Review — Crystal Palace

Com uma diferente abordagem de alocação de dados, jogo te leva à primeira Feira Mundial na Londres do Século XIX

Anderson Butilheiro
The Meeple Kingdom
10 min readFeb 4, 2020

--

Com a Revolução Industrial, não só as indústrias se modernizavam, mas a sociedade como um todo sofria interferências das novas descobertas, possibilitadas pelas grandes invenções científicas, estas, proporcionadas por essa profunda mudança no modo de se produzir. Máquinas, muitas delas não mais do que criativas reinvenções de outras engenhocas — e uma grande maioria bem inútil — apareciam aqui e ali. Governos e as primeiras grandes fábricas começavam a investir cada vez mais nessa ideia e, para ajudar a popularizar suas invenções, precisavam de um grande evento. Um evento mundial. Uma Feira Mundial. É aí que entra Crystal Palace.

A primeira grande Feira Mundial aconteceria em 1851, na Inglaterra, e para marcar essa grande celebração, a cidade de Londres encomendou um lindíssimo palácio feito de ferro e vidro (o primeiro do que viria a ser um exemplo para a maioria dos jardins botânicos pelo mundo), que recebeu o nome de Palácio de Cristal. Nos anos que se seguiram, diversas outras cidades receberam o grande evento que juntava todas as invenções do mundo e, para isso, erigiam seus próprios monumentos (como a Torre Eiffel em Paris, ou o Space Needle em Seattle).

Em Crystal Palace os jogadores vivem os anos que antecedem a realização da Feira Mundial de Londres, como países investidores, interessados nas ciências e tecnologias, buscando cartas de invenções e de personagens históricos. Ao longo de cinco rodadas, os jogadores irão alocar seus dados/trabalhadores para executar ações em 8 locais diferentes da capital inglesa. E, se preparando para o grande evento, precisarão fazer propaganda de suas novidades, envias assistentes para garantir certos bônus e ainda lidar com o dinheiro (ou a escassez dele).

De todos os lançamentos de Essen em 2019 Crystal Palace era um dos que mais havia me chamado a atenção (ao lado de Maracaibo e Cooper Island), principalmente pelo uso diferente dos dados, algo que muitos já devem ter percebido nos meus textos que é algo que me chama muito a atenção. Se os designers italianos popularizaram os dados nos euros como um valioso recurso para a mecânica de escolha de ações, draft e alocação, Crystal Palace parece ter bebido da fonte.

Mesmo que o designer do jogo, Carsten Lauben, ainda não tivesse nenhum jogo lançado no currículo, as primeiras informações sobre o jogo já criavam enorme hype, também pela parceria entre as editoras Feuerland e Capstone Games para o lançamento simultâneo na Europa e Estados Unidos. A arte única de Andrea Alemanno dá ao jogo um visual bem distinto de outros jogos do gênero, que já foge do clichê no tema, mas que se torna ainda mais único com os personagens e máquinas que tem traços cartunescos, mas sem ser escrachados. E, claro, essa capa maravilhosa que emana o glamour do Palácio de Cristal.

O primeiro twist que acontece em Crystal Palace é que seus dados não são rolados (assim como em Rio 1808 e Teotihuacan, em algo que parece que vem se tornando tendência), mas você escolhe a face deles na primeira fase da rodada. Acontece que a soma das faces dos seus dados é o valor que você irá pagar por eles, como uma espécie de salário, deixando o custo alto se você quiser dados altos. A vantagem de um dado com valor maior é que, na segunda fase, quando se aloca os dados nas ações, você só poderá ter acesso à determinados espaços caso o valor do dado cumpra o requisito mínimo daquele espaço. Há diversos espaços em que os requisitos são baixos, como dados com face 1 ou 2, porém os bônus geralmente estão associados aos espaços de requisito maiores como 4 e 5. Na terceira fase é que realmente as ações são executadas e, nela, cada localidade é executada em ordem do maior dado para o menor.

