Tudo isso aí

Natasha Sierra
TodaPalavra
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5 min readDec 4, 2018

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Há exatos quarenta dias, coloquei minha mochila nas costas e saí da Chapada dos Veadeiros decidida que passaria no João de Deus. Abadiânia era relativamente perto dali e, apesar de, ou justamente por todos os comentários que eu ouvia — às vezes incríveis, outras vezes controversos — queria muito ter minha própria percepção sobre a tal cidade que girava em torno de um dos maiores médiuns do Brasil.

A identificação não foi de cara. Nem sei se ouve. Amo ver todo mundo de branco, mas lá eu nem curti. É que tudo que é meio regra meio que me incomoda meio que nem sei por quê. Místico pra mim tinha sido Alto Paraíso. Cavalcanti. São Jorge. Música boa, pessoas olhando nos olhos, tempo esgarçado. Cidade em cima de cristal de quartzo, aquele tanto de cachoeira, mato pra tudo quanto é lado. Aquela energia, aquele poder, aquela força. Pra mim, natureza sempre foi o que me deixou mais perto de Deus. Mesmo assim, eu sentia que tinha que ir. E apesar de adorar saber o porquê de tudo, quando sinto que preciso fazer alguma coisa me dou licença poética e vou sem questionar. Desejo é motivo suficiente às vezes, então eu fui.

Eu fui e a primeira coisa que ele me falou foi que já me conhecia. A segunda, pedir pra eu ficar na corrente de oração. E a terceira, dizer que ia me ajudar. Ele me operou e eu nem sei para exatamente o quê. Cirurgia espiritual. Segundo eles, opera-se até nove coisas simultaneamente. Corpo físico, mental, sutil e astral. Até nove seja-lá- o-que-for em tudo que é você. Me perguntei por que não sete ou dez, mas sei lá, falaram nove. Ok. Nove, então.

Na hora do procedimento eles indicam: coloque a mão na região que você deseja que seja operada. Eu mal soube o que pedir. Acabei colocando a mão no meu coração. É que eu queria curar minha vida inteira. Curar quem eu era e quem eu queria ser. Curar quem eu tinha sido até ali. Curar minha relação com família, afetos, amigos, dinheiro, carreira, sonhos, medos, sensações. Eu queria curar tudo que eu sentia que precisava de transformação em cada partezinha que eu chamava de eu. Mão no coração: me cura inteira.

A cirurgia durou menos de dois minutos e quando acabou senti moleza e sono. Só.

No dia seguinte, voltei pro Rio. Abri a porta de casa e me veio a primeira sensação de que alguma coisa realmente tinha acontecido: a sensação de que a pessoa que morava aqui não existia mais. Não daquele jeito. Senti a energia da casa diferente da minha e passei dois dias trancafiada fazendo faxina, mudando coisas de lugar, inserindo itens novos e transformando o que dava em vinte e nove metros quadrados só pra deixar diferente. Diferente. A partir dali, tudo começaria a ficar diferente.

Foram quarenta dias de pós-operatório desde então. Quarenta dias em que eles pedem pra fazermos algumas abstinências de coisas que nos conectam demais com a densidade. Quarenta dias em que fiquei sem carne, sem pimenta, sem álcool, sem cigarro e sem mexer em energia sexual. Nem sozinha. Nada.

Achei que seria difícil. Foi bem pior. Primeiro porque é sempre ruim abrir mão de coisas que a gente gosta, ainda mais assim, do nada e vindo de uma quase imposição. É totalmente inorgânico fazer isso e, por isso mesmo, nem um pouco fácil. Segundo, e principalmente, porque é mesmo muito doido esse rolê da gente com a gente mesmo.

Foram quarenta dias sem nada disso e com muito de mim. Quarenta dias tomando passiflora ao acordar e ao ir dormir. Quarenta dias regados à água fluidificada. Ao tomar, pensem no processo de vocês — eles indicam. Pensem na cura. Cura. Palavra que me acompanhou bastante e a cada dia ganhava um novo significado.

