OS MEDOS DE BRESSAN

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10 min readNov 27, 2020

No dia 29/11, o Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense comemora seu Tricampeonato da Copa Libertadores da América, conquistado em 2017. E o Projeto Tiro Livre conversou com um dos personagens dessa conquista, o zagueiro Bressan — com passagens também por Juventude, Flamengo, Peñarol/URU e, atualmente, jogando no Dallas/EUA.

A história que ele nos contou foi muito além da conquista na Argentina. E traz boas reflexões. Confira!

foto: @oclubefootball

Me chamo Matheus Simonete Bressanelli, conhecido como Bressan, e a história que vou contar não é sobre medo, nem sobre coragem. Também não é sobre fracasso, nem sobre glória. É sobre um pouco de tudo isso. É, talvez, uma fotografia da vida e das voltas incríveis que ela pode dar. É sobre tempestades e bonanças.

Nasci e cresci em Caxias do Sul/RS e “desde que me conheço por gente” gosto de futebol, desde muito pequeno. Me criei no Estádio Alfredo Jaconi, primeiramente como torcedor: meu pai me levava aos jogos do Juventude. Ele sempre foi um incentivador dessa paixão. E eu realmente adorava aquilo, o jogo, o clima, a atmosfera… Exceto pelos fogos de artifício. E aqui já começamos a falar de um grande medo da minha vida, talvez o primeiro. Sim, quando criança, eu morria de medo dos fogos de artifício. Por sorte, Seu Dorivaldo, meu pai, estava sempre lá comigo para amenizar o drama.

O tempo passou e comecei a jogar futebol de uma forma mais séria, indo além das peladas com os amigos. Meu foco principal era no futsal, mas acabei ingressando no futebol de campo também, no próprio Juventude. E não foi fácil: a transição do futsal pro futebol de grama não é tão simples. Comi poeira por um bom tempo. Até que chegou o dia em que desisti. Aos 12 anos, comuniquei aos meus pais que não iria mais treinar no Juventude. Cansei. Dona Marilda se preocupou também, mas a mãe não tinha todo aquele apreço pelo futebol… Foi o pai quem mais sentiu pela notícia.

Ele foi ao meu quarto antes de sair para trabalhar, sentou-se ao meu lado e perguntou se eu não gostava de futebol. Obviamente, respondi que sim. Então perguntou se eu não queria ser jogador de futebol. Também respondi positivamente. Aí ele começou a me explicar que, se esse era de fato meu sonho, teria que passar por essa transição, do futsal para o futebol, bem como por muitas outras dificuldades. Me disse que os momentos ruins faziam parte do pacote e que em toda caminhada os dias difíceis se fazem presentes. Naquele momento, caiu minha ficha. Seu Dorivaldo, em um bate-papo rápido e simples, me fez perceber que eu queria mesmo seguir o sonho de me tornar um jogador de futebol.

Talvez minha hesitada inicial tenha sido fruto de uma criação muito tranquila, classe média, sem ao menos precisar sair da minha cidade para treinar… Muito diferente da realidade da maioria dos meninos que buscam esse sonho. Então, nas primeiras dificuldades, já achei muito ruim. Mas, além do papo com o pai, minha ficha caiu mais ainda vendo de perto os perrengues pelos quais meus amigos passavam: alguns, de outros estados (Pará, Bahia etc), dormiam lá em casa de vez em quando e até vinham passar o Natal com a gente. Vi que eles abriam mão de muita coisa. Percebi que eu também tinha que fazer por onde para alcançar meu sonho.

Dando um pulo já pra fase adulta, posso dizer que deu tudo certo. Consegui ser jogador de futebol do Esporte Clube Juventude. E aí, em dado momento, as coisas evoluíram de forma muito rápida: com poucos jogos realizados pelo profissional e há poucos dias de ter recém completado 20 anos de idade, em uma negociação que envolvia outros colegas do Ju, fui transferido para… O Grêmio! E, neste momento, sem dúvidas, a vida virou de cabeça pra baixo. Foi um salto significativo na minha carreira.

Mas a vida não é só coisa boa, né? E meu primeiro momento mais duro foi 3 anos depois de chegar ao Grêmio, em 2016. Até então eu vinha mantendo boa regularidade. Tanto que, em 2015, o técnico Vanderlei Luxemburgo — que havia trabalhado comigo no Tricolor — pediu minha contratação no Flamengo. Acabei indo, por empréstimo, e foi uma grande experiência: atuar no clube de maior torcida do Brasil, no centro do país, certamente nos dá mais maturidade, sobretudo na idade que eu tinha à época (22). Mas em 2016 o Grêmio pediu meu retorno e, nesta temporada, conheci minha primeira tempestade como profissional.

