve escolher a ordem em que deseja realizá-las. Contudo, ao jogar uma carta na mesa, essa ação deixa de estar disponível — a não ser que você jogue uma carta que permite recolher para a sua mão de volta todas as cartas jogadas.

Mas vamos voltar um pouco. Concordia é um jogo sobre o avanço da civilização românica sobre o Mediterrâneo. Os jogadores devem realizar suas ações a fim de expandir seus domínios, conduzir seus colonizadores por mar e terra e criar postos de produção de recursos, assim como gastar esses recursos para ter mais colonos e avançar ainda mais. As cartas são o mecanismo que conduz o jogo — daí o termo card driven, ou conduzido por cartas — e à medida em que os jogadores avançam no jogo, eles também têm acesso à cartas melhores. Aqui entra um sistema de construção de baralho, em que o jogador pode comprar cartas novas e adicionar ao conjunto de cartas em sua mão.

O setup inicial do jogador. Foto: BoardGameGeek.

As cartas são separadas por tipo de ação que executam. Assim, a carta de Arquiteto permite ao jogador expandir seu controle se movendo e construindo pelo tabuleiro. Já a carta Mercador possibilita comprar ou vender mercadorias, com um preço fixo. A carta Prefeito permite produzir recursos conforme as casas já construídas pelo jogador numa determinada região. Senador permite ao jogador comprar cartas novas para a sua mão, pagando com recursos por alguma das cartas disponíveis no display no tabuleiro de jogo. A Diplomata é uma espécie de coringa que permite copiar a carta jogada por outro jogador, que esteja visível na mesa. Por último, a carta Tribuna será a carta usada pelo jogador para recuperar para a sua mão as cartas jogadas anteriormente, recolher dinheiro como impostos e ainda aumentar a quantidade de colonos que tem no tabuleiro. Grande parte da estratégia do jogo está em saber quando jogar uma dessas cartas, em especial a Diplomata e a Tribuna, tirando vantagem do que seus adversários fizeram ou nas cartas que você tem em mãos. Assim como nos jogos de rondel, o timing é tudo.

Cartas do jogador ao final do jogo. Foto: BoardGameGeek.

As cartas que você adquire ao longo do jogo tem outros nomes, outras funções mais específicas (as de especialistas, por exemplo), mas no geral são variações das cartas que você começa o jogo, melhorando uma ou outra ação, dando mais opções quando você já jogou uma carta daquele tipo e não deseja recolher as cartas para só depois poder realizar a ação novamente. Comprar cartas no jogo também te ajuda a melhorar o seu desenvolvimento.

Partida em dois jogadores. Foto: BoardGameGeek.

Acontece que as cartas tem duas funções no jogo: elas dão ao jogador ações, mas também critérios para pontuar ao final da partida. Quanto mais cartas tiver, mais critérios também terá e isso aumenta sua possibilidade de vitória. Investir em cartas então é a alma do jogo e você precisa se atentar, é claro, para qual o critério de cada uma. As cartas são divididas em categorias, conforme sua cor e o que elas fazem — que, no jogo, decidiram usar os nomes dos deuses romanos (ou os dias da semana em muitas línguas), mas isso não faz a menor diferença em termos de tema no jogo. Assim, as cartas de Marte, por exemplo, pontua pela quantidade de colonos que você tem na mesa. Já Júpiter pontua pelas casas que você colocou nas cidades. Vesta pontua pelo dinheiro, Saturno pelas regiões diferentes que você colonizou e Mercurio pela quantidade de tipos diferentes de recursos você produz. Por último, Minerva pontua pelas cartas específicas que você comprou durante o jogo, as cartas de especialistas.

Assim, Concordia é um jogo em que você constrói sua pontuação ao longo do jogo não somente no sentido de ganhar os pontos de vitória, mas escolhendo como ganhar. É você, através das suas cartas, que decide em qual estratégia irá focar e quantos pontos isso vai valer para você. Gerdts deixa nas mãos dos jogadores uma parte difícil do game design que é o quanto cada coisa vale, o quanto vale investir nas ações A ou B. Se colocar casas ou juntar moedas. Se espalhar seu domínio ou se focar numa região para produzir bastante ali. Essa decisão, no mínimo ousada, funciona bastante bem. Mas o grande feito do designer foi ter feito um jogo com tanta profundidade num jogo de manual extremamente curto. Um jogo super simples e fácil de se explicar, que, como diria um amigo, é straighfoward, direto ao ponto, fazendo muito com pouco.

