Escrita cinematográfica: da ideia ao roteiro — Tiago Bezerra

A ESCRITA CINEMATOGRÁFICA: DA IDEIA AO ROTEIRO.

Tiago Bezerra
Tiago Bezerra

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A escrita cinematográfica tem o roteiro como elemento-base, indispensável a qualquer obra audiovisual, seja cinema, televisão ou até mesmo publicidade. Mas o que é um roteiro? É uma escrita desenvolvida para o cinema. Um tipo específico de literatura construída como guia para que o drama seja filmado. Segundo Field (2001, p.11), “roteiro é uma história contada em imagens, diálogos e descrições, localizada no contexto da estrutura dramática”. Seja ficção, documentário, comercial ou artístico, o roteiro é parte fundamental do processo fílmico e de todo o processo de criação cinematográfica.

“O filme é um meio visual que dramatiza um enredo básico; lida com fotografias, imagens, fragmentos e pedaços de filme: um relógio fazendo tique-taque, a abertura de uma janela, alguém espiando, duas pessoas rindo, um carro arrancando, um telefone que toca”. (FIELD, 2001)

Contudo, antes do drama ganhar forma de roteiro, é preciso haver uma ideia, uma história. No cinema, essa história antes do roteiro é chamada de Argumento. Trata-se da ideia escrita em forma de uma história feita para o cinema que em seguida será transformada em cenas, diálogos, ações. Ou seja, o Argumento é uma história — similar a um conto literário — que será estruturada e formatada em roteiro cinematográfico.

Porém, para se chegar ao Argumento, é preciso passar pelo processo de ter a ideia. E não se engane acreditando que ideias são dons divinos ou algo similar. Ideias surgem de um processo bastante árduo. Ter ideias é possível, e a forma de se chegar a elas pode ser desenvolvida independentemente da aptidão individual.

A ideia no contexto da criatividade, muitas vezes é associada à inovação, invenção. E inovar requer processo, método, aplicação de técnicas, seja para se criar objetos ou novas formas de realizar algo. Atribui-se a Albert Einstein uma forma lúdica de definir a criatividade: “é a inteligência se divertindo”. Mas para Vernon (1989), a criatividade está ligada à capacidade de produção de ideias, descobertas artísticas, científica ou tecnológica.

“A criatividade é a capacidade da pessoa para produzir ideias, descobertas, reestruturações, invenções, objetos artísticos novos e originais, que são aceitos pelos especialistas como elementos valiosos no domínio das Ciências, da Tecnologia e da Arte. Tanto a originalidade como a «utilidade» como o «valor» são propriedades do produto criativo, embora estas propriedades possam variar com o passar do tempo”. (VERNON, 1989, p. 94)

Um processo criativo amplamente difundido é o Brainstorm que muitos profissionais que trabalham diretamente com desenvolvimento de ideias traduzem para o português como Tempestade de Ideias. É um método muito comum em agências de publicidade, escritórios de design e entre roteiristas.

Em uma entrevista para um programa de TV, um dos Diretores do canal de Youtube Porta dos Fundos disse que a escolha dos roteiros que são produzidos pelo canal funciona assim: todos os roteiristas se reúnem com o Diretor de Cena e equipe de produção. Nessa reunião, as ideias são apresentadas “sem filtro”. Ou seja, sem ainda terem sido submetidas a critérios. Ali, todos os envolvidos opinam e chega-se a uma ideia escolhida que será produzida.

Em Agências de Publicidade, o Brainstorm é feito, às vezes em dupla, outras em grupo. Várias ideias são ditas, novamente “sem filtro”, e entre todas, uma é eleita como a mais adequada para o momento mercadológico da marca do anunciante (cliente).

Com isso, percebe-se que criar, ter ideias, enfim, a criatividade não é privilégio das artes, nem algo inalcançável ou dom divino. Afinal, Agências de Publicidade não sobreviveriam todos esses anos contando apenas com a fé no dom divino da criação de ideias. Mesmo o Processo de Criação sendo considerado um mistério por muita gente, existem métodos e formas para se chegar a ideias — com o perdão pela repetição fonética — ideais.