Não sei o que é cura pra vocês, mas eu simplesmente não consigo enxergar como o extermínio de alguma coisa. Não consigo mesmo achar que o que quer que exista no universo possa estar errado e precise ser eliminado. Banido. Em última instancia: isso nem possível é. Nada morre e isso a gente já sabe. Tudo continua existindo porem se transforma. Mudança. Evoluir é trocar de fase. Melhor ou pior foi nomenclatura que a gente inventou. O que acontece mesmo é a mudança. É a transformação.

Um vírus não tá errado. No tanto de consciência que ele tem, o que ele faz é certíssimo. Uma bactéria só quer sobreviver. Expansão de consciência é o aumento da visão que se tem sobre alguma coisa. Curar uma doença é emprestar para as nossas células novos pontos de vista. É inaugurar um novo jeito de fazer. Uma nova forma de existir.

Cura pra mim é isso aí. É transformar aquilo que sinto que já não mais me cabe em algo que vibre em mais ressonância com meu coração. Às vezes é difícil justamente porque tudo nos cabe um pouco. Tudo tem seu lado que interessa. Então cura é também desapego.

Só os corajosos se curam. É que curar não é consertar coisa alguma, é construir e abandonar. Curar é optar por outra coisa.

A gente se cura olhando muito pra dentro e muito pra fora. Eu me curo quando mergulho profundo e quando voo pra bem longe de mim. Curar é a maior viagem.

Nesses quarenta dias, curei bem mais do que nove seja-lá-o-que-for no meu corpo físico, mental, sutil e astral. Foram incontáveis as novas formas de existir. Parecia mágica e é mesmo. Viver é pura magia. A gente que esquece às vezes.

Agradeço a tudo que atravessou meu caminho e expandiu minha consciência. Tudo e todos que me ajudaram a olhar pra mim e a me tirar de mim.

Tudo cura a gente.

Mar. Musica. Conversa. Sexo. Cheiro. Banho. Jeito de olhar. Livro. Cinema. Teatro. Madrugada. Sol. Tambor. Incenso. Rio. Cachoeira. Lua. Violão. Pedra. Cristais. Festa. Pizza. Desejo. Raiva. Amor. Alegria. Tristeza. Tédio. Fruta. Incenso. Susto. Livro. Viagem. Terra. Chuva. Café. Sotaque.

Curar é se deixar atravessar.

Os quarenta dias acabam hoje e tô bem feliz com isso. Escrevo esse texto com uma cervejinha do lado. Já estava morrendo de saudade dos prazeres dessa dimensão. Sou fã dos prazeres dessa dimensão e já estava morrendo de saudade. Mas quis ancorar esse momento. Não vou esquecer.

Ate agora não sei dizer exatamente o que aconteceu. Pode ser que tenha sido mesmo coisa das entidades. Pode ser que tenha sido a Chapada, poderosíssima. Quando vê, foi o tanto de cristal que eu trouxe de lá. O quartzo rosa gigante do lado da minha cama. O citrino pendurado bem na altura do chakra cardíaco. Algum super poder de seres extradimensionais. O tanto de tempo que fiquei naquela pedra. As pernas abertas pro sol. A força das águas batendo nas minhas costas. O dia em que passei pelo paralelo catorze. A meditação no ponto mais alto do planalto central. A hora em que dancei aquele forró. A conversa que tive com a minha mãe. O tanto de gente que cruzou meu caminho. As madrugadas em claro. A iniciação de reiki. Aquela noite na barraca de camping. Os trabalhos que eu fiz. O dinheiro que eu ganhei. O mapa astral maia. Os textos que escrevi. A tempestade no meio da estrada.

Quando vê, pode ser que tenha sido eu mesma.

Tudo cura a gente. Curar é se deixar atravessar.

Agradeço a tudo que atravessou meu caminho.

Agradeço a mim mesma por ser tão atravessável.

Um brinde. Agora mesmo. Vários.

Abri a cerveja.

Ahô.

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Natasha Sierra
TodaPalavra

Atriz que escreve. Sou um livro aberto, rasurado e escrito à lápis.