Review — Black Angel

Excelente euro com temática sci-fi resgata elementos de Troyes e renova uma fórmula em um dos melhores jogos do ano

Anderson Butilheiro
The Meeple Kingdom
10 min readMar 11, 2020

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Black Angel, nave que dá título ao jogo.

Quando foi anunciado oficialmente, Black Angel foi recebido com desconfiança pela comunidade. E não pra menos: o jogo teve toda a sua divulgação no fato de ser uma reimplementação de um dos queridinhos dos últimos anos, o jogo Troyes. Tendo por trás a mesma editora e a mesma equipe de designers, o jogo já estava em elaboração há alguns anos, mas só em 2019 chegou às prateleiras e, por fim, às mesas dos jogadores.

Tabuleiro principal em seu setup inicial.

A questão é que Black Angel não é exatamente uma reimplementação de Troyes, mas uma reimaginação dos mecanismos principais do jogo de 2010, atualizados com alguns novos sistemas e uma mecânica completamente nova que deu peso ao jogo — e aqui eu estou falando de complexidade mesmo, uma vez que o “peso” do jogo medido pelo site BoardGameGeek é bem superior ao do jogo anterior.

O trio original, composto por Sébastien Dujardin, Xavier Georges e Alain Orban, traz um jogo novo, com temática sci-fi, excelentes componentes e a arte belíssima do sempre incrível Ian O’Toole. Em Black Angel, somos parte da inteligência artificial que controla a nave que carrega a última esperança da humanidade. À caminho de um novo planeta para colonizar, (chamado Spes) a nave que dá título ao jogo transporta genes para a colonização e população do futuro lar e, para que isso aconteça, os jogadores devem navegar com segurança pelo espaço. Porém, não se trata de um jogo cooperativo, mas, assim como em Troyes, existem elementos que fazem os jogadores jogarem de forma conjunta para enfrentar as invasões à nave.

Setup inicial do tabuleiro de jogador.

Mas vamos começar pelo começo: em Black Angel os jogadores alternam seus turnos escolhendo dados para usar, de um pool pessoal, composto por dados de 3 diferentes cores que servem cada um para ativar uma região diferente do tabuleiro. Cada uma dessas regiões tem suas próprias ações, duas na verdade, que o jogador poderá escolher realizar. As ações, em sua maioria, estão associadas à navegação com pequenos robôs e naves no tabuleiro de espaço, onde se encontra a Black Angel, e onde o jogador poderá colocar uma carta de exploração que dará acesso ou a uma nova ação ou ainda a algum bônus. As cartas podem ser também de 3 cores, as mesmas dos dados, e são ativadas posteriormente no jogo de duas formas, dependendo do tipo dessa carta.

Recursos: sim, é nome mesmo no jogo desse diamante belíssimo.

No entanto, as cartas têm uma outra função no jogo, e é aqui que ele mais se difere de seu antecessor. Em um primeiro momento em seu turno, antes ainda de fazer a ação selecionando o dado, o jogador pode ativar um tabuleiro pessoal, composto por 3 linhas e 3 colunas, em que irá criar uma rede de microchips — que é com o que os tiles se parecem , porém no manual eles são chamados de tiles de tecnologia — de uma maneira bastante interessante. O jogador poderá selecionar uma carta e decidir como ele irá ativar os microchips, se na horizontal ou na vertical, ativando respectivamente uma linha ou coluna e realizando as ações dos tiles que estiverem ali. Os tiles ativados são sempre aqueles que são da mesma cor da carta selecionada. A exceção acontece quando o jogador utiliza uma carta vermelha (associada aos invasores da nave), que tem a vantagem de ativar todos os tiles da respectiva linha ou coluna.

As cartas na mão do jogador.

Bom, aqui vale a pena fazer uma pausa para explicar o que são essas cartas vermelhas. No tabuleiro espacial existem diversos pontos que são acessíveis aos jogadores, onde eles podem colocar suas cartas, por meio da ação de exploração. Nesta ação, o jogador movimenta pelo tabuleiro espacial seus robôs, transportados por pequenas naves. Acontece que existem alguns pontos controlados pelos ravagers, uma raça alienígena que está tentando invadir a Black Angel e atrapalhar seus planos de uma viagem calma e bem-sucedida. Ao colocar uma carta num espaço adjacente à um ravager no tabuleiro de espaço, automaticamente uma carta vermelha deve ser sacada e colocada no tabuleiro da nave. É contra essas cartas que os jogadores precisam “lutar”. Entre aspas mesmo porque, diferente do que acontece no Troyes, aqui é muito mais uma ação que o jogador escolhe fazer, como se estivesse passando um antivírus na nave. Se escolher fazer essa ação, ao retirar a carta que está atrapalhando o sistema, o jogador ganha essa carta e, assim, tem em mãos uma carta “coringa” que poderá utilizar para ativar seu tabuleiro pessoal.