“Algumas vezes acreditei — ou melhor, tive a ilusão de estar acreditando — que ia descobrir de repente, o mistério da criação, o momento exato em que uma história surge. Mas agora acho cada vez mais difícil que isso aconteça”. (MÁRQUEZ, 1997, p.10)

Em seu livro “Como contar um conto”, o escritor Gabriel Garcia Márquez relata momentos do processo criativo de uma Oficina de Criação de Histórias/Roteiros que dirigiu. Alguns de seus relatos que são contados de maneira lúdica e, de certa forma, romântica são fases comuns em um processo criativo.

“Vi essa foto maravilhosa e a primeira coisa que me veio ao coração foi que ali havia uma história. Uma história que, claro, não é a morte do imperador, a que a fotografia está contando, mas outra: uma história de meia-hora. Fiquei com essa ideia na cabeça, e ela continuou lá, dando voltas. Já eliminei o fundo, me desfiz completamente dos guardas vestidos de branco, das pessoas… Por um momento, fiquei unicamente com a imagem da imperatriz debaixo da chuva, mas logo descartei também. E então, a única coisa que me ficou foi o guarda-chuva.” (MÁRQUEZ, 1997, p.10–11)

Neste relato, Márquez (1997) conta como chegou a uma ideia a partir de uma fotografia que encontrou enquanto folheava a revista Life. Nota-se que há um momento de observação, brainstorm, incubação, descarte e, por fim, a escolha. Um método que, contado nas palavras de um grande escritor, ganha ares até mesmo misteriosos. Mas quando todo o processo é racionalizado, percebe-se que há um caminho que não necessariamente é uma fórmula, mas uma forma de se chegar à ideia.

O processo descrito por Márquez (1997) tem relação direta com as primeiras análises cognitivas da criatividade. Helmholtz e Poincaré, entre o fim do século XIX e princípios do século XX trataram o pensamento criativo como o resultado das etapas: preparação, incubação, iluminação e verificação.

E devido à semelhança do Conto Literário com o Argumento de Cinema, pode-se afirmar que o processo criativo utilizado por Garcia Márquez, pode ser usado na hora de criar uma história para o cinema. Uma história que depois será formatada em Roteiro Cinematográfico. Um exemplo da semelhança entre Contos e Argumento é a carreira do escritor Stephen King, com inúmeras obras adaptadas para a grande tela.

Contudo, diferente do Conto, que é para a literatura o fim do processo de escrita, a obra em si; o Argumento é para o cinema o início da obra audiovisual. Depois das ideias passarem por todo o processo criativo e serem transformadas em Argumento de Cinema, essa história precisa de uma estrutura fílmica para ser um Roteiro Cinematográfico.

O Roteiro pertence a um tipo de literatura estruturada para a imagem. É uma história para ser filmada, o que faz do roteirista é um escritor diferente, peculiar na forma da escrita. Para entender melhor, quem escreve um roteiro se apropria de técnicas como a Imagem Acústica apontada pelo roteirista Jackson Saboya como um recurso muito importante na hora de transformar um Argumento em Roteiro. Segundo SABOYA (1992, p.20), “A imagem acústica é a imagem criada pela nossa imaginação, depois de ouvirmos um som que nos ‘ligue’ a um referencial de tempo, modo, espaço ou ambiência”.

Para o roteirista, o universo verbal e o não verbal possuem a mesma importância. Portanto, cabe ao escritor de roteiros criar imageticamente. Ou seja: estruturar toda a narrativa de modo que ela se transforme em cenas visuais plásticas em movimento. Por isso a estrutura do Roteiro Cinematográfico é dividida em cenas, texto, diálogos, ruídos do ambiente, sons, silêncio. Tudo isso criado e pensado para ser filmado. O que quer dizer: imagem em movimento.

Com o objetivo de auxiliar os roteiristas, programas como Celtx, Final Draft, entre outros foram criados. Com esses softwares é possível estruturar todo o roteiro em Scene Heading, Action, Character, Dialog, etc. Porém, é muito importante para o roteirista ter em mente na hora de criar, que o Roteiro Cinematográfico não é apenas estrutura. Contudo, dominar a linguagem universal do roteiro é indispensável para que o filme seja compreendido como projeto audiovisual.

