Por uma política da amizade

Fernanda Stange
Toda Palavra
Published in
2 min readMay 12, 2020

Por uma política da amizade

Néspoli querida,

Os dias de lonjuras humanas têm me feito pensar um tanto no sentido da amizade. Sinto que, obrigados a dar ao outro falta além da que pretendíamos, entendemos verdadeiramente o que é amar, sobretudo amar um amigo. Se de fato amamos ao dar o que não temos, este é o momento ideal para entender o quanto o amor entre nós pulula. Mesmo quando não obrigados a manter distância, sei que nossa amizade não é um pão quente com manteiga. Temos bons encontros mas, muito mais, desencontros. Talvez se não mantivéssemos a constância dos estudos, seriam ainda mais efêmeros nossos momentos juntos. A despeito disso, somos amigos, e isso é que é bonito! Manter uma amizade por tantos anos a revelia das diferenças, das idiossincrasias que pouco se cruzam é algo que deveria viralizar no mundo. E a partir dessa nossa forma de amizade é que gostaria de propor alguma reflexão, ainda que breve. Uma amizade não é uma relação de exigência, que pretenda fazer UM, que redunde em segregação de tudo que anda fora. Os amigos são aqueles que respeitam a diferença no outro, o afastamento necessário, as estranhezas…Ouço sujeitos que sofrem por se sentirem traídos nos laços com amigos, por se fazerem preteridos nas relações. Sim, se fazerem, pois quem se faz preterido é o sujeito, afinal é provável que o outro nem saiba o que se passa do lado de lá. É preciso que escutem, estes im-pacientes, a importância de suportar a diferença, a lacuna intransponível entre dois…Os amigos se identificam na diferença! Hanna Arendt, resgatando a política tal qual praticada pelos gregos, propõe relações de inteira liberdade onde os sujeitos possam se expor e dar sua contribuição ao mundo dos iguais cujas diferenças são respeitadas. Ortega, uma graça de autor que tenho estudado propõe, a partir de Arendt e outros, a amizade como política, justamente por conservar a liberdade das diferenças. Nossa necessidade de visgo, de amalgamar ao outro é fonte de dor, uma vez que a impossibilidade está dada desde sempre. Mais ainda que os amantes, os amigos devem ter lucidez quanto ao fato de não haver relação sexual. Estes dias de afastamento compulsório são, inclusive, menos dolorosos quando assim estamos vacinados. E a partir daí, experiências potentes podem advir, como esta proposta por você na qual, como amigo insistente, me meti. Aliás, amiga, sua amizade têm me trazido muito boas vivências nestes dias pandêmicos. Nossas cartas, nossos seminários sobre os textos antropológicos do Freud, nossos encontros na distância, têm me possibilitado pensar no mundo, nos humanos, na clínica, de modo bastante frutífero, pelo que lhe agradeço imensamente. Que nossa amizade, sempre lúcida, prospere…Beijos e até a próxima!

Rony

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