As 8 localidades tem funções bem distintas. Uma coisa interessante do jogo é que não existe aquilo de buscar/comprar/produzir determinado recurso para trocar por outra coisa que você precisa. O jogo é, na verdade, uma busca constante pelas melhores posições em que se pode ganhar dinheiro ou um dos dois escassos recursos do jogo: energia e engrenagens. Eles não vem fácil, demandam muitas vezes você abrir mão de outra jogada para conseguir o recurso e ainda conta com a escassez de trabalhadores. Todos os jogadores começam com 4, mas podem eventualmente vir a ter 6 no jogo — mas ainda assim parece que falta gente pra tanta coisa a se fazer. Ainda na segunda fase, antes de resolver as ações dos espaços, os jogadores recebem os bônus associados aos locais em que alocaram os dados, quando existirem. Uma dessas ações está associada aos seus assistentes, que vou deixar para explicar mais tarde.

No primeiro local, o Escritório de Patentes, os jogadores compram cartas de patentes de invenções. Nesse momento ele não paga por elas, uma vez que são apenas ideias e não terão efeito algum. Mas são as patentes que poderão ser tornar invenções a serem demonstradas na Feira. Essas cartas tem um efeito interessante quando ativadas, uma vez que podem ser usados no próprio jogador ou em um adversário (um mix de efeitos positivos e negativos estão nas cartas causando um take-that mais leve).

Na sequência, os jogadores passam pelo Museu Britânico, Banco de Londres e Westminster, onde buscam, respectivamente, por tiles de tecnologias, papéis de empresas e por influência no parlamento. Estes são alguns dos outros recursos que podem dar pontos aos jogadores de diversas formas. Por exemplo, os tiles de tecnologias ocupam espaços no tabuleiro do jogador e, além de dar bônus por si só, impedem que o jogador perca pontos ao final do jogo caso alguns desses espaços permaneçam descobertos. Papéis de empresas aumentam os rendimentos dos jogadores ao começo de cada rodada. Influência no parlamento permite ao jogador pagar salários menores para o personagens do jogo, que são comprados no espaço de ação seguinte, o Reform Club.

Como os tradicionais clubes de cavalheiros da Inglaterra, o Reform Club recebia os grandes nomes da época entre políticos, empresários, membros da alta sociedade e, claro, cientistas e inventores de renome. Lá que os jogadores poderão buscar os personagens que o ajudarão a compor suas atrações, sejam por seu apelo para o público, seja pelos bônus que eles concedem na hora em que são contratados. Diferente das patentes, os personagens são pagos na hora em que se compra (em energia e engrenagens) e ainda pedem um pagamento em dinheiro futuramente, em outra fase da rodada.

Nos três locais finais os jogadores podem fazer propaganda das suas apresentações no London Times, tradicional jornal da cidade, enviar ou receber trabalhadores através do Porto de Londres e fazer uma última ação de ganhar recursos e bônus na Estação de Waterloo. Todos os locais são ativados sempre nessa ordem, sempre do dado maior para o menor e, eventualmente, algum jogador pode não conseguir ativar o seu dado no local por falta de ações a serem feitas (a maioria tem mais locais de dados do que ações possíveis e o jogador que não conseguir ativar seu dado recebe 1 libra como compensação).

Os assistentes, seus meeples com formato bem bacana, vale dizer, são peças essenciais no jogo com os quais você poderá interagir no mercado negro, buscando ali alguns bônus à medida em que interage mais no local, ou ainda no seu tabuleiro pessoal, ativando pontuações de final de jogo. Essas pontuações são pré-requisitos específicos de cada tabuleiro de nação, o que dá uma pequena assimetria ao jogo. Na caixa, são 10 países diferentes com suas condições — e aí fica aquele desafio de jogar com todos os 10 pra tentar pontuar o melhor possível com cada um.

Na fase seguinte, a quarta fase do jogo, acontece o pagamento do salários dos personagens que você contratou. O valor do salário depende da sua influência lá no palácio de Westminster. E, então, na quinta fase da rodada, os jogadores poderão finalmente criar suas invenções, pagando os custos das patentes e virando a carta para ativar seu efeito. Há uma relação interessante entre as invenções e os personagens que faz com que você tente buscar aqueles que combinam entre si, para ganhar bônus de pontuação. É somente neste momento em que o bônus da carta é ativado.

Então, nas duas últimas fases da rodada, os jogadores irão receber seus rendimentos conforme a trilha que indica isto, além de pontuar pelas buzz criado em torno de sua apresentação, na trilha de propaganda. Como comentei anteriormente, existem vários bônus relacionados à essas trilhas que o jogador recebe ao alocar o dado ou ao ativá-lo, mas também em ações de locais específicos no tabuleiro. Aumentar essas trilhas é essencial para não sofrer com falta de dinheiro e para gerar pontuação de forma automática toda rodada. Em seguida, os jogadores realizam a bonificação do mercado negro e preparam para a próxima rodada.