Quanto à estrutura, existem algumas regras, aspectos técnicos fundamentais para a construção do roteiro cinematográfico. O modelo Master Scenes é a formatação reconhecida e utilizada mundialmente. Para ampliar a compreensão, veja o exemplo do roteiro do filme brasileiro, “Cidade de Deus, 2001” escrito pelo roteirista Bráulio Mantovani, baseado no romance de Paulo Lins.

Trecho do Roteiro do filme Cidade de Deus, de Bráulio Mantovani, baseado no romance de Paulo Lins

No cabeçalho da “Imagem 01”, temos a descrição EXT. que significa que a sequência será externa. Em seguida, “CASA DE ALMEIDINHA” que representa o espaço físico, a ambiência em que se passa as principais cenas da sequência. Por fim, a descrição “DIA” se refere ao tempo (horário) da sequência.

Logo abaixo do cabeçalho, o roteirista começa a dividir a história em cenas. No exemplo da “Imagem 01”, a primeira cena é descrita da seguinte maneira: “Abrimos com a imagem de um FACÃO sendo afiado”. Repare que o texto é direto, sucinto e não (definitivamente não) indica planos, como CLOSE UP, Primeiro Plano. Esta é uma observação muito importante. O detalhamento de planos acontece em uma outra etapa, chamada de decupagem ou roteiro técnico. Normalmente feita pelo Diretor.

Ainda seguindo com o exemplo do roteiro do filme Cidade de Deus, o roteirista escreve cada cena de forma resumida e separadas em parágrafos curtos. É crucial que o roteiro tenha uma leitura rápida, dinâmica e, o mais importante, clara. Cada cena precisa ser compreendida em sua totalidade. Uma forma de garantir que isso aconteça é utilizar-se sempre de textos descritivos, evitando descrever emoções de forma subjetiva e metafórica. Seja direto e, preferencialmente, descreva ações que representam emoções e não o contrário.

Trecho do Roteiro do filme Cidade de Deus, de Bráulio Mantovani, baseado no romance de Paulo Lins

Outro ponto importante na estruturação do roteiro são os diálogos. A personagem que tem fala na cena aparece logo depois da descrição da cena, centralizada em CAIXA ALTA. O texto que será dito, aparece em seguida, também centralizado, mas sem caixa alta. Também é comum que o nome da personagem apareça em CAIXA ALTA quando citada pela primeira vez na descrição da cena, assim como descrição de SONS na cena. Veja como exemplo “Imagem 02”.

Esses são alguns dos principais aspectos técnicos que o roteirista precisa conhecer para construir e estruturar um roteiro de cinema. Programas como Celtx e Final Draft já oferecem em suas configurações as devidas opções de formatação. Mas é importante conhecer todas antes para saber a hora de usar cada uma.

A peculiaridade literária do escritor de roteiros não tira a importância de sua obra como algo literário também, uma obra inspiradora. Portanto a mesma responsabilidade que um escritor literário tem na hora de preencher sua história com passagens ricas, o roteirista tem na hora de construir o drama do seu protagonista e de todas as personagens envolvidas na trama, bem como suas resoluções.

A solução então é buscar na observação do dia a dia uma história, mesmo que ela esteja no guarda-chuva em uma fotografia de um enterro. Depois de observar e descartar tudo que for óbvio, se distancie, mude de assunto, veja outras referências que nada tenham a ver o que foi pensado até agora. Deixe a ideia na incubadora para que nos próximos dias ela se revele para você mais madura. Aí sim, reinicie o processo criativo dando significados relevantes e criativos a sua história. E lembre-se, mesmo que Einstein não tenha dito, a criatividade é mesmo a inteligência se divertindo.

REFERÊNCIAS

FIELD, Syd. Manual do roteiro: os fundamentos do texto cinematográfico. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

VERNON, Philip Ewart. (1989). The nature-nurture problem in creativity. In J. A. Glover, R. R. Ronning & C. R. Reynolds (Eds.), Handbook of creativity. New York: Plenum Press.

MÁRQUEZ, Gabriel Garcia. Como contar um conto. Rio de Janeiro: Casa Jorge Editorial Ltda, 1997 3ª edição.

SABOYA, Jackson. Manual do Autor Roteirista. Técnicas de roteirização para a TV. Editora Record. (ISBN 85–01–03874–1). Rio de Janeiro, 1992

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