De inimigo público a herói nacional — Carlos Marighella

Jéssica Xavier Marques
Tiro de Letras
Published in
6 min readNov 19, 2021

Os significantes que norteiam os atores sociais desta história mudam muito dependendo de quem a recebe. Poeta, escritor, político, guerrilheiro, inimigo número 1 do Brasil de 1963 a 1969 — ano de sua morte — Carlos Marighela divide opiniões entre a crítica e a população brasileira.

Marighella (1929)

O baiano nasceu em 5 de dezembro de 1911. Filho da negra livre Maria Rita do Nascimento Marighella e do branco metalúrgico Augusto Marighella, neto de escravos sudaneses e imigrantes, o menino começou a ler desde muito cedo, um aluno memorável em uma das escolas que frequentou .

Em entrevista ao Portal Imprensa, Mário Magalhães, autor da biografia “Marighella: O guerrilheiro que incendiou o mundo”, conta que o poema escrito nas respostas de uma prova de física criou fama para o poeta baianinho.

Foto: Wikipedia apud Café História

Marighella cresceu e entrou para a faculdade de engenharia, mas continuou escrevendo versos “engraçados”, “críticos” e “devastadores”.

O curso de engenharia não durou muito tempo. Ainda em Salvador, ele abandonou a faculdade para se tornar um militante do Partido Comunista Brasileiro e, nesse mesmo período, saiu da capital baiana, se mudando para o Rio de Janeiro.

Já em 1937, por consequência da instauração do Estado Novo, Marighella foi preso pela primeira vez. Vivenciou a repressão em 1937 e, 19 anos depois, morreu na ditadura militar (1964–1969).

“Qual foi o instrumento dele quando preso? O poema.”

(Mario Magalhães)

Em 1945, após a morte de Getúlio Vargas e o fim do regime varguista, já no começo do período democrático, Marighella foi deputado federal pelo PCB da Bahia. Mas com o clima nascente da guerra fria, o partido comunista foi colocado na ilegalidade por Dutra e Marighella passou a atuar na clandestinidade novamente.

Marighella (à dir) com a sobrinha Iza no ombro, ao lado da companheira Carla Charf e do resto da família Grinspum em 1962 — Folha de São Paulo Ilustrada

No início de 1960, a América Latina como um todo passou a viver as divergências politico-ideológicas da guerra fria, principalmente após o avanço da revolução cubana de 1959. A partir daí, no contexto histórico, surge o foquismo, uma teoria revolucionária elaborada por Che e Regis Debray na segunda metade da década de 1960.

O termo “foquismo” deriva da palavra “foco”.

Essa teoria advogava a instalação de vários focos de guerrilha nas zonas rurais dos países latino-americanos, de modo que esses focos pudessem ganhar a adesão das massas, destruir ou submeter o poder das forças armadas e constituir um governo revolucionário de caráter socialista.

Para Guevara e Debray, era necessário começar com a guerrilha por meio da criação de “focos” no meio rural, como bem expõe o militar e historiador Alessandro Visacro:

[…] Esse foco deveria ser instalado em áreas remotas e inacessíveis, que proporcionassem, além de liberdade de ação, locais de homizio, redutos e “santuários” aos rebeldes. Ações urbanas, desempenhariam um papel de apoio, meramente secundário. O êxito da guerrilha, progressivamente, minaria o poder do Estado, atrairia a atenção da mídia e o apoio popular, permitindo-lhe avançar sobre as áreas ainda controladas pelas forças armadas. ²

Visacro observou ainda que o foquismo:

[…] forneceu a ilusão de uma alternativa revolucionária viável a curto prazo, pois dispensava o lento amadurecimento de “condições objetivas”, o fortalecimento das organizações de massa ou a disseminação de uma “consciência revolucionária” em escala nacional. A luta armada, desencadeada de imediato, sem o inchado aparato partidário ou a letargia da burocracia sindical, tornar-se-ia a grande força propulsora da revolução política e da transformação social.³” ¹

Capa da revista Veja de 1969 — “grande apreciador de batidas de limão”

Em maio de 1964, após o golpe militar, Marighella foi baleado e preso por agentes do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) dentro de um cinema, no Rio de Janeiro.

Por decisão judicial, o “guerrilheiro subversivo” foi libertado em 1965 e, no ano seguinte, avesso à postura que o PCB adotou no Brasil, optou pela luta armada contra a ditadura e saiu do partido.

Em 1967, o revolucionário baiano fundou a Ação Libertadora Nacional (ALN) e em 1969 escreveu o Manual do Guerrilheiro Urbano para servir de orientação aos movimentos revolucionários.

Cena do Filme Marighella, baseado na biografia escrita por Mario Magalhães, dirigido por Wagner Moura com atuação de Seu Jorge no papel principal e preparação de elenco por Fátima Toledo.