Cartas de ajuda com os critérios de pontuação e custos para construção. Foto: BoardGameGeek.

Agora voltemos ao ponto lá do começo. Concordia é um jogo que, como nem todos fazem, sobreviveu ao teste do tempo. E não só sobreviveu, é ainda considerado referência. No ranking do BoardGameGeek — eu sei, não é um referencial de verdade absoluta — o jogo ocupa a 17ª posição. Eu considero isso um baita feito, visto que a maioria dos jogos que ocupam as posições acima são jogos mais recentes, lançados de 2015 pra cá. A comparação inevitável, Istanbul é hoje o 110º colocado neste mesmo ranking. Tudo bem que falamos de um ranking que mede muito mais popularidade do que qualquer outra coisa e que sofre severamente de uma aversão a jogos mais leves, cultuando jogos pesados e, quase sempre, jogos com hype momentânea.

Mas vamos analisar por outro ponto. O que Concordia traz em termos de novidade para o mercado, para os jogadores em si, em termos de regras, de elegância, de profundidade de jogo, é muito maior que o que Istanbul fez. Sem nenhum desmerecimento do segundo, que inclusive, é um jogo que gosto muito e sempre indico. Mas Concordia é, sem dúvida alguma, um jogo mais a cara de “conhecedores” do que Istanbul é. E, se essa era a premiação em jogo, o primeiro, e não o segundo, deveria ter levado o prêmio.

O problema é que o foco da crítica que julga e elege o jogo do ano naquele que deveria ser o Oscar dos jogos de tabuleiro mudou. E mudou sem avisar. O Spiel des Jahres deixou de ser uma premiação que focava no melhor jogo, e voltou seus olhos ao melhor “negócio de mercado”. E aqui eu não estou fazendo uma crítica a esse fato e nem usando uma maneira pejorativa de dizer que olhar o mercado é igual a olhar lucros. Não. O foco passou a ser os jogos com maior potencial de vendas e de aceitação pela grande massa e, mesmo no Kennerspiel, que deveria focar os jogadores experientes, os olhos também se voltaram para essa possibilidade. Isso justifica o fato de que outras situações semelhantes a essa voltariam a acontecer nos anos seguintes. Em 2015, Broom Service levou o prêmio que tinha Orleans como um dos indicados. Em 2016, o vencedor foi Isle of Skye, quando entre as sugestões tínhamos Mombasa. The Exit levou em 2017, num ano em que Terraforming Mars e Great Western Trail estavam entre os finalistas. E essa lista poderia se estender até o ano de 2020.

Presença dos jogadores na mesa. Foto: BoardGameGeek.

Veja bem, não há nenhum demérito meu em relação aos jogos que venceram o prêmio. Acredito sim que todos eles tinham sua devida qualidade. Mas, ao meu ver, nenhum deles era de fato um jogo “para conhecedores”. Ou pelo menos não mais do que os que ficaram entre os nomeados ou recomendados no final — que todos sabemos que eram os finalistas. Eu gosto de Istanbul, assim como gosto de Isle of Skye ou de Village e 7 Wonders, pra citar vencedores dos anos anteriores. Mas, pra mim, todos esses jogos são menos emblemáticos ou marcantes ou ainda, não trazem tanta novidade e ideias quanto aqueles que foram preteridos.

Se eu tivesse que escolher, minhas escolhas seriam aqueles jogos que trazem mais profundidade, trazem novidade ao passo que se mantêm com regras simples. São elegantes. Escolheria jogos que me marcaram pela escolhas de design que são diferentes, mas que também trazem ao jogador decisões importantes, relevantes e de fato, que são desafios aos jogadores experientes. Em 2014, eu teria escolhido Concordia.

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