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Fróidi

Natasha Sierra
TodaPalavra
Published in
3 min readAug 22, 2018

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*Dando prosseguimento aos flashbacks textuais, esse texto foi escrito em 27 de março de 2014.

O começo de tudo, ela dizia, seria a tal da ausência simbólica do pai. Daí o vício por barba arranhando o pescoço, mão na cintura e conchinha. A facilidade em se sentir completa ao perder-se em conversas na madrugada e abraços de domingo. E a ânsia quase infantil de cuidar, ser cuidada, revelar muito de si des-cri-te-ri-o-sa-men-te e, em troca, descobrir do outro.

A correlação entre uma coisa e outra é assim confusa mesmo. Bom para treinar o não questionamento e estimular a aceitação simples e fácil, olha que legal! Simples e fácil simples e fácil simples e fácil — novo mantra. Fácil e simples, descoberta do ano: a vida pode ser leve e é bem melhor que seja. Ah, sim, quanto ao questionar-se, já se viu, é dom e sabotagem. Que se crie um jeito para diferenciar um do outro.

Engraçado é no meio disso tudo coexistir certo apreço pela solidão. Temos aqui uma curiosa carência independente. Curiosa, carente e independente. Há.

Tá, whatever.

O choro fácil, que fique claro, é sensibilidade sim, claro. Mas também fuga, viu. Han? É que, olha que coisa: trata-se justamente da forma encontrada para evitar a conexão de fato. Raiva? Chora. Tristeza? Chora. Saudade? Chora. Chatice, né! Pois experimente outras maneiras de expressar os sentimentos aflitivos — ela falou. Vai que no lugar do choro esconde-se um soco e mal se sabe. Vai que, né.

E daí foi-se uma sucessão de bilhetes de embarque, livros inacabados, emails não enviados, camisetas cortadas, mensagens de madrugada, drinks mulherzinha, marlboros light, inspiração, expiração, invenção, meditação, musculação, canção, oração, perdão, patinação, chão e toda sorte de aos revezando-se em esforço coletivo na tentativa de dar conta dos momentos de con(fusão) que, quase sempre, ainda, acabavam terminando em sorriso (sim) e lágrimas — agora, na medida do possível, evitadas.

Ah, sim, não poderíamos deixar de mencionar a questão da perda. Digo, da dificuldade de lidar com. Mais uma vez, é claro, consequência da tal ausência simbólica que, percebe-se, por aqui é diagnóstico semelhante à virose. Se bem que, pensando melhor, trataria-se nesse caso de uma ausência real. Ausência real de tudo que já se perdeu e queria que tivesse ficado. Pois bem, não muda muito, vamos lá: seria bonito o desejo de ter para si todas as coisas dessa vida, não fosse condição inexorável da existência o fato de que, ao escolher X, automaticamente desescolhe-se Y. Simplesmente porque X é X e Y é Y. E XY nem sempre é uma combinação possível dentro do campo de possibilidades desse mundo. De modo que, né. Ficamos entendidos. Perda e ganho perda e ganho perda e ganho. Mantra número dois.

Semelhante equação pode ser aplicada à, vamos adjetivar assim, impetuosa curiosidade de experimentar tudo que te interessa nesse mundo. Ambição que, apesar de soar cool e modernex, esbarra no fato de que ele tem aproximadamente 510,3 milhões km² e você pouco mais de um e sessenta. O que, convenhamos, faz uma diferença.

Bem, por enquanto é isso.

Em todo caso, podemos estar trabalhando com seis gotas de floral quatro vezes ao dia, yoga, velas aromáticas, galhinhos de arruda, nota de um dólar na carteira, pensamento positivo, chopp, hot philadélphia, música ao vivo, sábados, ar fresco, sexo sem camisinha, roadtrips, água salgada, netflix, chocolate, paixão correspondida, Bauman, vinhozinho e, se nada funcionar, o soberano guru organizador do caos e falta de certeza das sociedades líquidas: tempo.

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Natasha Sierra
TodaPalavra

Atriz que escreve. Sou um livro aberto, rasurado e escrito à lápis.