A medida de nossa cova e o tamanho de nosso medo

Guto Alves
Todo Tanto
Published in
3 min readDec 2, 2019
“A carne mais barata do mercado não tá mais de graça / Não tem bala perdida, tem seu nome, é bala autografada”. Foto: Eduardo Knapp/Folhapress

Um céu escuro avançou sobre novembro. Com o sufoco de quem viveu um ano arrastado, puxando correntes e pisando na lama, alcança dezembro. Enquanto a nuvem negra toma conta do céu, sangue negro toma conta do chão. Até quando? Não sei, estou letárgico. Só o que sei fazer é me indignar, ao pensar na cova que me cabe, no pedaço que me resta que terei tirado em vida.

João Cabral de Melo Neto é quem melhor desenhou o que nos cabe em vida quando na morte: uma cova. Nem largo nem fundo, tamanho em palmos medido, a parte que nos cabe neste latifúndio. Açoitados todos os dias pelo desdém, um projeto claro de destruição e medo vem à tona nos fazendo crer que já não conseguimos mais, que já não há ninguém capaz. É essa nuvem carregada, pesada, densa que toma o Rio em pleno novembro. Quando nem mesmo o sol aparece, tudo aparenta condenado.

Hoje vi o vídeo que mostra a Polícia Militar de São Paulo, em uma alternância com o Rio de Janeiro, encurralando jovens negros inocentes durante uma festa na favela de Paraisópolis. Açoitando, batendo, chutando os jovens, não por acaso, negros. Mulheres, homens, meninos. Alguns morreram. No país do medo, o medo divide até mesmo opiniões. O medo traz à tona a maldade, e esta traz quem defende e quem dela apanha. Eu busquei ver quem era, um por um, cada jovem que morreu ali. Ver aquele vídeo me arrancou lágrimas, então eu precisava conhecer a cara e a cor dessa dor. Será que, em algum lugar, morremos em nossas pulsões?

É importante falarmos sobre o medo, um mecanismo de defesa e proteção, um estado de alerta em face da ameaça. O medo tem operado em nossas vidas pela pulsão de morte, de inexistência, da infalibilidade do fim voraz. O medo opera matando os alvos fáceis para afugentar os mais rebeldes, para amansar a fera da revolução. Até mesmo de revolução nos fizeram ter medo. Medo de sair de nossas casas, medo de ter a nossa voz, medo do que virá, medo do que pode ser, medo que nos aprisiona, que nos aquieta, que nos assassina na vontade de mudar e de resistir. O medo nos quer acabrunhados, andando sozinhos, nos afastando das vítimas, cuidando de nossa vida como se o medo, esse que nos abate, não estivesse a matar.

Recentemente, a música de Belchior, aquele que já nem compreendemos, ganhou o grito dos massacrados pelo medo. Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro. Será? Pergunto-me com o medo de quem já sabe a resposta, ou com o medo de quem não quer nem mesmo ouvi-la. O medo de já virar o ano morto, morto no sentido metafórico enquanto outros seguirão mortos no sentido mordaz: sem vida, corpos frios, enterrados ou largados em valas quaisquer. Essa nuvem carregada que ganhou dezembro parece não se afugentar com o sol do verão de janeiro. Parece ser o medo a nos avisar, parece ser a resposta a quem quer apenas na areia deitar.

Penso nos jovens negros de Paraisópolis e logo penso em quanto sangue há por aí, escorrendo no Brasil, pingando no prato daqueles que comem a carne que nem podemos mais pagar. Sangue pisado. De inocência pisada, de brutal consciência do mal soberano. Penso em Ágatha, penso naquele jovem espancado pelo segurança do Extra, e em todos aqueles que se deparam com pessoas atravessando a rua ao serem avisados. Penso na letargia. Penso. Abro os olhos e tenho que respirar fundo. A nuvem parece ter descido, a densidade do ar pesa, o cansaço exagera. É pouca a indignação. Indignar-se, no entanto, é melhor que a resignação, essa que não tem e jamais terá a medida de minha cova.

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