Camomila com gengibre e uns dois dedinhos de vodka
Hoje eu só quero que doa.
Quero que ela venha
Pesada. Densa. Rouca. Volumétrica. Lúcida. Linda.
Ela: a dor.
Nunca vazia. Nunca leve. Nunca oca.
Hoje eu quero que nada afrouxe o nó na garganta.
Quero encharcar o travesseiro até virar o lado. Chorar até a pálpebra inchar. Gritar até o peito doer.
Hoje eu quero acordar sem saber como dormi.
Eu quero a dor emocional
E a física também.
Quero sentir no corpo.
Sentir o corpo.
O maxilar contraído. A cabeça pesada
Pulsando.
A testa que franze. A respiração que encurta. A taquicardia que vem.
Eu quero o descontrole. O desespero. A angústia da insuportável lucidez.
Hoje eu quero ficar sozinha.
Me tacar na cama. Sentar no boxe. Deitar no chão.
Eu quero o desespero dos que sabem, mas não entendem. Dos que enxergam, mas não resolvem.
Dos que descobrem que precisam fazer alguma coisa, mas o quê.
O quê.
Hoje eu quero a constatação.
A voz que some, a confusão iminente e a estranha clareza que vem depois.
Depois.
Hoje eu só quero que ela venha.
Ela: a dor.
Inteligente. Ácida. Assertiva
Boa de papo pra caramba
Hoje eu quero ouvir o que ela tem pra me dizer.
Certeira. Irônica. Viajada.
Safa.
Quero que tome o espaço que é dela.
Dance no salão como bem entender.
Beba whisky. Vinho. Gin.
Quero que ela mostre todo seu bom gosto.
Sua falta de escrúpulos
Sua incomplacência.
Seca.
Hoje eu quero a ousadia e a falta de glamour.
Uma hora ela cansa.
Se desintegra. Se transforma. Desiste. Foge.
Morre.
Mas enquanto estiver aqui
Ainda que escondida
Apertada
Ali no canto
A quero inteira.
Foda-se.
Não é drama
É coragem.
Insatisfação. Mudança. Vontade
Vida.
Hoje eu quero ficar do lado da verdade.
Uma hora o repertório esgota
Ela viaja pra Europa. Se rende pro verão. Coloca um biquíni. Pega um bronzeado. Muda de ideia.
Mas enquanto estiver aqui
Ainda que sufocada
Abafada
Meio de lado
A quero inteira
Me deixa.
Hoje eu quero ver o que ela tem pra fazer.
Quero que bagunce. Bata. Responda.
Eu quero o caos e quero a calma que vem depois
O vazio. O transe
Hoje eu quero ficar grogue.
Leve. Nova. Subtraída do que já não importa mais.
Hoje eu só quero que ela venha: a dor.
Terapêutica. Curativa. Parte desse plano
Típica de tudo que é humano, antes de mais nada
E, quem sabe, uma das manifestações de Deus.
Ela: a dor.
Mal vista, porém insistente.
Indesejada, porém ardilosa.
Incompreendida, porém esperta.
Safada.
São muitos os que a negam. Fogem. Fingem.
Mentem.
Perigoso e inútil.
É que ela é safa e despachada
É sem moral e sem pudor
Dor é bandida
Não pede licença nem sabe do que se trata.
Fazem de tudo pra não a encontrar.
Mas é aí que
Quando menos se espera
Pronto:
Ela vem e arromba a porta.
Melhor deixar logo que entre.
Por aqui:
Ofereço meu sofá e ainda passo um cafezinho.