Facilitação de vulnerabilidade masculina: um case de UX Research + Comunicação Não-Violenta

Theogenes Costa (THEO)
THEOcomH
9 min readDec 27, 2020

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Homens são os principais autores de violência de gênero e o MEMOH é um caminho para remediar essa realidade.

Quando conheci Pedro de Figueiredo (inspirado pelo documentário The Mask You Live In na criação do MEMOH) no Rio de Janeiro enquanto participávamos de uma imersão em CNV (comunicação não-violenta), já fazia meses que eu tinha deixado Pernambuco para tratar de comunicação e criatividade dentro de organizações a convite de uma amiga em sua consultoria de recursos humanos.

Foi inevitável perceber o quanto os espaços corporativos estão adoecidos por conta de violência (assédio moral e/ou sexual, burnout, depressão, ansiedade, etc) e que pouquíssimos homens apareciam nos eventos e workshops que organizava junto com ela.

Homens são os principais autores de violência de gênero. Eu sentia vontade de alcançar esses homens e fazer algo mais significativo, algo que me possibilitasse ir até a raiz do problema por meio de diálogos mais empáticos.

Monitor da Violência — G1 / Núcleo de Estudos da Violência da USP / Fórum Brasileiro de Segurança Pública

O MEMOH é um negócio social que busca promover equidade de gênero por meio do debate de masculinidades (assim mesmo, no plural), oferecendo aos homens a possibilidade de refletirem, em conjunto, sobre seu comportamento por meio de grupos reflexivos dentro e fora das organizações.

Este é um case que começou em 2017 mas que após o conhecimento adquirido nos cursos de Design de Processos da EDUXE e a Formação em UX Research da ALURA, foi possível nomear passos, adaptar metodologias e estruturar o material de pesquisa a seguir.

Lembramos SEMPRE que não é pq você está no MEMOH que você é um homem melhor que os outros!

Homens incomodados

É assim que chamamos os participantes dos grupos reflexivos do MEMOH. São homens que já percebem que o jeito como tratamos mulheres não é saudável, que têm vontade de dizer para um amigo que a piadinha não teve graça mas não quer perder aquela amizade, que gostaria de ter conversas mais profundas que as de mesa de bar mas que não encontra espaço para isso sem ser julgado como “menos homem” por pedir ajuda.

Infelizmente o homem cis hétero ainda acredita que “questões de gênero é coisa de mulher ou viado”

Temos 4 figuras principais em nossos grupos reflexivos (que se encontram quinzenalmente online, pelo Zoom, distribuídos em grupos de até 20 homens):
. o líder da rodada - escolhe um incômodo pessoal que se torna um tema-pergunta para discutir com os demais participantes;
. o anfitrião - pessoa física ou jurídica que abraça o projeto e acolhe o grupo dentro de casa;
. o caseiro - responsável pela organização do grupo antes, durante e depois dos encontros, apoio ao líder na construção do tema-pergunta, etc;
. o síndico - cuida da gestão dos grupos, acompanha os caseiros na execução da metodologia, organiza reuniões mensais com os caseiros, expõe e lidera estratégias, mapeia processos, gera relatórios, etc.

Nora Samaran — The Opposite of Rape Culture is Nurturance Culture

Mas se homens em geral não falam sobre os próprios sentimentos, como facilitar diálogos e vulnerabilidade?

Esse foi um de nossos maiores desafios!

Precisávamos de um processo fácil, replicável, que homens comuns pudessem não apenas compreender mas também manusear a ponto de criar os seus próprios grupos de forma independente. Esse é o primeiro momento em que foi possível usar CNV (comunicação não-violenta): compreensão e expressão de sentimentos.

Marshall Rosenberg, psicólogo americano criador da CNV, afirma que sentimentos são caminhos que nos ligam à necessidades atendidas ou não atendidas. Ao trazer o incômodo que deseja discutir com os demais participantes, o líder da rodada é convidado a nomear os sentimentos que percebe em si mesmo ao manifestar o seu incômodo e transformar isso em um tema-pergunta, apoiando esse processo de auto expressão empática.

Acordos e lembretes de TODOS os encontros para não nos tornamos mais um grupo de “passassão de pano”

E o que tudo isso tem a ver com UX Research? Qual o problema?

Encontramos uma falha em nossa métrica de satisfação que acreditamos impactar o quórum dos grupos e o bom aproveitamento dos participantes, além de responderem os formulários de feedbacks cada vez menos a cada encontro.

