Camomila com gengibre e uns dois dedinhos de vodka

Natasha Sierra
TodaPalavra
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3 min readSep 12, 2018

Hoje eu só quero que doa.

Quero que ela venha

Pesada. Densa. Rouca. Volumétrica. Lúcida. Linda.

Ela: a dor.

Nunca vazia. Nunca leve. Nunca oca.

Hoje eu quero que nada afrouxe o nó na garganta.

Quero encharcar o travesseiro até virar o lado. Chorar até a pálpebra inchar. Gritar até o peito doer.

Hoje eu quero acordar sem saber como dormi.

Eu quero a dor emocional

E a física também.

Quero sentir no corpo.

Sentir o corpo.

O maxilar contraído. A cabeça pesada

Pulsando.

A testa que franze. A respiração que encurta. A taquicardia que vem.

Eu quero o descontrole. O desespero. A angústia da insuportável lucidez.

Hoje eu quero ficar sozinha.

Me tacar na cama. Sentar no boxe. Deitar no chão.

Eu quero o desespero dos que sabem, mas não entendem. Dos que enxergam, mas não resolvem.

Dos que descobrem que precisam fazer alguma coisa, mas o quê.

O quê.

Hoje eu quero a constatação.

A voz que some, a confusão iminente e a estranha clareza que vem depois.

Depois.

Hoje eu só quero que ela venha.

Ela: a dor.

Inteligente. Ácida. Assertiva

Boa de papo pra caramba

Hoje eu quero ouvir o que ela tem pra me dizer.

Certeira. Irônica. Viajada.

Safa.

Quero que tome o espaço que é dela.

Dance no salão como bem entender.

Beba whisky. Vinho. Gin.

Quero que ela mostre todo seu bom gosto.

Sua falta de escrúpulos

Sua incomplacência.

Seca.

Hoje eu quero a ousadia e a falta de glamour.

Uma hora ela cansa.

Se desintegra. Se transforma. Desiste. Foge.

Morre.

Mas enquanto estiver aqui

Ainda que escondida

Apertada

Ali no canto

A quero inteira.

Foda-se.

Não é drama

É coragem.

Insatisfação. Mudança. Vontade

Vida.

Hoje eu quero ficar do lado da verdade.

Uma hora o repertório esgota

Ela viaja pra Europa. Se rende pro verão. Coloca um biquíni. Pega um bronzeado. Muda de ideia.

Mas enquanto estiver aqui

Ainda que sufocada

Abafada

Meio de lado

A quero inteira

Me deixa.

Hoje eu quero ver o que ela tem pra fazer.

Quero que bagunce. Bata. Responda.

Eu quero o caos e quero a calma que vem depois

O vazio. O transe

Hoje eu quero ficar grogue.

Leve. Nova. Subtraída do que já não importa mais.

Hoje eu só quero que ela venha: a dor.

Terapêutica. Curativa. Parte desse plano

Típica de tudo que é humano, antes de mais nada

E, quem sabe, uma das manifestações de Deus.

Ela: a dor.

Mal vista, porém insistente.

Indesejada, porém ardilosa.

Incompreendida, porém esperta.

Safada.

São muitos os que a negam. Fogem. Fingem.

Mentem.

Perigoso e inútil.

É que ela é safa e despachada

É sem moral e sem pudor

Dor é bandida

Não pede licença nem sabe do que se trata.

Fazem de tudo pra não a encontrar.

Mas é aí que

Quando menos se espera

Pronto:

Ela vem e arromba a porta.

Melhor deixar logo que entre.

Por aqui:

Ofereço meu sofá e ainda passo um cafezinho.

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Natasha Sierra
TodaPalavra

Atriz que escreve. Sou um livro aberto, rasurado e escrito à lápis.