O Corpo | Conto

Jota Oliveira
Tiro no Pé
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5 min readOct 1, 2021

Escrito por Jota Oliveira, “O Corpo” é baseado no conto homônimo de Diego Sampaio (LEIA AQUI). Escrito e publicado com a permissão de Diego Sampaio.

AVISO: VIOLÊNCIA FÍSICA, VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER E TENTATIVA DE FEMINICÍDIO.

O gato preto subiu na janela.

Com uma leve dor de cabeça, o homem alto olhou para o centro da sala ao notar o corpo. Próximo à porta, um dos sapatos da vítima. Da janela, o gato olhou para o homem concentrado no calçado. Marrom, sem salto, tipo social, encostava na poça vermelha. Pensou números. Trinta e oito? Quarenta? Quarenta.

— Já entendeu? — perguntou o gato.

Sem tirar os olhos do sapato, sentiu a boca seca.

— Só mais um pouco.

Quem mais calçaria quarenta?

O tempo se esgotava. Em sua mente, nada sobre a vítima, mas ele não tirava os olhos do sapato. Começou a compará-lo com os outros de sua memória. O calçado lhe era familiar, só não lembrava de onde. Parecia caro, confortável, brilhante demais. O dono deveria ser executivo.

Quem?

Nada.

Tique.

Um morto no tapete persa. O tapete era falso, ele se lembrava, e ninguém mais sabia. Contara aos amigos ter custado uma pequena fortuna em uma lojinha centenária. Mentira. No entanto, haveria um bafafá quando a cidade inteira soubesse do sangue na casa dos Lobato. Algumas semanas, pois logo o caso abafaria. Com o número certo, talvez, isso nem chegaria ao público. Para os Lobato, era assim em Forte do Lambari.

Taque.

Olhou ao redor, nada faltava. Quase todos os itens de decoração, inclusive os de família, estavam no lugar. Quase todos. O jarro verde e amarelo, de extrema importância monetária, estava em pedaços. Aquilo era avaliado em mais de seis dígitos! Preferia dois corpos no lugar do jarro.

— Merda.

— O que? — miou o felino.

— Nada. Preciso de mais tempo.

— Tique-miau-taque, amigo. Haha.

Irritado pelo gato se divertindo com a situação, o homem retomou o foco no corpo, depois, no jarro. Olhou com atenção e percebeu possíveis sinais de luta. Para começar, o jarro: quebrado, caído em direção à porta da cozinha. Depois, a disposição dos cacos, como se alguém tivesse escorregado ali. A terceira evidência estava nos braços da vítima: arranhados, como se atacado por unhas grandes. Unhas humanas. A quarta evidência, que só identificou depois de muito tempo, enrolava-se nas grossas mãos da vítima. Fios de cabelo.

— Tique…

— Calma.

— Esforce-se mais.

Respirou fundo.

Como os sapatos, as roupas não lhe eram estranhas. Camisa e calças sociais, cinto preto, terno caro. O rosto ele não via. De bruços, a vítima encarava a direção oposta a de seu observador. Entretanto, aquele pescoço também lhe era familiar. Uma corrente prateada reluzia timidamente. Vasculhou a memória em busca de pescoços e correntes, mas ele não era de olhar essas partes. Irritava-lhe o fato de se lembrar com facilidade de algumas coisas e não ter um pingo de memória sobre outras.

O cabelo, de um castanho escuro, tinha corte militar. Na parte visível, a de trás, da cabeça, um buraco com o diâmetro de um dedo. Quase não sangrava mais, tamanha era a poça ao redor do corpo.

Desde o início, o homem não se movera um centímetro sequer em qualquer direção. Temia se comprometer, contaminar a cena do crime com qualquer indício que pudesse pôr em cheque suas chances de resolução. A dor de cabeça retornou quando ele percebeu fungadas vindas da cozinha.

— Tem outra pessoa aqui?

— É claro — miou o gato. — O elemento final.

Uma nova tempestade de pensamentos lhe acertou um raio. Seria o culpado? Teria o indivíduo se arrependido e esperado ali para se entregar? Naquele momento, o sufocante desejo de resolver o mistério superava o medo.

— Está na cozinha — miou o animal de pelo preto.

Juntou os últimos cacos de coragem e, nada bravio, avançou para a cozinha. O cômodo estava à meia luz, e uma figura curvada ocupava uma das cadeiras. Cabisbaixa, uma mão na face enquanto a outra pendia segurando um atalho rápido para a morte esculpido em metal cromado, com o cano ainda quente.

Finalmente, um elemento da história que ele reconheceu num relâmpago. O conjunto único ali era composto por aquela camisola de estampa floral, o cabelo bagunçado, o rosto e o pescoço machucados. A mulher com quem dividira os últimos trinta e seis anos chorava e fungava de forma contida e elegante, como é de se esperar de alguém na sua posição. Ela nunca parava de chorar, isso sempre o irritava.

Já ia começar a romaria de indagações e gritos quando, no cruzar dos olhos com a mesa diante deles, vislumbrou um anel. Um anel que despertou uma informação essencial, desprezada até aquele momento, que saltou de algum canto escuro e esquecido da sua mente e lhe estourou atrás da cabeça. Novamente, a dor.

Viu o gato entrar pela porta da cozinha.

— Entendeu, não foi?

A fúria explodiu dentro do homem alto de pés largos.

— Vai se foder, gato preto desgraçado! Vai se foder você também, vadia!

O homem partiu para cima da mulher, suas mãos grandes avançando no pescoço. A briga começou, os gritos também. Os dois iam em direção à porta da cozinha com a sala. As unhas afiadas da mulher cortaram os seus braços, distraindo o agressor. Bastou. O homem tropeçou para trás, perdendo um sapato e caindo na sala. Na tentativa de afastar a mulher, empurrou o maldito jarro. Não ajudou. Ela não precisava ir até ele, a pistola calibre trinta e oito em suas mãos apontava diretamente para a cabeça do marido. Ele se virou para correr, mas…

— Vai se foder você, seu desgraçado filho da puta! — disse a mulher, apertando o gatilho.

O gato preto subiu na janela.

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Texto originalmente escrito para os desafios semanais do Coletivo Escambau. Reeditado e publicado neste Medium em 01 de outubro de 2021.

Diego Sampaio é dono do Quengaral, projeto literário aqui no Medium. Merece a sua atenção!

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Jota Oliveira
Tiro no Pé

Respiro, treino Pokémon e escrevo por aí. Várzea-grandense, leitor e antifascista. Redes: https://flow.page/tironope