Ao final das cinco rodadas, existe apenas uma rápida pontuação final que irá dar aos jogadores bônus por completar seus objetivos ou por alcançar determinados marcos como o topo da trilha de propaganda, mas também haverá punição pelos espaço deixados em branco no tabuleiro pessoal (dois pontos por espaço). O final da trilha de propaganda é o próprio Palácio de Cristal, que dará pontos à medida em que os jogadores chegarem ao final dela.

Uma curiosidade do jogo é que sempre que você precisar pagar por algo e não tiver dinheiro para isso, você é obrigado a pegar um empréstimo — bem ao estilo dos jogos do Martin Wallace. E, como tem se tornado cada vez mais comum, o empréstimo é bastante punitivo, uma vez que ele cobre um dos seus espaços do tabuleiro, mas substitui a perda de dois pontos por algo entre 8 e 10 pontos. O empréstimo pode ser pago a qualquer momento do jogo, mas o tile vira para o lado com 5 pontos negativos e você não pode se livrar disso.

Crystal Palace é aquele jogo que você não sente que ele é apertado até que o jogo já esteja quase no fim. A sensação de ir pontuando ao longo do jogo te dá uma falsa segurança, achando que vai fazer muito pontos no final, mas não é o que acontece aqui. A maioria, imensa, dos pontos você consegue durante a partida mesmo, principalmente nas cartas de invenções e personagens, e ainda pode perder pontos ao final se não se lembrar de preencher os espaços do seu tabuleiro. A pontuação do seu objetivo é baixa (entre 1 e 7 pontos) e não vai ajudar a corrigir um erro de cálculo que você cometer, como em outros jogos. O foco é total nas ações dos tabuleiros e em otimizar seu dinheiro e recursos para não precisar dos empréstimos.

Para acompanhar a sequência lógica do jogo, os tabuleiros dos jogadores tem toda a estrutura das fases da rodada, o que ajuda demais pra não esquecer de cumprir nenhum dos passos. Sinto que falta isso em muitos jogos que são cheios de fases diversas e essa lição poderia ser aprendida com o excelente design gráfico do jogo que, ressalte-se aqui, é completamente independente de idioma visto a qualidade da iconografia do jogo. Todo o texto é apenas flavor temático para as cartas.

Crystal Palace é um jogo bastante consistente, que cumpriu o que eu esperava dele, sem ser um jogo pesado que cansa, mas que tem um aspecto de interação entre os jogadores interessante pela disputa das ações com seus dados. A maior parte do planejamento se dá em que valor colocar seu dado e quanto pagar por ele. Isso demanda não só você observar seu jogo, mas ler o jogo dos adversários tentando prever o que eles vão fazer na rodada. O aspecto take-that das cartas de invenções pode afastar jogadores que preferem o estilo multiplayer solitarie de outros eurogames, mas não me incomodou visto que na maioria das vezes é mais interessante usar a carta em você mesmo pelos bônus do que aplicar o ônus no adversário (dando a ele também o bônus). Muitas cartas pontuam diferente de acordo com a rodada em que ela é jogada, isso também influencia na sua estratégia, em que cartas investir e em que momento ativá-las.

Além de ter um bom visual, o jogo tem um bom tema, que deixa o jogo divertido, apesar de ser bem superficial. No final das contas, estamos buscando pagar pelas cartas e subir na trilha que gera bonificações frequentes todas as rodadas. Diferente de jogos como Trickerion, em que há de fato um momento de apresentação da sua mágica, em Crystal Palace não há um momento de clímax, de finalmente levar nossas invenções para o evento, mas isso não tira o brilho das mecânicas do jogo.

Crystal Palace começa 2020 já levando um prêmio de melhor jogo do ano, o Le Diamant dOr, da França, que premia jogos mais pesados. Pra mim, ele fica sim entre os melhores, mas talvez não necessariamente o melhor. Mas é sem dúvida um nome de respeito para as premiações que virão a seguir no ano. Um jogo para, ao menos, se ficar de olho.

--

--