A Sociedade do Medo
A pandemia do Coronavírus proliferou uma série de sentimentos na sociedade. Os mais notáveis foram insegurança, impotência e desproteção. Mas outra emoção tem se tornado o mote da nova rotina social: o medo
SÃO PAULO, BRASIL — Ao completar dois anos e quatro meses, a pandemia do Coronavírus atinge um estágio em que está prestes a entrar na primeira infância. Nesse tempo, a Covid-19 chegou a acometer, no mundo, um total de 485.324.712 pessoas, de acordo com dados de março de 2022 da Universidade Johns Hopkins. No recorte brasileiro, o Sistema Único de Saúde (SUS) contabiliza, no período, um montante de 659.241óbitos.
Mesmo com uma totalidade superior a 10 bilhões de doses aplicadas da vacina contra a Covid-19, um número maior até mesmo do que a população mundial, que hoje está em 7,9 bilhões de indivíduos, a pandemia segue transformando o dia a dia das pessoas. Uma dessas mudanças é percebida no sentimento de medo.
Seja o medo de assumir uma normalidade a partir da vacina ou o medo do contágio da doença, essa emoção está presente em todas as esferas da sociedade global. No que tange a psicologia comportamental, o medo é uma sensação desagradável que será desencadeada por uma percepção de perigo real ou imaginário.
Por essa razão, ao mesmo tempo em que diante do isolamento social propagado pelas políticas públicas para bloquear o avanço da Covid-19 algumas pessoas tentaram conciliar e repor a carência afetiva de outras maneiras que não pelo contato físico, outras acabaram se distanciando mais.
De acordo com a psicóloga comportamental Carolina Montanieri, existem pessoas que optam por prolongar o distanciamento porque o medo acaba afetando suas ações de tal forma que as impede de lidar com a realidade. “Isso pode acontecer por falta de habilidade social, pela ausência de rede de apoio ou, ainda, por elas já terem uma postura mais frágil”, explica.
Não por acaso, a pandemia evidenciou distintas posturas que foram adotadas pelos indivíduos. Uma delas consiste no isolamento social movido pelo excesso de medo sentido ainda hoje por um grupo restrito de pessoas. Ele é caracterizado por não querer mais frequentar locais públicos e, principalmente, onde haja aglomeração.
Outro comportamento notado é aquele em que se consegue assumir a normalidade da vida, mas respeitando todos os protocolos de segurança e proteção contra o vírus e a proliferação do mesmo. Contudo, existe uma atitude tomada por outra parcela social que é ainda mais desprendida.
Esse terceiro grupo pode até ter certa consciência da realidade, mas vive sem medo e age como se o vírus não existisse. “Ainda bem que existem pessoas mais conscientes e que sentem empatia e respeito pelo outro, tendo responsabilidade e se unindo em benefício de todos”, pondera a personal friend Renata Cruz.
Esses laços sociais, que são estreitados por tais sentimentos de respeito e empatia, são tidos pelo sociólogo francês Émile Durkheim como a cola que nos une em sociedade. Segundo ele, se essa união estiver muito enfraquecida, a sociedade pode ruir. Em circunstâncias como a pandemia, portanto, os riscos de fragilização dos elos sociais são grandes e podem resultar no que o sociólogo definiu como um estado de anomia, de quebra das normas que regem a vida social.
Porém, Durkheim também apontou que são justamente em situações extremas, como guerras, que os vínculos sociais são reforçados. Nesse contexto, é imprescindível a diferenciação do que é comunidade e o que é sociedade, conceitos que, no campo da sociologia, possuem conotações diferentes.
Como o sociólogo alemão Ferdinand Tönnies ressaltou, a comunidade se constitui num grupo de pessoas que possuem relações de proximidade, podendo compartilhar uma religião, um território, atividades econômicas ou, ainda, laços de parentesco.
A sociedade, por sua vez, diz respeito a um agrupamento social mais amplo que envolve indivíduos dispersos, ainda que ligados por sistemas de leis e valores. “Como as ciências sociais enxergam hoje a sociedade como algo menos homogêneo do que supunha Durkheim, como marcada não apenas pela coesão, mas também por conflitos, penso que riscos de anomia coexistem, em situações como a pandemia, com o reforço dos laços de solidariedade”, reflete o sociólogo Pedro Jaime, professor de sociologia do Centro Universitário FEI e ESPM. “Mas lembrando, com Karl Marx, outro autor clássico da sociologia, que a pandemia também evidenciou, e até mesmo aprofundou, as desigualdades de classe que marcam as sociedades”, contrapõe.
Mesmo sendo dividida entre desigualdades de classe e a coexistência da anomia com a solidariedade, o fato é que a sociedade como um todo foi atingida pela pandemia. Contudo, é inegável que as crianças formam a parcela populacional mais afetada, principalmente em virtude da restrição do contato físico.
Para a psicóloga clínica Patrícia Rivoli Rossi, é importante conversar constantemente com as crianças a respeito disso e informá-las de que a proximidade física e a conexão com as pessoas, incluindo os familiares e os amigos, fazem bem para a saúde, mas que o presente momento pede que cuidados sejam tomados para promover a proteção contra a Covid-19. “A geração mais nova está vivendo a restrição da proximidade em sua fase de desenvolvimento, ou seja, durante o período em que ela está aprendendo como o mundo é”, explica. “Deixar de conversar pode fazer com que os pequenos entendam que a proximidade física é dispensável”, ressalta.
Para que a população, em um cenário hipotético de outra pandemia, não sofra da mesma forma que durante o conflito contra a Covid-19, os governantes das nações terão de se mostrar interessados em cuidar do seu povo, passar as informações corretas e seguir aquilo que for solicitado pelos órgãos oficiais.
Se assim for, a biomédica Ana Almeida acredita que as pessoas terão mais acesso e visão de quais os cuidados são necessários e do quão grave é certa doença. “O ideal seria que, além de toda essa preocupação em passar as informações corretas, fossem realizadas mais ações na televisão e na internet, principalmente por parte do governo e pessoas da mídia, com o intuito de passar as informações corretas vindas de apenas um único local”, idealiza. “Assim não teríamos tantos desencontros de dados”, conclui.
No que tange o Brasil, portanto, para que a população atinja uma boa preparação para o enfrentamento de uma nova pandemia, será preciso, primeiro, que os representantes políticos defendam o projeto de sistema integral igualitário e universal de saúde ao mesmo tempo em que se comprometam com a melhoria do mesmo.
Segundo o psicólogo Bruno Henrique Cardoso, também serão necessários profissionais e pesquisadores críticos, comprometidos com a veracidade da informação e com um modelo interdisciplinar de formação que auxilie tanto na produção e divulgação científica quanto no combate às informações falsas. “Por hora, não sinto que atendemos a esses requisitos e tampouco que estamos preparados para uma nova pandemia”, observa.