Tatuagem de Bressan: “calma na tempestade”, em italiano (foto: @oclubefootball)

A vida de defensores, sem dúvidas, é mais dura. A gente cria uma casca mais cedo. O atacante pode errar muitas vezes — e é normal os jovens oscilarem, porém, se acertam um único lance ao final da partida, são heróis. Com a gente é o contrário: se acertar durante 90 minutos e errar nos acréscimos… Já era. Se você for diretamente responsável por um gol do adversário, certamente a culpa recai muito mais em você do que em um jogador do ataque que possa ter desperdiçado uma ou até várias chances de gol na mesma partida. E eu sempre soube disso. Sempre tentei lidar com isso. Fui aprendendo e, aos poucos, criando a tal da casca. Mas aí chegamos a uma partida do Campeonato Brasileiro entre Grêmio x Vitória, na Arena. Era dia 23/06/16, e essa foi minha última partida pelo Grêmio na temporada: o árbitro Sandro Meira Ricci marcou pênalti meu em cima do Dagoberto. Tomei segundo amarelo e fui expulso. Eles marcaram o gol e venceram a partida por 2x1. Logo em seguida, fui emprestado ao Peñarol, do Uruguai.

Tempos depois, Sandro Meira Ricci chegou até a me mandar mensagem reconhecendo que errou na marcação da penalidade. Eu sequer encostei no jogador do Vitória. Infelizmente, ainda não eram tempos de VAR. Mas o erro do árbitro, que gerou um pênalti e uma expulsão, acabou caindo, de certa forma, na minha conta. Ainda muito novo, senti bastante a pressão naquele momento. Foi duro, não nego. Tempos difíceis.

E aí a vida me mostra, mais uma vez, como sou um cara abençoado. Já em 2017 eu estava de volta ao Grêmio, em um ano que foi mágico para a Nação Tricolor. Mais que isso: devido à suspensão do Kannemann, fui escalado para jogar a grande Final da Libertadores, na Argentina. Um ano e meio depois da turbulência, lá estava eu, formando dupla de zaga com Pedro Geromel e ouvindo Walter Kannemann me dizer, antes da Final: “tu nasceu pra esse jogo”. Simplesmente aqueles que talvez sejam os maiores zagueiros da história do clube! Era muita honra, porém muita responsabilidade também. Mas eu ia pra essa batalha já com a experiência do competitivo futebol uruguaio na bagagem, em um momento inegavelmente mais maduro da minha carreira.

Por conta disso tudo, o 29 de novembro foi muito especial pra mim. Pude desfrutar daquele momento ímpar com pessoas do clube pelas quais eu tinha um carinho gigante. Aquele grupo era uma verdadeira família tricolor. E teve um gostinho especial conquistar aquela taça depois de toda a luta, sonhos, renúncias, percalços… O sentimento foi de que “cheguei lá”, sabe? Como Kannemann havia profetizado, parece que eu tinha nascido para aquele momento: tudo que eu havia vivido até ali e cada gota de suor derramada pra chegar onde cheguei pareciam ter se justificado naquele apito final, em Lanús.

E, além dos quase 10 milhões de gremistas, a gente estava representando muitas outras pessoas dentro de campo… Todos que nos ajudaram a chegar lá, em cada passo da nossa trajetória. Família, claro! Mas também treinadores, amigos e, enfim, todos que cruzaram nosso caminho e que, de alguma forma, deram sua contribuição. Lembrar disso tornou aquele dia ainda mais intenso.

Olha, dizer que foi incrível é pouco... Foi, até então, o melhor dia da minha vida. A gente transformou o estádio de La Fortaleza num verdadeiro Olímpico Monumental, antigo estádio do Grêmio. Tomamos conta do jogo dentro de campo e a torcida tomou conta na arquibancada… Imposição total. Quem estava lá sabe: só dava pra ouvir a torcida do Grêmio, o tempo inteiro. Foi arrepiante.

Nesse dia, meu pai estava lá comigo. “Pro sim ou pro não”. Pra vitória ou pra derrota. “Para o que der e vier”. Me dando apoio incondicional e se mostrando, nitidamente, mais nervoso que eu. Ao final da partida encontrei ele no túnel e nos abraçamos demoradamente… Foi um momento emocionante pra mim, por tudo que já contei aqui… E, pensando agora… Lembra dos medos? Pois é… Fogos de artifício! Comecei a ouvir alguns explodindo nos céus de Lanús. E lá estávamos nós, Seu Dorivaldo e eu, num estádio, com fogos de artifício ao fundo… Mas desta vez eu não sentia medo. Desta vez, cada explosão me fazia sentir mais alegria e gratidão.

foto: @oclubefootball

A chegada em Porto Alegre também foi arrepiante, a cidade tomada de torcedores... Em uma parte do trajeto, no caminhão de bombeiros, fui ovacionado por um grupo de gremistas… Enfim, momentos inesquecíveis e, eu diria, até mesmo indescritíveis.

Corta a cena e pulamos direto para 2018… Sim… A bonança mal tinha dado as caras e lá vinha nova tempestade no horizonte.

