ATO 1
Este primeiro ato de uma peça radiofônica é o meu trabalho resultante de um dos vários workshops do Programa Novos Autores do SESI e do British Council do qual fui aluna, com o dramaturgo britânico Chris Dolan e o produtor da BBC David Ian Neville, em 2009
(Cozinha da casa de João. Ouve-se estática, chiado. O pai de João coa o café enquanto sintoniza o rádio).
RÁDIO: “Bom dia Povo de Vacaria! O galo já cantou, o sol já raiou, o boi está no pasto! É hora de trabalhar!” (entra música caipira). (João entra na cozinha).
JOÃO: — Pai.
PAI: — Ô, bom dia, fio! (alegre, pai desliga o rádio. João puxa uma cadeira e senta-se à mesa). O café tá prontinho, ó! (serve João). Dormiu bem?
JOÃO: — Mais ou menos.
PAI: — Ô, fio, hoje é o dia do seu teste, você tem de estar descansado.
JOÃO: — Sonhei com o Tunico, pai.
PAI (preparando o pão para João): — Mas foi sonho bom, fio?
JOÃO: — Foi estranho, nem bom nem ruim.
PAI: — Ah, fio, então esquece… eu mesmo não entendo nada de sonho, nunca sonhei, durmo um sono
preto, sono pesado de boi.
JOÃO (terno): — Senta pai, pára de andar pra lá e pra cá, vem, come.
PAI: — Tô preparando um café reforçado pra você, fio… Que horas são?!
JOÃO: — Quase seis…
PAI (liga o rádio novamente, depressa): — Escuta só, fio, escuta só, hi, hi…
RÁDIO: “A próxima música é dedicada ao João da Fazenda Cachoeira! ‘João, seu pai te deseja muita sorte na sua prova hoje!’. E nós aqui da Rádio Clube de Vacaria também! Toda a cidade está com você João, nosso futuro veterinário! Boa sorte no Vestibular em São Paulo!”. (começa música caipira). (João levanta-se abruptamente e desliga o rádio).
PAI: — Ô, fio, não gostou da surpresa que o pai preparou pra você?
JOÃO: — Pai, e se eu não passar no Vestibular?
PAI: — Não tem nada não, fio, você volta pra fazenda e ajuda o pai a cuidar do gado sem diploma mesmo.
JOÃO: — Como peão, não como veterinário.
PAI: — Ô, fio, seu pai foi peão a vida toda e sempre foi feliz.
JOÃO: — Pai, eu sei, eu também sempre fui feliz aqui na fazenda… mas tudo mudou depois do acidente do Tunico… Parece que eu estou vivendo uma vida que não é minha…
PAI: — Fio, eu já estou velho, logo não presto mais, feito boi que não consegue nem puxar o arado…
JOÃO: — Pai, que é isso… você é forte como um touro!
PAI: — Fio, o tempo já passa mais rápido pra mim, mas todo o tempo que eu galopei foi meu, foi minha vida.
JOÃO: — Pai, todo esse tempo, mais rápido ou mais lento, nós vamos passar juntos, e eu sempre vou cuidar do senhor. Você vai ver! Eu vou passar no vestibular, vou estudar e me tornar doutor!
PAI: — Doutor de bicho! Hi, hi!
JOÃO: — Doutor de bicho! Há, há, há!
PAI: — Pra cuidar do seu pai tá bom, eu e boi é quase a mesma coisa, hi, hi!
JOÃO: — Pai!
PAI (ficando sério): — Fio… não esquece de falar com o seu Anastácio não…
JOÃO: — Eu sei, pai, eu passo lá na sede da fazenda depois… ou então eu esqueço…
PAI: — Seu Anastácio foi muito bom com você, fio, cuidou do seu estudo, te colocou em escola boa.
JOÃO: — A mesma escola onde o Tunico estudava.
PAI: — Vai, fio, vai agora que logo você tem que ir pra rodoviária. Eu vou te esperar lá no jipe, fio, vai…
JOÃO: — Até mais, pai! (João sai, cruza o pasto e chega à casa de seu Anastácio. Encontra-o na varanda).
Seu ANASTÁCIO (bonachão): — Ô, Joãozinho, achegue-se!