O objetivo então é investigar de formas qualitativa e quantitativa, pontos de melhoria e implementar aprimoramentos para aumentar a satisfação e presença/frequência dos participantes, segundo solicitação do CEO.

As principais restrições aqui foram TEMPO e CUSTOS: com quem eu vou falar (para não perder tempo) e quantos estão envolvidos (para não desperdiçar dinheiro).

Entre RISCOS e DESAFIOS, precisávamos concluir a pesquisa em menos de 3 meses (entre outubro e dezembro de 2020) para implementar melhorias já no semestre seguinte dos grupos reflexivos não só dentro das empresas que nos contrataram mas também dos grupos que oferecemos de forma 100% gratuita para a sociedade. Devido a nossas restrições de tempo e custo, foi mais conveniente realizar a pesquisa somente com os caseiros e participantes que tiveram no mínimo 70% de presença/frequência aos encontros em seus respectivos grupos.

Durante o desenvolvimento do relatório final do semestre 2020.2 dos grupos reflexivos, chegamos a algumas HIPÓTESES e SUPOSIÇÕES:
. os caseiros e participantes não preenchem os formulários de feedback porque não os consideram relevantes ou interessantes;
. métricas quantitativas para medir a vontade de contribuição dos participantes, o impacto dos temas propostos em cada encontro e a disposição em refletir sobre estes mesmos temas são métricas insuficientes para o melhor aproveitamento dos encontros.

Escolhemos usar diferentes ABORDAGENS e MÉTODOS:
. Com os caseiros — informal, entrevista: ouvir e compreender o que eles consideram ser um “encontro F**A” (ou atraente) e quais encontros e situações reforçam esse julgamento;
. Com os participantes — formal, questionário: acompanhar as métricas dos formulários de feedback para medir contribuição, impacto e reflexão.

Síntese da proposta de pesquisa.

Informal não é bagunça!

Escolhemos realizar uma abordagem mais informal com os CASEIROS usando entrevistas já que temos mais intimidade com eles. Os caseiros um dia já foram participantes e líderes trazendo seus próprios incômodos então eles compreendem e replicam a metodologia na condução dos grupos.

Simplesmente perguntar “por que raios você não responde o formulário?” além de não ser empático também não traria nenhum resultado de fato, então criamos um roteiro de perguntas com o cuidado de evitar viés de confirmação, que nada mais é que manipular as perguntas para que um usuário tome um determinado caminho ou perguntas que influenciem a resposta.

“Pensamos e nos comunicamos em termos do que há de errado com os outros para se comportarem desta ou daquela maneira.” — Marshall B. Rosenberg

Optamos por evitar perguntas genéricas e estimular os caseiros a contarem histórias a partir de questionamentos do tipo:
. Se você fosse um super-herói ou tivesse um superpoder, qual seria e por quê?
. Me conta como é tua rotina horas antes de um encontro do MEMOH.
. E quando o encontro termina, o que você costuma fazer antes de dormir?
. O que mais te irrita ao preencher um formulário?
. Tenta lembrar de um dos encontros que você gostou MUITO, que você considerou um encontro F**A. O que você sentiu ou pensou naquela noite?
. O que você considera como um “debate profundo” sobre masculinidades?
. Que tipos de perguntas te desestimulam a preencher um questionário?

Em seguida usamos CNV novamente e seus 4 componentes:
1. observação
2. sentimentos
3. necessidades
4. pedidos
Vamos nos manter somente nos 3 primeiros por ser o que precisamos agora (observar as respostas, apoiá-los a nomear os sentimentos envolvidos se tratando da satisfação dos encontros/preenchimento dos formulários e quais necessidades próprias e do grupo por trás dessas emoções e sentimentos).

Após ouvir as respostas das entrevistas, trouxemos duas listas: uma com nomes de sentimentos/emoções e outra com necessidades humanas universais zelando para que esse recurso não fosse um limitante e sim um norte de exploração e expansão do vocabulário de sentimentos e necessidades. Com o propósito de estreitar os dados e sintetizar a essência obtida com as entrevistas, escolhemos usar o método Zen Voting (acredito eu, criado pelos times de Design Sprint da Google) para gerar uma votação mais tranquila e democrática de maneira a garantir que todos pudessem fornecer as suas opiniões e ideias.