Semifinal de Libertadores: depois de vencermos o River Plate por 1x0 em Buenos Aires e abrirmos 1x0 na Arena, a classificação para a Final estava extremamente encaminhada. Poderíamos até ter ampliado o placar, o jogo se mostrava relativamente controlado pelo Grêmio. Kannemann estava suspenso nesse dia também, mas dessa vez seu substituto foi o Paulo Miranda. Só que ele sentiu cãibras no decorrer da partida e eu acabei entrando.

A essa altura já estava 1x1: eis que o argentino dispara um chute pro gol, pega no meu braço e sai pela linha de fundo… Eles correm, com pressa, pra cobrar o escanteio. O árbitro é chamado pelo VAR… Pênalti. De fato, pegou no meu braço. Ninguém viu, foi rápido, acidental. Mas o VAR viu. Nesse jogo já tinha VAR, era novidade. Sei que, o mesmo VAR que não viu o jogador do River dominando a bola com a mão pra fazer o gol de empate, dessa vez viu a minha mão. E, novamente, segundo cartão amarelo pra mim e, consequentemente, vermelho.

Ali, meu mundo caiu.

Ao se tornar jogador profissional, certamente muitas pessoas nos ajudaram a chegar lá. E a gente se dedica e abre mão de muita coisa também por elas, pensando nelas. Pelo bem estar delas. O sofrimento de todas essas pessoas passou pela minha cabeça naquele momento. Bem como o sofrimento dos meus colegas: o grupo era muito bom, merecia estar novamente em uma Final. Rolava uma sintonia muito grande ali, tinha dado a famosa “liga”. E nem preciso dizer que, além de tudo isso, tinha o torcedor, né? Milhões de apaixonados que também mereciam aquela classificação... Enfim, tudo isso desabou na minha cabeça naquele instante. Foi terrível.

Minha esposa, Luciana, já me esperava no estacionamento ao final da partida. Quando me viu, entramos no carro e imediatamente começamos a chorar. Os dois, abraçados, sem dizer uma palavra. Foi um momento muito dolorido da minha vida, sem dúvidas. Depois chegaram meus familiares e alguns amigos também. Todos me deram o apoio de sempre, mas foi bem triste, pois eles estavam tão arrasados quanto eu. Por isso ressalto a importância dessas pessoas que sempre me ajudaram: foi com elas e por elas que, depois de um tempo, eu consegui respirar fundo e sair dessa.

Dá pra se dizer que, em minha fase adulta, esse acabou se tornando um grande medo: ver as pessoas que amo chorando. Porque eu, Bressan, até aguento a pressão. Claro, sou humano, também desabo de vez em quando. Jogador não é máquina. Mas, como já falei, zagueiro cria casca desde cedo (risos). Consigo me reerguer, seguir lutando, jogando, dando a volta por cima. Mas ver a Luciana chorando naquele dia foi terrível pra mim. Era algo que eu não queria ver novamente tão cedo. De preferência, nunca mais.

Depois disso vim jogar nos EUA, no Dallas FC, que vem sendo outra experiência muito rica em todos os sentidos. E aí alguém pode estar esperando nova bonança na minha vida, né? Afinal, depois da tempestade de 2016, veio aquele 2017 maravilhoso. Pois, quem pensou, acertou. Depois do revés de 2018, em 2019 tive um novo dia mais feliz da minha vida: o nascimento da minha filha. Me marcou não só pelo fato de eu ter virado pai, mas por ver o nascimento de um ser tão especial; algo incrível, que acompanhei de pertinho, desde o início. E, tudo isso, ao lado da minha esposa. Não tem preço. E mexeu bastante comigo.

É até engraçado… Eu morria de medo de fogos de artifício quando ia ao estádio com meu pai… Depois de um tempo, eu estava num estádio com ele e adorando aqueles fogos (2017). Aí passei a ter medo de me ver, novamente, chorando com minha esposa… E, alguns meses depois de ter enfrentado esse medo de perto, estávamos nós dois, mais uma vez, chorando juntos: dessa vez, pelo nascimento da Manuela, que foi um divisor de águas na minha vida.

Concluir esse relato afirmando que “depois da tempestade sempre vem a bonança” é tentador, pois, ao menos comigo, foi exatamente o que aconteceu até agora. Mas sei que não é uma regra engessada. Sei que as duas situações fazem parte da vida de forma independente. Muitas vezes até sem nosso total controle. Mas tem uma frase afixada aqui no vestiário do Dallas que eu gosto bastante: “a vida é 10% o que acontece com você e 90% como você reage a isso”. Acho que é por aí. Seguindo por esse caminho, a gente pode até ressignificar alguns medos. A gente pode erguer a cabeça em momentos difíceis. E, quem sabe, a gente pode até conquistar a América.

Um abraço,
Bressan.

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