Ravagers invadem a nave e causa um dano, marcado pelo detrito.

Voltando às ações do jogo: além de fazer a ação de explorar e colocar cartas no espaço, e, claro, a ação de retirar as cartas de ravagers, os jogadores podem também lidar com os detritos da invasão alienígena, que são cubos vermelhos que proliferam pelo tabuleiro da nave no momento da invasão e que à medida em que crescem em volume, começam a causar maiores estragos — além de deixar ações mais “caras”, eles também podem atingir alguns dados do pool comum da mesa.

Jogador faz a ação danificada com o prejuízo de 1 no valor do dado.

A última ação que você também poderá fazer no tabuleiro da nave é a de comprar os microchips, aqueles que vão ficar em seu tabuleiro pessoal. No momento da compra, porém, existe uma dinâmica bastante interessante: ao colocar a peça em seu tabuleiro o jogador precisará escolher uma linha ou coluna e empurrar todas as peças que estão ali na direção escolhida. Isso poderá fazer com que tiles colocados em momentos anteriores no jogo sejam empurrados pra fora. Mas isso não é necessariamente uma coisa ruim. Uma das pontuações de final de jogo está justamente associada à retirada desses tiles de microchips e o espaço para onde eles vão nesse momento. Contudo, aqui estamos falando de um quarto tipo dessas peças, os pretos, que são exclusivamente para pontuação ao final do jogo.

Central de comando da Black Angel e suas IAs.

As demais ações possíveis com os dados estão associadas às cartas que entraram em jogo no tabuleiro espacial. Ali, geralmente estão ações relacionadas a ganhar recursos ou ainda pontos — que exigem que você abra mão de recursos. Essas ações estarão disponíveis para quem tiver colocado a carta em jogo, deixando ali um de seus robozinhos, marcando território. Mas lembra quando eu disse que essas cartas tinham duas funções? A outra, que se trata de uma espécie de bônus, acontece quando a Black Angel avança pelo espaço. Toda vez que um jogador não tiver mais dados, ou não quiser mais utilizar os que têm à disposição, ele poderá “passar” a sua vez, realizando uma fase de limpeza em seu tabuleiro pessoal e recuperando dados. Essa fase, chamada no jogo de “sequência B”, permite ao jogador iniciar sua rodada, independente de os outros jogadores fazerem o mesmo.

Momento de avanço da Black Angel.

Ao fazer isso, o jogador também ativa o movimento da nave mãe, fazendo-a avançar pelo espaço, numa das melhores mecânicas/dinâmicas que eu vi em jogos de tabuleiro nos últimos anos. Assim, a nave avança para o próximo tile de espaço, que forma o tabuleiro espacial, deixando para trás o tile anterior e fazendo com o que último tile, aquele mais próximo do tabuleiro da nave, avance para o final do espaço, mantendo a Black Angel em curso para o planeta Spes. Todas as cartas que estavam na peça, seja em que posição fosse, são ejetadas do tabuleiro, ativando assim suas habilidades bônus, finalmente, concedendo recursos ou pontos aos jogadores que, tanto colocaram a carta em jogo ou que tinham ali, no momento da ejeção, algum de seus robôs numa nave, posicionados justamente para receber a bonificação.

Robôs controlados pelas IAs marcam território nas cartas.

E não acabou. As cartas ejetadas voltam para os donos, sendo que, nesse momento, cabe ao jogador escolher um local em seu tabuleiro pessoal para colocar a carta, junto a um dos seus microchips pretos — aqueles que irão pontuar no final do jogo — que também já tenha sido ejetado do tabuleiro, para maximizar a pontuação dessa peça.