“É o Brasil de hoje que torna Marighella ainda mais atual, goste-se ou não dele”

(Mário Magalhães)

No Brasil atual, após passar por uma intensa batalha burocrática, a cinebiografia do guerrilheiro Carlos Marighella, dirigida por Wagner Moura, teve sua estreia no dia 4 de novembro de 2021.

O longa é eletrizante e foi recebido com aplausos no Festival de Berlin de 2019. As críticas especializadas falam bastante sobre o modo como Moura escolheu dar foco às situações e às atuações dos personagens. Segundo alguns, a experiência no ambiente das salas de cinema produz uma catarse nos espectadores.

Para quem assistiu o filme, ficou claro; e essa parece ser a intenção do diretor: “fazer com que as pessoas experimentem a história”.

“Marighella é um filme para o cinema, para a sala de cinema. Eu fico triste toda vez que alguém me fala que viu o filme em casa, por um link pirata, porque esse filme é um filme feito para o cinema.”

(Wagner Moura)

Nós fizemos outro post sobre o filme Marighella. Nele, você vai encontrar algumas críticas de especialistas que falaram sobre a linguagem visual do filme e também sobre a forma como as gravações priorizaram a captação das reações do elenco com tudo o que os cerca “trabalhando de forma fascinante as conversões da cinebiografia tradicional.”

Clique aqui e confira!

Abaixo, deixamos a entrevista que o diretor Wagner Moura fez para o Roda Viva (TV Cultura) e as referências bibliográficas do material aqui organizado.

“Da infância na Bahia ao assassinato dele em São Paulo, o que ocorre é uma sucessão de fatos espetaculares de um homem que viveu principalmente para a ação. O livro que escrevi é uma biografia em que a ação ancora a narrativa.”

(Mario Magalhães)

E é essa narrativa — “ancorada pela ação” — que está sendo transmitida em 2021 nas telas dos cinemas de todo o Brasil. Na produção de um texto multimodal, articulando interpretações e seguindo firme no enfrentamento das dificuldades na divulgação, a estreia de Moura pretende nos inserir na experiência do discurso da luta armada dos revolucionários brasileiros.

REFERÊNCIAS:

¹FERNANDES, Claudio. Foquismo. In: Brasil Escola. Disponível em: <https://mundoeducacao.uol.com.br/historiageral/foquismo.htm> Acesso em: 09/11/2021

²VISACRO, Alessandro. Guerra Irregular: terrorismo, guerrilha e movimentos de resistência ao longo da história. São Paulo: Contexto, 2009. p. 143. apud FERNANDES, Claudio.

³Ibid. p. 143. apud FERNANDES, Claudio.

OLIVEIRA, Danilo. “É impossível ficar indiferente à epopeia que ele viveu”, diz biógrafo de Marighella. In: Portal Imprensa. Disponível em: <https://portalimprensa.com.br/noticias/livros/52904/e+impossivel+ficar+indiferente+a+epopeia+que+ele+viveu+diz+biografo+de+marighella> Postado em: 22/08/2012. Acesso em: 09/11/2021.

LICHOTE, Leonardo. Wagner Moura: “Falar de Marighella, que resistiu à ditadura, é falar dos que resistem no Brasil de agora”. In: El Pais. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/cultura/2021-11-02/wagner-moura-falar-de-marighella-que-resistiu-a-ditadura-e-falar-dos-que-resistem-no-brasil-de-agora.html> Acesso em: 09/11/2021.

LEAL, Bruno. “É o Brasil de hoje que torna Marighella ainda mais atual, goste-se ou não dele”. In: Café História. Acesso em: 10/11/2021.

Carlos Marighella. In: Memórias da Ditadura. Disponível em:<https://memoriasdaditadura.org.br/biografias-da-resistencia/carlos-marighella/>Acesso em: 10/11/2021.

OLIVEIRA, Joana. ‘Marighella’ na zona cinzenta entre cortes, problemas na Ancine e censura sob Bolsonaro. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2019/09/12/cultura/1568322222_654952.html> Acesso em 10/11/2021.

GHETTI, Bruno. “Marighella” é aplaudido pelo público em 1ª exibição no Festival de Berlim. Disponível em: <https://entretenimento.uol.com.br/noticias/redacao/2019/02/14/marighella-e-aplaudido-pelo-publico-em-1-exibicao-no-festival-de-berlim.htm> Acesso em: 10/11/2021.

KACHANI, Moris. A vida secreta de Marighella. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1808201109.htm> Acesso em: 10/11/2021.

FRAZÃO, Dilva. Carlos Marighella, Guerrilheiro político brasileiro. Disponível em:<https://www.ebiografia.com/carlos_marighella/> Acesso em:10/11/2021.

OLIVEIRA, Danilo. “É impossível ficar indiferente à epopeia que ele viveu”, diz biógrafo de Marighella. Disponível em: <https://portalimprensa.com.br/noticias/livros/52904/e+impossivel+ficar+indiferente+a+epopeia+que+ele+viveu+diz+biografo+de+marighella> Acesso em:10/11/2021.

--

--