JOÃO (sério): — Bom dia, seu Anastácio.
Seu ANASTÁCIO: — Hoje é o grande dia do nosso futuro veterinário-chefe da fazenda Cachoeira!
JOÃO: — Seu Anastácio, eu dei pela falta do boi Trovão agora quando cruzei o pasto.
Seu ANASTÁCIO: — Ah, aquele boi velho!… Já foi Trovão, mas já não era nem mais um peido! Há, há, há! Virou sabão! Há, há, há! Não servia mais nem pra puxar o arado!… E por falar em boi… eu escutei a mensagem no rádio… Seu pai é um sujeito mole mesmo, cheio de ruminações, parece mais boi do que gente!
JOÃO (irritado, mas contido): — Eu gosto do jeito do meu pai, seu Anastácio.
Seu ANASTÁCIO: — Eu também gosto muito do seu pai, Joãozinho… peão antigo, do tempo em que o meu pai ainda era vivo e mandava em tudo isso aqui.
JOÃO: — E foi o meu pai que ensinou o senhor a montar, quando criança.
Seu ANASTÁCIO: — Foi… ensinou a mim e depois ensinou ao Tunico. Ô guri pra gostar de boi, cavalo…
JOÃO: — O Tunico montava melhor do que muito peão experiente!
Seu ANASTÁCIO: — Montava… Ele gostava mais de lidar na fazenda do que de estudar. E eu sonhava diploma e carreira pra ele. Já você, Joãozinho, você sempre gostou de estudar, você é mais parecido com o meu sonho…
JOÃO: — Eu também gosto de boi, cavalo…
Seu ANASTÁCIO (exaltando-se um pouco): — Mas não monta! O Tunico não saía do lombo do cavalo! Ele parecia mais filho do seu pai do que meu filho! Parecia mais um peão que um fazendeiro!
JOÃO: — O Tunico era um filho desta terra…
Seu ANASTÁCIO: (exaltando-se muito): — E foi na terra que ele se acabou! Eu me lembro, eu sempre vou me lembrar! Inventou de montar boi, ir pra rodeio, e pra começar logo o touro mais bravo!… Eu lembro do Tunico caído na terra, o chifre do boi cheio de terra cravado no coração do Tunico, eu… (interrompe-se).
JOÃO (entristecido): — Eu… também sinto falta do Tunico, seu Anastácio. Ele era meu melhor amigo.
Seu ANASTÁCIO: — Eu não! Pra todo lado que eu olho só vejo peão, porque mais um me faria falta! E você não me volte aqui peão, só me apareça aqui doutor, doutor de bicho!
JOÃO (contendo-se): — Seu Anastácio, eu tenho de ir agora, o jipe já deve estar me esperando.
Seu ANASTÁCIO (mais calmo): — Está sim, eu passei as ordens do dia ao capataz bem cedo, vamos lá.
(Os dois caminham juntos até o jipe, onde o capataz Natércio os espera).
Seu ANASTÁCIO: — Natércio, todas as minhas ordens já foram cumpridas?
NATÉRCIO: — Sim, seu Anastácio.
JOÃO: — Onde está meu pai? Ele disse que me esperaria no jipe!
Seu ANASTÁCIO: — O seu pai teve de levar o gado para o pasto alto, Joãozinho, onde não caiu geada. O trabalho não pode esperar, você sabe…
JOÃO: — Mas… o senhor poderia ter enviado meu pai ao campo depois da nossa despedida!
Seu ANASTÁCIO: — É… mas você sabe, Joãozinho, ele não é mais um jovem… tem de começar o trabalho mais cedo para voltar ao anoitecer… Seu pai já foi um trovão, mas hoje ele não é nem… uma brisa! Há, há, há!…
(João entra no jipe e bate a porta. Natércio liga o jipe e parte, as risadas de Seu Anastácio ao fundo. Conforme o jipe se afasta, as risadas desaparecem e ouve-se o toque do berrante).
JOÃO: — Pai! (João levanta-se no jipe e avista seu pai sobre uma colina tocando o berrante). Pai! Eu volto logo! Me espera! (Soa o berrante).