O jogo pode acabar de duas maneiras: a primeira é quando a Black Angel chegar ao planeta Spes, o que ocorre mais ou menos na sétima vez em que um jogador decidir realizar a “sequência B” (mas pode variar conforme o número de jogadores). A outra maneira é quando todas as cartas do deck de ravagers entrarem em jogo. A única diferença entre essas duas formas de fim de jogo é que na primeira, quando os jogadores cumprirem com sucesso sua missão, eles contam pontos por todos os recursos sobressalentes com os quais finalizarem o jogo. Na segunda opção, quando falharem em levar a humanidade ao novo planeta, essa pontuação por recursos não acontece.

Final approach: Black Angel avança para o momento de chegada ao planeta Spes.

Black Angel pode até ter sido concebido como uma reimplementação, uma sequência espiritual de Troyes, mas é impossível achar que são dois jogos que compartilham das mesmas mecânicas. Acredito que há aqueles que irão permanecer preferindo o jogo mais antigo, o que é compreensível. Black Angel traz para o jogo uma série de novas camadas que dão ainda mais rejogabilidade ao jogo, porém aumenta a quantidade de coisas com as quais você precisa se preocupar. Há quem vá dizer que Troyes é um jogo mais elegante, o que eu não vou discordar. Porém, pra mim, Black Angel apresenta muito mais profundidade, dá mais corpo a uma ideia mecânica de seleção de dados e traz isso para um tema deveras atraente.

Acredito que Black Angel faz um trabalho estupendo ao colocar camadas de estratégia de pensamento a longo prazo nas costas dos jogadores, sendo que o jogo em si pouco faz para se colocar como um desafio a ser superado de fato. Digo, as invasões alienígenas na nave não acontecem aleatoriamente, mas somente através das ações dos próprios jogadores e, portanto, são controláveis. Não há aqui um sentimento de vamos todos perder a todo instante no jogo, como poderia acontecer se o foco do jogo fosse o elemento de sobrevivência. Porém, ao passo que o controle do ritmo do jogo está nas mãos dos jogadores, também está a forma como ele irá terminar. Por exemplo, pode ser que um dos jogadores foque no fim de jogo adiantado, com as invasões ravagers, prevendo a vitória de outro jogador pela quantidade de recursos acumulados.

Área de descarte: o final do jogo também pode ser engatilhado pelo fim do deck dos ravagers.

A otimização do tabuleiro pessoal é outro dos muitos brilhos do jogo. Apesar de não ser uma mecânica inovadora, ela é bem aplicada e com novas possibilidades, principalmente no que diz respeito à sua ativação e futura ejeção das peças que poderão pontuar ao final do jogo. Mas, também é preciso pensar no que vai acontecer ao longo da partida, ao se ativar essas peças para ganhar seus bônus. As cartas usadas ali deixam de ser colocadas no tabuleiro de jogo, perdendo sua função como ações extras ou valiosos pontos de vitória que poderiam ser conquistados no momento em que a carta deixasse o tabuleiro espacial. Camadas essas que fazem o jogo se prolongar, é verdade, mas que dão valor a um recurso que poderia ser descartado sem utilização na mão do jogador.

Tabuleiro do jogador com seus microchips posicionados.

Por fim, Black Angel apresenta um desafio extra ao trazer para mesa um jogo robusto, complexo, recheado de opções, mas ao mesmo tempo elegante sim em sua forma de deixar simples as opções que o jogador tem ao escolher por duas sequências, uma que o permite fazer ações, outra que avança o jogo. O momento de jogar ou de “passar” a vez precisa ser calculado e alinhado com suas possibilidades de jogo. Mais dados não significa mais ações, uma vez que seus dados podem ser comprados pelos outros jogadores, porém até mesmo nisso pode haver vantagem (ao ganhar os recursos da venda do dado, uma ação que antes não estava disponível, agora pode se tornar interessante).

Tabuleiro próximo ao final do jogo.

Black Angel não veio para desbancar Troyes, ou ser uma reimplementação do mesmo (o que, na verdade, será papel de Troyes Dice, anunciado para esse ano), mas para ser uma opção de jogo para aqueles que gostam do jogo de 2010, ou ainda para ser um passo mais adiante para quem queria mais do jogo e precisava recorrer às suas expansões para agregar esse “algo mais”. Black Angel já chega recheado de conteúdo, inclusive com um modo solo, que dispensa, num primeiro momento, qualquer expansão pela enorme rejogabilidade que o jogo apresenta — não que uma expansão futura não possa deixar o jogo ainda mais robusto, o que eu não reclamaria. Se não é o jogo do ano, devido à uma enorme concorrência num 2019 fenomenal, Black Angel se credencia pelo menos a concorrer pelo posto.

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