Ágatha: do corpo marcado ao símbolo de uma guerra perdida

Guto Alves
Todo Tanto
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5 min readSep 23, 2019

Não tenho sabido de muitas coisas, mas sei daquilo que meus olhos veem. Sei do dia quente que vejo nos corpos suados, nos trabalhadores da rua que percebo não mais aguentarem o dia. Tem sido pesado. Sei do choro da vendedora de sacolé que vejo todos os dias, mas que, especialmente, vi chorando na última semana na companhia de seu cachorro e sua filha num carrinho.

Vi sorrisos que não me convenceram, vi rostos que não cederam, vi até mesmo corações arrebentados. No domingo, vi a paisagem escura, nublada e chuvosa. Parecia ver a morte e sentir o cheiro dela. Da minha cama vejo helicópteros, portanto também ouço o som da morte ao se aproximar. E tudo que tenho evitado saber bateu forte em mim, porque vi Ágatha naquilo que olhei desde então.

Eu vi Ágatha no livro que iniciei a leitura, de Andrea Pachá, presente de uma amiga. A vida não é justa. Vi Ágatha em todas as fotos que passaram pelo meu rosto grudado à tela do telefone. Eu a vi nos lamentos chorosos que li, nos rasgados pedidos de misericórdia. Eu vi Ágatha na minha angústia durante o banho.

Fechei os olhos e a vi.

Eu a vi na chuva, ao imaginar seu enterro. Eu vi Ágatha-mulher maravilha, menina maravilhosa. Eu vi Ágatha mera memória do que foi e a vejo símbolo da luta que agora é. Eu vi Ágatha na morte cruel e vil em face do estado policial assassino que se tornou o Rio de Janeiro.

Eu vi, da noite para o dia, Ágatha ser transformada por completo. Da pouca infância que tinha no Complexo do Alemão, vi a menina que morava na inocência da infância, essa roubada e rasgada mesmo em vida, se transformar num grito de guerra.

Da pequenina que ia à escola e depois brincava com suas amiguinhas, eu vi a menina se transformar num rosto de luta. Serigrafia do sangue que escorre pelos valões da miséria de espírito deste Rio de Janeiro. Sangue preto pisado nos veios de barro e esgoto do confinamento genocida que têm feito nas favelas.

Essa menina do olhar doce, do sorriso faceiro de quem não levaria desaforo para casa, mas levou o aparato militar inteiro nas costas. Ágatha dos cabelos fartos, linda que ela só. Ágatha que se calou, eu vi, quando uma bala de fuzil lhe invadiu o corpo.

Bala de fuzil.

Bala de fuzil.

Bala de fuzil.

Bala.

De

Fuzil.

Bala de fuzil nas costas de uma menininha de oito anos. É preciso repetir até o que o incômodo se torne insuportável. Até que mesmo os mais insensíveis comecem a se inquietar.

Que terá sentido ela? O pavor, o medo invadindo o morro e, de repente, um calor que lhe invade e cessa. Morria mais uma criança. Mas muito mais que isso, era Ágatha. Era filha, neta, era sobrinha. Era prima, vizinha, era amiga, parceira do que viria. Era aluna, era futuro. Hoje, enterrada, é o semblante forte que dá nome ao luto por ela e todos aqueles que morrem sem cruz.

Eu vi Ágatha nos olhos de sua mãe que, segurando sua boneca e seguindo o cortejo do pequenino corpo fuzilado, seguiu com a dor que não grita, não alardeia, não chora, mas que endurece o olhar, embrutece a face e deixa firmes os passos.

Nos olhos desta mãe, eu vi muito mais que dor, vi a filha que o Estado levou, eu vi o coração dilacerado, envenenado pelo rancor. Eu vi o corpo marcado fuzilado, sentença de morte que não pergunta o nome. Bala endereçada não é perdida, é bala sentenciada.

Ando não sabendo de muita coisa na tentativa de fugir da realidade. Mas Ágatha morre e me lembra que não tenho nada a perder, senão a dignidade e a humanidade que ainda habita em mim e que não seguirá intacta se eu escolher fechar os olhos e fingir não saber que Ágatha Félix foi brutalmente assassinada pelo Estado do Rio de Janeiro durante uma operação da Polícia Militar no Complexo do Alemão.

Então eu vejo Ágatha no colo das mulheres pretas que eu conheço e que não se negam à luta. Eu vejo Ágatha no colo de cada preto e preta que acolhe no olhar a Dororidade (a dor preta causada pelo racismo, termo cunhado por Vilma Piedade em seu livro homônimo), que compartilham a vida no colo da dor de ser negro num mundo racista.

Eu vejo Ágatha nas palavras daqueles que levantaram de seus lugares e foram, de alguma forma, gritar por vida, gritar por sobrevivência. A vejo nos corpos dos jovens negros que veem mais uma vítima e se perguntam: quando vão me atingir no peito?

Eu a vejo no desespero dos moradores das favelas que temem deixar seus filhos irem à escola. Vejo Ágatha em quem tem a dor menosprezada por uma elite moralmente falida, por uma classe média fedida que se sente especialmente detentora de mais direitos e que condena a morte toda essa gente quando arrotam o preconceito mordaz, mas comem, pra que todos vejam, a carne do bom samaritano que discursa pelo bem da nação.

Eu pensei que Marielle seria nosso ponto final, que seria o rosto da luta que conseguiria justiça e triunfo. Só mesmo sendo branco para assim pensar. Hoje estão juntas na morte e na dor que nos sobra deste horror massacrante. E nós, na contemplação da dor que sentem aqueles que vivem no horror.

Que Ágatha seja nosso ponto final. E que sua mãe, que nunca esquecerá de Ágatha enterrada para sempre, possa sempre se lembrar da libertação de garra e coragem que seu anjo parece ter acendido naqueles que ainda têm caráter, alguma grandeza e senso de justiça no coração.

Porque eu vejo Ágatha naquilo que vive, não quero mais ver Ágatha naquilo que morre.

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