Nuvem de sentimentos e necessidades recorrentes no Zen Voting.

Quando nomeamos sentimentos, podemos compreender quais as necessidades por trás dessas emoções: se uma tarefa é realizada, existe um sentimento envolvido durante a ação e uma necessidade por trás disso mas o mesmo acontece quando uma tarefa não é realizada porque há uma necessidade que também deseja ser atendida.

Após essas dinâmicas, deduzimos/julgamos que:
. os caseiros se sentem vulneráveis se tratando dos encontros porque têm necessidade de pertencimento e fazer parte do grupo (comunidade);
. os caseiros se sentem distraídos quando se trata do não preenchimento dos formulários porque têm necessidade de descanso após cuidarem da realização e bom andamento dos encontros.

E voltamos para a CNV: algo de extrema importância nessa prática é estimular a diferença entre FATO e JULGAMENTO. Então, questionei:

“Que fatos vocês presenciaram que confirma a necessidade de pertencimento sendo cuidada a partir da vulnerabilidade?”

E a resposta foi praticamente unânime: diversidade de falas! Quando esses homens encontram nos grupos um espaço seguro para se vulnerabilizarem sem julgamentos, eles podem ser ouvidos mas também ouvir diferentes contextos/realidades, tomando consciência de que não estão sós e cuidando de sua necessidade de pertencimento.

Chegamos então em um insight híbrido (termo que nasceu na IDEO, empresa referência no Design Thinking): talvez fosse necessário que vulnerabilidade e diversidade fizessem parte de nossas métricas. Mas antes de ter certeza sobre isso, foi necessário conferir como as métricas atuais do projeto eram construídas.

“Insights híbridos nos permitem incorporar histórias aos dados, dando vida aos números e unindo o ‘por que’ com o ‘o que’ ” — Tom & David Kelley

Ao final de cada encontro, os participantes (de forma anônima) preenchem o formulário de feedback.

Até aqui, a única forma de deduzirmos que um encontro foi um bom encontro era por meio das perguntas acima, mas quem entende minimamente de UX (user experience) sabe que o usuário diz uma coisa mas faz outra. Criamos então um índice de satisfação que demos o nome de CIR (contribuição + impactar + repensar), uma média das notas obtidas e que utilizamos para quase tudo: como comparativo entre o mês vigente e o mês anterior, como pontuação entre os grupos e até como indicador de aprovação.

Mas sempre tem um “mas”…

Vários encontros recebiam CIR 4,7 mas se mantinham em discussões rasas ou encontros que recebiam CIR 4,3 mas eram incrivelmente profundos e proveitosos (sendo 1 para baixa satisfação e 5 para alta satisfação). Foi nesse processo de observação empírica que encontramos a falha em nossas métricas: se vulnerabilidade e diversidade de falas fazia a diferença para criar encontros atraentes, isso definitivamente precisava ser adicionado em nossa cultura, avaliações e relatórios.

Chegamos então ao 4º componente da CNV: pedir exatamente o que precisamos.

A Escala de Likert também é um sistema de mensuração utilizando respostas variantes de um extremo ao outro de forma comparativa, mas é mais abrangente possibilita medir atitudes e comportamentos. Os itens de Likert também variam entre 3, 5, 7 e 9 (sempre ímpar), mas o usual é apresentar cinco opções que variam entre o nada provável até o extremamente provável. É utilizado exatamente nesta ordem para que haja coerência e consistência, pois podemos observar muitos questionários que a cada questão apresentam as questões em uma ordem. Na Escala de Likert, é importante definir rótulos adequados para as opções. Alguns exemplos:

  • Concordância: Discordo totalmente, discordo, indiferente, concordo, concordo totalmente;
  • Qualidade: Péssimo, regular, indiferente, bom, ótimo;
  • Uso, aplicação: não aplico/uso, indiferente, aplico/uso;
  • Frequência: Nunca, quase nunca, às vezes, quase sempre, sempre.

Já nas perguntas abertas, podemos resgatar o 4º componente da CNV: pedidos. Essa prática nos apoia a expressar exatamente o que queremos de forma mais objetiva e compassiva.

E os resultados?

Bem, esse era o nosso entregável dentro do período de 3 meses: investigar processos e apresentar soluções. Agora iremos implementar e testar tudo que identificamos nesse percurso e me comprometo a voltar aqui para seguir documentando e te atualizar sobre os próximo passos. Portanto, até já! :)

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